Apesar de não figurar entre os países que devem reduzir emissões segundo o Protocolo de Quioto, em vigor desde fevereiro de 2005, o Brasil está entre o dez que mais emitem gás carbônico na atmosfera. Do volume total de lançamentos desse gás, 74% advêm do desmatamento, outros 23% têm origem na queima de combustíveis fósseis e 3% são contribuições industriais.
Boa parte das florestas da região Sul do Pará já foi extraída, dando lugar à agropecuária (Foto:Leonardo Sakamoto) |
A expansão da fronteira agrícola rumo ao norte do país, devido ao aumento das plantações de soja e ao crescimento das atividades pecuárias, já faz com que 14% da Amazônia esteja degradada, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Ainda de acordo com o órgão, entre 2001 e 2002, o Brasil perdeu 23.266 km 2 de floresta; no ano seguinte, foram 24.597 km 2 e, em 2003/2004, o Instituto registrou 27.200 km 2 a menos de mata. Esse ano, a divulgação do desmatamento de 2004/2005 foi um alívio para o governo e todos nós: houve uma redução de 31% no desmatamento na região da Amazônia Legal, segundo dados divulgados pelo Inpe no início de dezembro. A ministra do meio-ambiente, Marina Silva, atribui o avanço ao Plano de Prevenção e Controle, criado no fim de 2004. No entanto, ela também ressalta que as ações devem ser reforçadas, para que esse ganho possa ser perene.
Outro fator que contribui para compor esse quadro, além das queimadas, é o modo de vida que levamos, de consumo excessivo, que exige uma produção cada vez maior. Em todo o mundo mundo, as emissões de gases de efeito estufa aumentam ano a ano, acompanhando o incessante crescimento industrial e tecnológico: durante a década de 90, elas cresceram 6% e, apenas nos Estados Unidos, 13%. "No instante em que cada um dos um bilhão de chineses quiser uma televisão, um carro e um celular, o planeta não se sustenta. Todo mundo vai para os ares", exemplifica Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física (IF) da USP.
Padrão de consumo em grande escala gera toneladas de lixo diariamente e incentiva a queima de fontes não-renováveis de energia |
Para Américo Kerr, especialista em Física Ambiental, também professor do IF, o sistema de transportes individual baseado no automóvel é um grande contribuinte para o superaquecimento. "A solução possível para a redução de gases de efeito estufa é também a mais racional: a mesma que irá reduzir a poluição em geral e proporcionar um deslocamento mais rápido do cidadão", conclui. Nesse sentido, comprar um carro não significa apenas começar a gastar combustível fóssil para circular: o próprio veículo é feito com material plástico, borracha e possui componentes químicos perigosos, como a bateria.
O principal resultado desse processo é o aquecimento global: em um século, a temperatura média do planeta sofreu aumento de aproximadamente 1 oC. Se antes os cientistas faziam previsões a longo prazo sobre as possíveis conseqüências do aumento da temperatura, elas já se fazem notar. Nunca houve tantos furacões nos Estados Unidos e na América Central como em 2005, por exemplo. Nem o Brasil foi poupado, com a passagem do Catarina pela região sul.
As projeções do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), órgão criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para pesquisar as mudanças climáticas, indicam que essa média poderá se elevar ainda mais até o fim desse século, de 1 a 4 oC. Pode parecer exagero, mas a elevação de cada grau centígrado tem influência sobre o equilíbrio do clima, agindo sobre padrões de vento, chuva e comportamento dos oceanos. Assim, é possível que, nos próximos anos, furacões como o Katrina, que destruiu Nova Orleans, nos Estados Unidos, se tornem mais freqüentes. Outros acontecimentos possíveis são a extinção de algumas espécies, pela mudança dos ecossistemas, bem como a falta d`água, devido à desertificação de algumas regiões, e a elevação do nível do mar.
Frente a esse cenário, embora exista consenso em todos os setores da sociedade sobre a necessidade urgente de se agir sobre o lançamento de gases de efeito estufa na atmosfera, ainda não se chegou à conclusão de quem deve ceder para que isso de fato ocorra. A consciência ambiental tem o limite do bolso. Nesse contexto, a polêmica se volta para as soluções trazidas pelo Procolo de Quioto, que entrou em vigor em fevereiro de 2005 (ver boxe). Já está valendo o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), que possibilita a troca de "permissões para poluir" entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, com o objetivo de atingir a meta de redução das emissões de gases de efeito estufa.
O novo artifício traz ao debate ambiental a idéia de compensação: em vez de uma empresa na Holanda ter que gastar grandes somas na reformulação de seu processo produtivo, ela pode investir, no Brasil, em projetos de redução de emissões ou captura de carbono da atmosfera, massa que se convencionou chamar de crédito-carbono ou carbono equivalente.
O professor Luiz Pinguelli Rosa, da Coordenação dos Programas de Pós-graduação de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas (FBMC), coloca o desafio ambiental numa encruzilhada mais ampla. "Trabalhar a mudança do padrão de vida é difícil, porque a ideologia que predomina, o neoliberalismo, é quase um salve-se quem puder, estimulado pela teoria econômica que tem como princípio a livre competitividade e o individualismo." Para ele, é preciso olhar não apenas para as ações do governo, mas para essa cultura, que "é ensinada na escola, está no jornais, é repassada pelas famílias". Por essa razão, ele pontua que "o MDL é insuficiente, porém eficiente no que se propõe".
Legislação versus Mercado
Apesar de ser considerado, por ambientalistas e pesquisadores da área, como passo necessário à contenção do aquecimento global, o MDL é tido como um instrumento de remediação e não de resolução final do problema, pois ele é resolvido por critérios de mercado e não pela regulamentação dos governos. Carl
os Rittl, coordenador de clima da Organização-Não-Governamental Greenpeace, coloca que, nesse âmbito, o caminho se descola da situação climática real, já que introduz a lógica do lucro. "O essencial deixará de ser discutido."
O crescente o interesse do empresariado brasileiro em discutir a questão e o número de projetos MDL nacionais, contudo, revela que o setor é parte importante na contenção do aquecimento global. Marina Grossi, economista do Conselho Empresarial Brasileiro de Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) acredita que o Mecanismo torna financeiramente viável a participação da iniciayivaprivada. "Não existe essa visão de que empresas só buscam lucro e governo visa apenas o social. As empresas estão cada vez mais percebendo que só serão perenes se tiverem uma atenção tripla, buscando desenvolvimento econômico, social e ambiental."
Aterro do NovaGerar, em Nova Iguaçu,recebe por dia cerca de mil toneladas de resíduo urbano, mais 3 mil de comércio e indústrias |
Ainda há muita desinformação sobre o que o empresariado pode ou não fazer sobre o crédito-carbono. "As pessoas acham que vão salvar o mundo com isso e ainda vão ganhar muito dinheiro. Não vão", afirma Ricardo Esparta, consultor em ecoinvestimentos. O dinheiro da venda das "permissões para poluir" no mercado, ao menos pelo preço atual médio de cinco dólares a tonelada de carbono, é suficiente apenas para suprir os custos com o projeto. Entretanto, Esparta avalia que o preço dessa commodity tende a subir, pois "o MDL está começando e ainda existem muitos riscos".
Negócios ambientais
O Brasil abriga um terço do projetos de MDL do mundo. Já há dois deles funcionando, ambos de aproveitamento do gás metano em aterros sanitários para produção de energia: o Vega Bahia, em Salvador (BA), e o NovaGerar, em Nova Iguaçu (RJ). Se forem aprovados, os 74 projetos existentes irão gerar cerca de 130 milhões de toneladas de carbono equivalente, em seu primeiro período de operação – que pode ser de sete ou 10 anos. Esse total significa 31% das emissões brasileiras de 1990 (ano-base que definiu os compromissos em Kyoto), dado que está sendo comemorado pelo governo. Mas, se comparado às 776,331 milhões de toneladas de carbono equivalente lançadas pelo Brasil apenas em 1994, de acordo com inventário feito pelo próprio governo e divulgado em novembro de 2004, a massa de gás "economizada" pelo MDL torna-se insignificante.
A maioria dos projetos brasileiros estão ligados à área energética, pois o País tem tradição no setor e a técnica de implementação está bem difundida. Outros 21 projetos propõem tratamento de resíduos e aproveitamento do gás metano e apenas um vem da indústria química – sozinho, ele vai gerar 40 milhões de toneladas de carbono equivalente em seu primeiro período.
A agricultura não foi contemplada como setor válido para contribuir com o Protocolo de Quioto, pelo menos até 2012. As reduções obtidas por empreendimentos nessa área – muitos iniciados inclusive antes da ratificação do acordo – podem ser negociadas, por exemplo, com empresas norte-americanas que cumprem leis estaduais de contenção das emissões (apesar de os EUA não terem aderido ao Protocolo). Grande parte das propostas se relaciona à aplicação de práticas tradicionais do solo, como o plantio direto, que reduz emissões por não revolver a terra. "A contribuição é de aproximadamente 0,5 toneladas de carbono por hectare por ano" afirma Carlos Eduardo Pelegrino, engenheiro agrônomo e pesquisador do Centro Energia Nuclear aplicada à Agricultura (Cena) da Esalq da USP. Outra iniciativa é, no cultivo do arroz, substituir a espécie tradicional por variações do "arroz de sequeiro", que reduz a necessidade de inundar a plantação (áreas inundadas emitem gás metano, pela decomposição de matéria orgânica).
Na atividade pecuária, também já existem iniciativas, já que o Brasil possui aproximadamente 180 milhões de cabeças de gado. Os estudos vão no sentido de melhorar a alimentação e mesmo modificar geneticamente o animal, para reduzir as emissões de metano (21 vezes mais prejudicial à atmosfera que o gás carbônico). "Mesmo que esse ganho seja pequeno, em grande escala a contribuição é importante", sinaliza Pelegrino.
Iniciativas de reflorestamento também pleiteiam créditos-carbono nos mercados paralelos, pois, apesar de previstas no MDL, apresentam complicações. Sua metodologia ainda está sendo discutida, devido à dificuldade de medir o carbono absorvido pelas árvores em crescimento, particularmente se forem de espécies diferentes, como ocorre em uma floresta nativa. Além disso, nem todas preenchem o critério da adicionalidade previsto pelo Mecanismo, já que o reflorestamento é uma atividade praticada há muito tempo, com objetivos comerciais. Também se coloca a questão do controle dessas áreas, uma vez que o governo já enfrenta obstáculos para fiscalizar as florestas ainda em pé. Carlos Rittl, do Greenpeace, propõe que uma parte do dinheiro adquirido pelas empresas com o MDL seja aplicada na principal fonte de emissões do Brasil: o desmatamento. A verba serviria para, por exemplo, reforçar a capacidade de fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio-Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e estruturar órgãos ambientais estaduais, vinculando os créditos-carbono a uma ação permanente nessa área.
A face humana do MDL
Na cidade de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, já está em atividade o NovaGerar, primeiro projeto aprovado pelo MDL no mundo. O município, de um milhão de habitantes e com altos índices de pobreza, hospeda o projeto do Aterro Sanitário de Adrianópolis, numa parceria pública-privada entre a Prefeitura de Nova Iguaçu e a empresa S.A. Paulista. Além de evitar o lançamento na atmosfera do gás metano, utilizando-o na produção de energia, é feito o tratamento do chorume do aterro, resíduo líquido da decomposição da matéria orgânica. A água, limpa, é depois devolvida ao ambiente.
Fez parte do empreendimento, que começou em 2003, recuperar a área do antigo lixão do município, onde estavam em atividade 89 catadores. Marlene Barbosa, hoje com 52 anos, colheu garrafas PET e materiais de alumínio durante os 17 anos de existência do lixão de Marambaia. "Sempre mex
i com lixo, desde que meu marido parou de trabalhar no cais. Eu ficava lá das cinco às cinco", lembra, já sem saudades. Atualmente, ela está empregada no viveiro de mudas do NovaGerar e garante que, apesar de ganhar menos, tem carteira assinada e lucrou em qualidade de vida. "Aqui aprendi muito, faço mudas para o reflorestamento, conheço um monte de plantas e sei preparar as sementes", diz, mostrando com um sorriso o resultado de suas obras.
Marlene Barbosa, ex-catadora da garrafas PET,que hoje trabalha no Viveiro de Mudas do NovaGerar |
Como Marlene, outros 25 ex-catadores que não tinham outra ocupação foram realocados no novo projeto: a maioria está no viveiro de mudas, dez se tornaram catadores e varredores da rede municipal e outros são hoje operadores das máquinas do Aterro de Adrianópolis. É o caso de Leandro da Silva, de 23 anos, que se manteve dois anos e meio em Marambaia como catador de papelão, ganhando em média R$ 200,00 por semana. "Tinha dia que eu ia embora depois de duas horas mas, quando eu precisava de dinheiro, ficava até escurecer, pisando em cacos". Ele conta que trabalhava descalço e sem luvas, mas que "graças a Deus, nada nunca aconteceu".
Leandro, 23 anos, colhia papelão no antigo aterro de Marambaia. Hoje opera máquinas |
Os projetos de MDL devem abranger as áreas ambiental e social, na linha do desenvolvimento sustentável. Dessa forma, houve estudo e mapeamento das necessidades da população das 13 comunidades em torno de Adrianópolis, periferia de Nova Iguaçu. Foram então criados cursos de alfabetização de adultos, confecção mobiliar usando garrafas PET e aproveitamento de embalagens. Uma parceria entre a Prefeitura o SESC deu origem a um programa de educação ambiental para as escolas.
Futuro sustentável
O projeto de Nova Iguaçu prova que a discussão sobre questões ambientais esbarra cada vez mais na pauta social. Há pessoas que consomem energia em excesso e outras que quase não consomem. Para verificar isso na prática, basta lembrar quem foram os maiores prejudicados com a crise do "apagão", há alguns anos. Marcelo Rocha, pesquisador do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq da USP, expõe que é preciso incluir uma boa parcela da população que ainda não tem consumo mínimo. "O problema é mexer com gente que têm padrão elevado e não quer abrir mão dele". Pinguelli, do FBMC, faz um alerta: "Ou o mundo resolve as questões ambientais e sociais ou caminhamos para uma via difícil e deixamos péssimas condições para as gerações futuras." Na mesma linha, eficiência energética é outro ponto colocado por muitos especialistas na questão, afinal, gastamos muita energia para consumir pouco. "Precisamos evitar o desperdício e buscar urgentemente outras fontes mais limpas", avalia o ambientalista Rittl.
Ainda que lentamente, já começa a se traçar uma mudança de comportamento em direção à consciência ambiental. Rocha, do Cepea, defende um a combinação de forças para continuar avançando: um controle forte por parte do governo, acompanhado de caminhos traçados pelo mercado. "As próprias empresas estão percebendo que ter preocupação ambiental é um bom negócio. Por outro lado, o MDL abre uma porta para começarmos a nos questionar: será que preciso comprar um novo celular? Outro carro?". A engenheira Adriana Felipetto, da CTR Nova Iguaçu – empresa da S.A. Paulista para o NovaGerar– lembra que não se pode ignorar a grande contribuição de ações locais como a desse projeto. "Mudar a cabeça das pessoas demora muito tempo. Transformar um lixão em um aterro demora só um ano e muda a vida de muita gente", frisa.
A última Convenção Mundial de Mudança do Clima/Convenção entre as partes do Protocolo de Quioto (COP11/MOP1), que aconteceu de 28 de novembro a 9 de dezembro em Montreal, Canadá, iniciou o processo para a continuação do acordo após 2012. Segundo Marina Grossi, do CEBDS, conseguir que o Protocolo continuasse valendo depois dessa data foi uma grande vitória. Assim, será ainda mais difícil que os países, ainda que estejam de acordo sobre a importância de seguir sob o acordo, decidam por um aumento das metas ou medidas mais drásticas na contenção do aquecimento global. Paralelamente, o Brasil, junto com a Papua Nova Guiné e a Costa Rica, propôs, pela Convenção – fora, portanto, do âmbito das tarefas fixadas por Quioto – a existência de incentivos para países subdesenvolvidos conservarem suas florestas. Segundo o discurso da própria ministra Marina Silva na COP11/MOP1, além de promover significativa redução das emissões globais de gases de efeito estufa com a contenção do desmatamento, essa alternativa assegura propostas de desenvolvimento que valorizem a floresta em pé, maximizando os benefícios da exploração sustentável dessas áreas e promovendo a correta distribuição dos benefícios econômicos.
Projetos MDL devem ter cunho social. No Aterro de Adrianópolis, foram contratados várioas ex-catadores, como Marlene, Rosemberg, Sérgio e Leandro (esq.para a dir) |