No Brasil, o termo usado para o trabalho forçado e o recrutamento coercitivo com fins de exploração econômica é trabalho escravo. Sobretudo nas áreas rurais – mas também nas grandes cidades –, homens, mulheres e crianças são submetidos a condições degradantes de trabalho e têm sua liberdade cerceada por o que hoje é chamado de “servidão por dívida”. São objetos de tráfico realizado por intermediários de mão-de-obra conhecidos como "gatos", que recrutam trabalhadores em cidades onde a pobreza e o desemprego são abundantes e prometem um bom salário em troca de serviço pesado, e então são levados para áreas remotas. Quando lá chegam, descobrem que os salários prometidos foram utilizados para cobrir custos de transporte e alimentação. O isolamento ainda obriga os trabalhadores a comprarem, a preços exorbitantes, alimentos e equipamentos de trabalho de seu próprio empregador. No final, devem ao dono da fazenda muito mais do que terão para receber. A partir daí, perdem o controle sobre suas vidas e se tornam escravos modernos.
Segundo um relatório global da Organização Internacional do Trabalho lançado em Brasília nesta quarta-feira (11) (leia matéria “Mais de 12 milhões são vítimas de trabalho forçado no mundo, diz OIT”), mais de 25 mil brasileiros vivem sob esta condição, principalmente nos estados do Mato Grosso e Pará, em fazendas de pecuária (80% dos casos) e agricultura (17%). A pouca oferta de emprego, as condições de isolamento geográfico e a ausência do Estado e de instituições de proteção teriam deixado o terreno livre para o crescimento da prática no país, ligada, muitas vezes, à degradação do meio ambiente. O documento da OIT afirma que, apesar do alto índice de ratificação das convenções internacionais relativas ao tema, pouca atenção tem sido dada à questão pelos países da América Latina. A “notável exceção” seria o Brasil, cuja experiência no combate ao trabalho escravo tem servido como exemplo para os governos da Bolívia, Guatemala, Paraguai e Peru.
Segundo a organização internacional, o Brasil tem liderado o enfrentamento do problema através da adoção e implementação, em março de 2003, do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. O relatório cita iniciativas como a portaria do Ministério do Trabalho e Emprego, de dezembro de 2002, que garante o pagamento do Seguro-Desemprego a todos os trabalhadores libertados do trabalho escravo, e a proposta de emenda constitucional (PEC) que propõe a expropriação de terras sem nenhum tipo de compensação aqueles que comprovadamente se utilizarem de mão de obra escrava. A PEC do trabalho escravo já foi aprovada no Senado e em primeira votação na Câmara dos Deputados.
Outro destaque do relatório da OIT às ações do país é o Código Penal brasileiro, que na gestão do presidente Lula sofreu emendas para aperfeiçoar o conceito de trabalho escravo. Hoje, qualquer pessoa que mantenha trabalhadores no seu local de trabalho, seja dificultando o acesso ao transporte/locomoção, seja confiscando seus documentos de trabalho ou ainda por monitoramento armado, está sujeito à mesma sentença de prisão. Por fim, o estudo aborda o trabalho dos Grupos Móveis de Fiscalização do MTE, que em 2003 libertaram cerca de 5 mil trabalhadores; os 633 processos administrativos iniciados pela Procuradoria Geral da República, entre fevereiro de 2003 e maio de 2004, para verificar denúncias criminais de trabalho escravo; e as ações civis públicas por danos morais confirmadas pela Justiça do Trabalho, que vêm obrigando o pagamento de quantias significativas pelos empregadores devido aos prejuízos causados aos trabalhadores encontrados em situação de escravidão.
“O lançamento do relatório global no Brasil é inclusive um reconhecimento mundial aos esforços do governo brasileiro e também ao projeto de combate ao trabalho escravo que a OIT vem desenvolvendo no país para abolir de vez esta vergonha”, explica Patrícia Audi, coordenadora nacional do projeto de combate ao trabalho escravo da OIT no Brasil. Desde 2002, o projeto de cooperação técnica da organização vem fortalecendo e ajudando a coordenar as ações dos membros da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e outros parceiros dentro e fora do governo brasileiro. “A partir do programa no Brasil, queremos promover uma troca de experiências entre os projetos e pensar uma ação para esta área no mundo, estudar o que deve avançar e o que deve ser copiado em relação a essas questões”, diz Patrícia.
O outro lado da moeda
Comparadas às iniciativas dos demais países, as ações do governo brasileiro são, sim, exemplares. Dentro de casa, no entanto, as cobranças são fortes diante dos compromissos assumidos pelo governo Lula no Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. Nesta quarta-feira, horas depois do lançamento do relatório da OIT, durante reunião ordinária da Conatrae, o Fórum de Combate ao Trabalho Escravo em Mato Grosso divulgou uma nota à imprensa com duras críticas ao governo federal. O texto fala da situação de abandono em que se encontra o estado em relação à fiscalização do trabalho escravo. Segundo dados do MTE, o Mato Grosso lidera junto com o Pará o ranking do trabalho escravo no país. No período da “carpa” do algodão, são empregados cerca de 10 mil homens para o trabalho forçado no estado. O mesmo acontece no período de catação de raízes para plantio da soja e no que antecede as queimadas.
O Fórum de Mato Grosso afirma que a timidez das ações do Grupo Móvel e a freqüente demora no atendimento às denúncias apresentadas fazem com que apenas 30% dos casos denunciados cheguem a ser fiscalizados. Critica também que até hoje as duas equipes permanentes do Grupo Móvel que seria dedicadas ao Mato Grosso – previstas no Plano Nacional – ainda não foram criadas.
“Por falta de real empenho político por parte do governo federal, não se efetivaram ainda medidas essenciais para a erradicação do trabalho escravo, tais como a aprovação da PEC do confisco das terras de escravistas, em trâmite há mais de 10 anos no Congresso; a definição da competência federal para julgar os crimes de trabalho escravo; a efetivação de sanções econômicas atacando na raiz a ganância dos “escravistas modernos”, vedando-lhes o acesso a financiamentos da rede pública como privada; e o reajuste das condições financeiras garantindo ao Grupo Móvel um trabalho correto e seguro (a questão das diárias, ainda não
resolvida, paralisou a fiscalização por várias semanas este ano)”, diz a nota.
A indefinição quanto à competência criminal para julgar os crimes que envolvem trabalho escravo foi um dos desafios citados no relatório da OIT. A discussão hoje se trava entre tribunais federais, estaduais e instâncias trabalhistas. Já a questão das diárias dos policiais federais e dos auditores fiscais do trabalho vem sendo denunciada desde o início do ano (leia matéria “Sem recursos, fiscalizações devem parar em abril”). No lançamento do relatório da OIT em Brasília, o ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, disse que “como sistema, o trabalho escravo deve ser derrotado em um ou dois anos no Brasil”, reforçando a importância da aprovação da PEC do confisco de terras. Mas deixou a votação para os deputados, como se o governo não tivesse responsabilidade na articulação política que leva à aprovação de projetos no Congresso.
Dormindo com o inimigo
Ainda durante a reunião da Conatrae, Rodolfo Tavares, representante da Confederação Nacional da Agricultura e da Pecuária, atacou a “lista suja” do trabalho escravo. O representante da CNA, que apesar de ser membro permanente da comissão raramente aparece nas reuniões, afirmou que a relação de empregadores que utilizaram trabalho escravo é um rito de julgamento sumário, pois o fazendeiro que entrou na lista não teve necessariamente seu processo transitado em julgado na Justiça. “Não aceitamos um tribunal de exceção, pois isso é vetado pela Constituição de nosso país”.
Instrumento decorrente da fiscalização, a “lista suja” do trabalho escravo possui atualização semestral, sendo que três relações já foram divulgadas, totalizando 165 nomes. Segundo as regras do Ministério do Trabalho e Emprego, a inclusão do nome do infrator acontecerá após o final do processo administrativo criado pelos autos da fiscalização. A exclusão, por sua vez, depende de monitoramento do infrator pelo período de dois anos. Se durante esse período não houver reincidência do crime e forem pagas todas as multas resultantes da ação de fiscalização e quitados os débitos trabalhistas e previdenciários, o nome será retirado.
Tavares defendeu também mudanças na legislação trabalhista brasileira para diminuir a pressão sobre os proprietários rurais. “É impossível em uma lavoura de batata, de feijão, de abertura de novas plantações aplicar a legislação trabalhista”, afirmou. “A CLT é incompatível com a natureza do trabalho rural.”
Boa parte dos membros presentes da Conatrae refutaram as alegações de Tavares. O MTE, representado pelo auditor Marcelo Campos, rechaçou o termo “tribunal de exceção” lembrando que a fiscalização do trabalho cumpre uma função prevista em lei e que todo o auto de infração aplicado tem amplo direito de defesa. O próprio Nilmário Miranda lembrou a Tavares que, de acordo com números do grupo móvel de fiscalização, apenas uma ínfima minoria dos empregadores rurais utilizam trabalho escravo. Eles seriam, portanto, a exceção à regra e como tais deveriam ser combatidos.