Artigo Que pena, Papai Noel existe

Artigo - Papai Noel não contemplou com o FUNDEB as crianças em idade de creche. Deixou de priorizar a Erradicação do Trabalho Infantil ao acabar com os Grupos Especiais de Combate ao Trabalho Infantil. Essa nova versão de Papai Noel talvez não saiba que as crianças continuam trabalhando, pois elas não lhes enviam cartas, porque não aprendem nada na escola
Por Marinalva Cardoso Dantas
 10/12/2005

Na minha infância, descobrir que Papai Noel não existia era tão marcante quanto descobrir que não éramos trazidos por nenhuma cegonha. Essas duas realidades eram guardadas pelos adultos com todo o zelo, para contar às crianças aos pouquinhos e com muito jeito, a fim de não causar traumas.

Diferentemente, porém, de toda criança, a “revelação” sobre Papai Noel me fez muito mais feliz, pois só no princípio me deixei levar por aquela conversa do bom velhinho que passava o ano inteiro fabricando brinquedos para distribuir com a infância de todo o mundo. Para receber tais mimos, bastava ser obediente, estudiosa e escrever–lhe uma cartinha.

Comecei a implicar e ficar com raiva dessa lendária figura, quando fui lesada por anos seguidos, me comportando exemplarmente, sendo a primeira aluna da turma, disciplinada e ainda achava que minha cartinha seria a mais bem feita. Pedia sempre a boneca beijoca, por me achar merecedora.

Ia dormir felicíssima, depois de conferir o banquete feito para Papai Noel, o qual, conforme diziam meus tios, viria fazer uma visita e comer um pouquinho, enquanto cumpria sua tarefa de me deixar o esperado presente (só Papai Noel sabia que era a beijoca). Nunca entendia como ele conseguia comer tanto, em todas as casas do mundo numa única noite.

Mal amanhecia o dia, já pulava da cama para receber minha beijoca. Surpresa: Papai Noel tinha me enganado novamente, deixando um conjunto de mobília de boneca. Pensava: “Será que ele se chateou com minha reclamação do ano passado?”. Saía para ver se os meus vizinhos também tinham recebido presentes diferentes dos pedidos, ou quem sabe, Papai Noel havia se enganado e trocado meu presente com o da minha vizinha? Não, todos haviam recebido o que pediram. Pior que isso: o meu vizinho mais desobediente, que matava passarinho e não gostava de estudar, havia ganhado uma bicicleta! Um dia cansei e desisti de acreditar em Papai Noel, não na sua existência, mas comecei a entender que ele não cumpria promessas e era injusto. Era elitista, mal agradecido (nossas ceias eram ótimas) e já estava achando até sua roupa ridícula para o calor que fazia aqui em Natal. Perguntava-me porque ele só atendia às crianças ricas, com chaminé, sapatos de lã e que sabiam escrever cartas. As crianças pobres que via na rua no dia 25 de dezembro, não tinham presente nenhum, nem uma sandália sequer, visto que estavam descalças. Mas, coitadas, nem elas nem suas mães sabiam ler, como escreveriam as cartas?
Chegou o grande dia: meu vizinho perverso veio me contar o grande segredo, pensando que me faria chorar:

– Papai Noel não existe.
– O que?
– Papai Noel não existe, é tudo mentira. Quem dá presente pra gente é o pai de cada um.

Não acreditava no que ouvia! A inexistência de Papai Noel me fez sonhar de novo. Eu não estava sendo injustiçada! Talvez valesse à pena ser correta. Meu vizinho não entendeu porque dei tanta risada e corri alegre para casa.

Hoje, até entendo Papai Noel e acho que valeu a pena ter existido na minha vida por ter motivado alguns sonhos.

Afinal, se ele passava o ano inteiro fabricando brinquedos para distribuir com meninos e meninas, certamente sabia que a brincadeira, o brinquedo, o lúdico, é tudo o que se deve propiciar às crianças. Criança precisa de brincadeira e de fantasias, porque é a forma de entender e enfrentar o mundo, ensaiando diálogos com seus amigos imaginários, dublando bonecos, dando-lhes vida e fala, para repetir cenas da vida e organiza-las no cérebro. Acho que essa exigência de escrever cartas para receber presentes, devia ser para estimular as crianças a irem para a escola. Logo, Papai Noel era contra o trabalho infantil, que inviabiliza tudo isso. Se fosse um personagem real, ele estaria na presidência da ABRINQ, com certeza.

Em 2002, voltei a ser assombrada por aquela figura do Papai Noel que me enganava sistematicamente, o qual está dando mostras da sua existência, usando o nome de “Presidente Amigo da Criança”. Esse Papai Noel tem barba branca, mas anda de terno e gravata, mora num planalto e não tem renas, mas um enorme avião.

O Papai Noel brasileiro me prega peças há três anos, desde o dia em que, a caminho da seção eleitoral me deparei com crianças no semáforo vendendo de tudo e limpando pára-brisas. Ao pegar a cédula, estava colocando na urna novamente uma cartinha com um sonho: na próxima eleição, quero que você tenha acabado com a exploração e miséria das crianças no Brasil, conforme promessa.
A oficina do meu novo Papai Noel do Planalto, onde os agentes trabalhariam duramente para isso, infelizmente foi ocupada por ilusionistas, que encantam platéias, mas de fato, estão acometidos da síndrome de Herodes. Nas ruas, as crianças trabalham como nunca, até de madrugada.

Na festa organizada por Papai Noel, as crianças ficaram de fora. No dia 07.09.2004, enquanto Papai Noel com seus artífices e ilusionistas se regozijavam, uma criança vendia bebida alcoólica em frente ao seu palanque, sem saber o que era civismo, infância ou cidadania.

Antes de Papai Noel ter reaparecido, as crianças eram recebidas no Palácio no dia 07 de setembro.
Essa nova versão de Papai Noel talvez não saiba que as crianças continuam trabalhando, pois elas não lhes enviam cartas, porque não aprendem nada na escola. Lógico, trabalham tanto!

Papai Noel não contemplou com o FUNDEB as crianças em idade de creche. Deixou de priorizar a Erradicação do Trabalho Infantil ao acabar com os Grupos Especiais de Combate ao Trabalho Infantil no MTE, os quais se dedicaram com sucesso, por 10 anos, a combater o trabalho infantil e tanto contribuíram para que o país fosse reconhecido internacionalmente por ações exitosas, caminhando para ser a primeira nação do mundo a erradicar o trabalho precoce.

Essa medida, no entanto, poupou o Papai Noel de ter que voar muito longe para ver as crianças trabalhadoras. Na W III, perto da sua oficina, as crianças já o esperam nos semáforos fazendo acrobacias e mandando cartinhas com a indicação do seu presente de natal.

Como pude, depois de adulta, me deixar enganar novamente pela lenda de Papai Noel? Talvez a canção “sem medo de ser feliz” tenha sido embriagante. Enquanto espero que alguém me diga novamente que ele não existe, só me resta resignar-me e cantar neste natal aquela velha musiquinha.

“Papai Noel, vê se você tem a felicidade, pra você me dar”.

Marinalva Cardoso Dantas é coordenadora do Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho da Criança e Proteção do Adolescente Trabalhador do Rio Grande do Norte

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