Ato repudia acusações de Alckmin contra defensores de direitos humanos

Governador de São Paulo e presidente da Febem, Berenice Maria Gianella, culparam entidades de direitos humanos, Justiça e Ministério Público pela crise na instituição. Representante da Anistia Internacional repudiou atitude e prometeu repassar a notícia para o mundo todo
Por Fernanda Sucupira
 02/12/2005

No dia 22 de novembro, a Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (Febem) de São Paulo vivenciou a pior rebelião do ano, que deixou 55 feridos, entre internos e funcionários, e resultou na morte do adolescente Jonathan Vieira Anacleto, de 17 anos. A reação da presidente da instituição, Berenice Maria Gianella, e do governador Geraldo Alckmin, foi de culpar entidades de direitos humanos, a Justiça e o Ministério Público pela crise da fundação. O governador se referiu em especial a Conceição Paganele, presidente da Associação de Mães e Amigos de Crianças e Adolescentes em Risco (Amar), e a Ariel de Castro Alves, coordenador estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).

Em resposta a isso, na quinta-feira (1), foi realizado, na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), um ato público de repúdio às declarações do governo estadual e de desagravo aos defensores de direitos humanos acusados de só criar problemas e não colaborar com a Febem. Durante o ato, foram feitas manifestações de solidariedade e indignação por parte de diversos parlamentares, entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente e de defesa dos direitos humanos, conselhos tutelares e organizações internacionais, como a Anistia Internacional. Aos depoimentos das pessoas presentes à audiência, somaram-se cartas, declarações e notas públicas vindas de todo o país.

Segundo o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Menor, a responsabilização de representantes da sociedade civil não é um fato novo nem isolado, pelo contrário, é um subterfúgio que tem sido utilizado durante mais de dez anos. “Quando a situação fica incontrolável, difícil de negar e esconder da opinião pública, eles fazem isso. Desvalorizam e desclassificam a ação das entidades, como se fosse uma ação deletéria, perigosa, contra a segurança pública. Essa estratégia de desprestigiar os defensores de direitos humanos é uma prática sistemática do governo estadual para vulnerabilizar todos os grupos de direitos humanos”, denuncia.

O representante da Anistia Internacional para o Brasil, Tim Cahill, afirmou durante o ato que a entidade está repassando essa notícia para o mundo todo. “Temos seguido o trabalho deles e de pessoas que lutam pelos direitos humanos de crianças e adolescentes da Febem, a longa história de violação desses direitos e a falta de vontade do governo estadual de acabar com ela. Hoje, reforço o apoio e afirmo a importância desses defensores dos direitos humanos que têm mantido uma luta constante na área. Repudio esse processo de descrédito e desqualificação dessa luta”, diz.

Para o deputado estadual Ítalo Cardoso (PT), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp, quando o governo tenta se esconder atrás de dois líderes reconhecidos pela sociedade civil, achando que vai amenizar sua culpa, não há dúvidas de que ele fica mais exposto ainda. “Não é com discussão de mídia que ele vai desviar a atenção da sociedade civil para o descaso do Estado com a Febem e para os crimes que acontecem lá dentro todos os dias”.

Diversas entidades vêem essas declarações do governador e da presidente da Febem como parte de um processo de criminalização dos movimentos sociais e como uma forma de justificar a portaria que proíbe a entrada das entidades da sociedade civil na instituição.

“Os cadáveres estão na mesa do governador”
Conceição Paganele foi acusada pela presidente da Febem de ter incitado especialmente a rebelião do dia 22, no Complexo Tatuapé, por ela ter visitado algumas unidades nos dias que antecederam a insurreição. A presidente da Amar acompanhou o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que realizou uma supervisão do Complexo Tatuapé, acatando uma medida cautelar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). No dia 18, os visitantes chegaram ao complexo na hora do almoço, mas os internos ainda não haviam se alimentado. “Eles disseram que não iriam comer enquanto os adolescentes das unidades 4 e 16 estivessem apanhando e pediram que fôssemos verificar essas denúncias”, conta Helder Delena, integrante do Conanda.

Segundo ele, a Unidade 4 é “tranca pura” e foi comprovado pelas marcas no corpo dos adolescentes que eles estavam sofrendo maus-tratos. Na unidade 16, estavam revoltados, dizendo que não queriam mais apanhar. Puderam constatar também que os adolescentes novos que chegam na unidade ficam três dias na solitária. “A estrutura da Febem é de prisão, cada unidade tem sua própria dinâmica e nenhuma delas tem programa pedagógico. Espanta quando o governo diz que dona Conceição e Ariel são responsáveis pela rebelião, é lamentável essa responsabilização, pois admiro muito o trabalho dos dois”, completa o conselheiro.

Ainda no dia 18, Conceição foi chamada pelo diretor do complexo para que ela ajudasse a convencer os adolescentes para que eles acabassem com a greve de fome. “É um governo criminoso, infrator, violador de direitos. É preciso que se fale isso, mas eles não engolem. Ela diz que eu incitei a rebelião, mas o que aconteceu foi que um adolescente me perguntou se ele estava na Febem para ser espancado. Esclareci para ele que não, falei dos direitos dele e que a violência é crime. Disse que aquela era para ser uma medida sócio-educativa, não ‘espancativa’ e que essas ações deviam ser denunciadas como crime e punidas”, explica.

Durante o próprio governo Alckmin, Ariel e Conceição já foram convidados diversas vezes para entrar na Febem a ajudar nas negociações com os adolescentes, durante as rebeliões. Na gestão do ex-secretário da Justiça, Alexandre de Moraes, Conceição possuía até mesmo status diferenciado para visitar a instituição. “Nos anos de 1999 e 2000, quando havia aquelas rebeliões terríveis, eu era chamada de casa para tirar os adolescentes de cima do telhado, e acalma-los”, conta.

De acordo com a Amar, 24 adolescentes já morreram na Febem de 29 de março de 2003 até 23 de novembro de 2005. “Os cadáveres desses 24 jovens que tiveram a pena de morte decretada pelo Estado estão todos na mesa do governador”, diz Conceição. Por conta do fracasso das políticas públicas estaduais relacionadas a crianças e adolescentes em geral e em especial aqueles sob medidas sócio-educativas, o governo estadual passa a atribuir culpa às entidades de direitos humanos. Visivelmente emocionada, Conceição afirmou que a presidente da Febem a colocou numa situação de “constrangimento e exposição terrível”. “Perdemos um dos maiores parceiros nossos. Essa mulher não fez mal só para mim, mas está também prejudicando o trabalho que fazemos com dignidade. Enquanto eu viver vou denunciar as barbaridades da Febem”, declara a presidente da Amar.

“Estamos do lado certo”
Segundo Ariel, se fosse para acabar com os problemas da Febem, para ter unidades regionalizadas e adolescentes ressocializados, eles dois sacrificariam a própria vida. “Mas é o contrário. Para ele, atrapalhar é combater a tortura, cobrar que se aplique devidamente os recursos previsto para a Febem, cobrar a regionalização das unidades. O que esperar de um governo que proíbe a entrada de todas as entidades de direitos humanos na Febem, que nomeou para um cargo de confiança o delegado Calandra, acusado de tortura no regime militar, que criminaliza os movimentos sociais?”, questiona Ariel. “Temos que nos sentir elogiados. Estamos do lado certo e vamos continuar atrapalhando e criando muitos problemas. Nem começamos ainda”.

De acordo com o coordenador estadual do MNDH, cada vez o governo estadual escolhe um “bode expiatório” para a situação. Já passaram por essa posição o sindicato dos funcionários, mais de 1.500 funcionários acusados de serem torturadores, as mães e o padre Júlio, entre outros, que vão se alternando. “Ele diz que jamais colaboramos. Quantas reuniões não participamos no início do ano, 24 horas, voluntariamente, quando fomos chamados a contribuir com o Estado? Quantos seminários não fizemos, quantas propostas pedagógicas não ajudamos a trabalhar? A Febem só é prioridade quando os jovens estão em cima do telhado. Quando há uma aparente calmaria, à base de tortura ou da liberação de celulares e drogas lá dentro, eles esquecem da prioridade”, diz Ariel.

Da Agência Carta Maior

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM