O lado azedo da cana

A cana atravessa um novo ciclo. As exportações de açúcar e o consumo interno enchem de esperanças os grandes usineiros. Por outro lado, as condições de trabalho degradante a que são submetidos os cortadores de cana ainda preocupam sindicalistas e movimentos sociais
Texto e Fotos: Carlos Juliano Barros
 09/12/2005

Em abril deste ano, a Organização Mundial do Comércio (OMC) atendeu a reclamação de um grupo de importantes produtores de açúcar, formado por Austrália, Brasil e Tailândia, e considerou ilegais as exportações dessa valiosa commodity feitas pela União Européia. Nas nações do Velho Continente, ela é fabricada com subsídios oferecidos pelos governos, ajuda indispensável para garantir sua competitividade no mercado internacional. “Nós não estamos perdendo, mas deixando de ganhar algo em torno de US$ 400 milhões por ano em negócios não realizados”, afirma Fernando Ribeiro, secretário-geral da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica), entidade que congrega os maiores empresários do ramo.

A sentença da OMC representou uma injeção de ânimo para as usinas nacionais que, a curto prazo, esperam incrementar ainda mais suas vendas externas. Ela também é um indício de que, definitivamente, o país vive um novo ciclo da cana-de-açúcar. As plantações, que já ocupam seis milhões de hectares, só fazem crescer. No interior de São Paulo, responsável por quase 60% de toda a produção brasileira, uma verdadeira corrida para o oeste está em curso. A cada nova safra, áreas antes destinadas a pastagens e ao cultivo de laranja cedem espaço à cana. Na zona da mata nordestina, a monocultura segue inabalável faz cinco séculos, e muitos usineiros começaram a apostar suas fichas nos estados de Goiás e Mato Grosso, tradicionais redutos da soja.

Atualmente, a menina dos olhos do setor sucroalcooleiro não é o açúcar, cujo mercado o Brasil lidera há quase uma década. Com o preço do barril de petróleo nas alturas, o álcool está novamente ganhando espaço como alternativa à gasolina. E os números não deixam dúvidas. Hoje, de cada dez carros novos vendidos no país, seis são do tipo flex. Essa febre por automóveis bicombustíveis reacendeu o vigor das destilarias, que devem gerar 17 bilhões de litros, em 2005. Há quase duas décadas não se produzia tanto álcool assim.

O novo ciclo da cana é reflexo de mudanças que redesenharam a feição dessa área do agronegócio nacional que movimenta R$ 40 bilhões ao ano. O governo deixou de intervir na definição do preço do álcool e no planejamento da economia do setor, como fazia na época do regime militar, período em que foi criado o Proálcool. A iniciativa privada assumiu a responsabilidade de tocar os negócios, seguindo os princípios da liberdade de mercado. As usinas estão contratando profissionais especializados para modernizar sua gestão, diluindo o caráter familiar que se via em um passado recente. No meio rural, a mecanização vem se intensificando.

Trabalhadores são empurrados para casas em péssimo estado, na periferia das cidades

Porém, essa metamorfose também traz alguns efeitos colaterais preocupantes. “A expansão das plantações está criando um processo de concentração fundiária. A pressão social vai se acentuar através da luta de grupos engajados na reforma agrária”, garante Ariovaldo Umbelino de Oliveira, professor do departamento de geografia da Universidade de São Paulo (USP). Além disso, problemas crônicos – como a miséria e as condições degradantes de trabalho a que são submetidos os cortadores de cana – parecem longe de serem solucionados.

A verdade é que, enquanto empresários e governo comemoram a boa fase do setor sucroalcooleiro, essa expansão está deixando sindicalistas e militantes de movimentos sociais de cabelo em pé. “Infelizmente, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva luta na OMC pelo fim dos subsídios praticados pela União Européia, ele fortalece o modelo tal como ele se encontra, baseado na superexploração dos trabalhadores. É necessário discutir urgentemente esse sistema de produção”, comenta Bruno Ribeiro, advogado da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco (Fetape), entidade que representa 100 mil cortadores de cana, em todo o estado.

Histórico

A cana começou a ser cultivada nas ilhas da Polinésia, durante a Antigüidade, e logo iniciou uma longa jornada rumo à América. Passou pela China e pela Índia, mas foi durante o florescimento da civilização persa que se desenvolveram métodos de cristalização do mel da planta, processo pelo qual se obtinha uma espécie rudimentar de açúcar. A Europa só passaria a consumir em larga escala esse doce alimento a partir do século 10, com a expansão para o ocidente do império islâmico, que havia assimilado a tecnologia dos persas.

Não tardou muito para que a demanda por açúcar no Velho Continente crescesse vertiginosamente. A conquista da América foi a saída encontrada para contornar o problema da falta de locais apropriados para o desenvolvimento da cana. “Já se trata de um fenômeno de globalização: know-how islâmico, terras ameríndias, mão-de-obra africana, e capital europeu”, explica Cristine Dubat, professora de história da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

As primeiras mudas chegaram ao território tupiniquim supostamente pelas mãos de Martim Afonso de Souza, em 1532, que aportou em São Vicente, litoral de São Paulo. Porém, alguns estudiosos do tema afirmam que o açúcar fabricado por aqui já era mandado para a Europa desde a segunda década do século 16. Discussões acadêmicas à parte, o fato é que a cana sempre ocupou os solos mais férteis do Brasil e foi o primeiro instrumento encontrado pela coroa portuguesa para consolidar o domínio efetivo sobre a nova colônia, atraindo interesses de investidores.

O sistema de produção baseado na monocultura, na mão-de-obra escrava, e na grande propriedade protegida pelo Estado, é um dos elementos essenciais para compreender a perversa concentração fundiária e o grau de extrema pobreza que ainda hoje se verificam no meio rural, principalmente no Nordeste. “Construíram um mito de que a cana é vocação natural da região. No Vietnã e na China, por exemplo, ela é cultivada em consórcio com outras plantas, e divide espaço com a criação de animais. Entretanto, a zona da mata sempre importou a maior parte dos alimentos consumidos no dia-a-dia. Por que aqui só se pode produzir cana?”, indaga Cristine.

Nas capitanias hereditárias de Pernambuco e Itamaracá, mais próximas dos portos europeus, o que facilitava o escoamento da produção e a chegada de negros africanos para a lida, a cana fez sua morada durante o período c
olonial. Ela também moldou a estrutura social daquela porção do Brasil. Durante muito tempo, a autoridade desmedida dos senhores de engenho só foi desafiada pelos gritos de liberdade que ecoavam da boca dos escravos importados para o eito.

“Mesmo com a abolição da escravatura, em 1888, os trabalhadores não tinham para onde correr e permaneceram nos engenhos. Até os anos 1930, os jornais tratavam a população local como recurso natural”, conta Cristine. Assim, o poder dos famigerados coronéis não foi estremecido. É o que prova a literatura de importantes escritores nordestinos, como José Lins do Rego e João Cabral de Melo Neto, retrato fiel desse ciclo que incorporou o Brasil ao comércio mundial e foi o principal gerador de divisas para o país, por muito tempo.

No Centro-sul, o desenvolvimento da economia canavieira é mais recente. A partir do final do século 19, descendentes de imigrantes italianos, que enriqueceram com o café, passaram também a investir na cultura que já tinha fincado raízes profundas na zona da mata nordestina. Assim, no interior de São Paulo, os campos destinados a pastos, ao algodão, e ao próprio café, foram pouco a pouco perdendo importância. Os canaviais iniciaram a marcha por Campinas e subiram até conquistar a área de Ribeirão Preto, atual coração do setor sucroalcooleiro nacional.

Em 1929, foi construída a primeira destilaria do Brasil, na cidade de Piracicaba. Entretanto, o uso do etanol como combustível é anterior a essa data. Desde a Primeira Guerra Mundial, já se produzia essa alternativa à gasolina de maneira tímida e artesanal. Mais tarde, como resposta à famigerada crise do petróleo de 1973, o governo militar apostou em um programa de fôlego para conquistar a independência energética do país e, dois anos depois, criou o Proálcool.

Por ter sido implementado em escala nacional, numa época em que as despesas com geração e distribuição desse novo combustível se mostravam mais altas do que as da gasolina, o programa só obteve êxito enquanto os empresários do ramo contaram com a boa vontade e os financiamentos concedidos pelas autoridades brasileiras. Ao contrário dos dias atuais, o preço do álcool nas bombas era fixado por lei a, no máximo, 65% do valor cobrado pela gasolina. Se os custos de produção fossem superiores ao montante arrecado pelas vendas, a Petrobrás arcava com os prejuízos.

Havia outras estratégias para garantir o sucesso do Proálcool. Até 1989, por exemplo, quem comprasse um carro movido com o suco destilado da cana tinha desconto no Imposto de Propriedade de Veículos Automotores (IPVA). Mas o fantasma do desabastecimento, já que as usinas não davam conta de suprir a demanda, desestimulou a venda de carros a etanol. O programa, que onerou de forma violenta os cofres públicos, foi morrendo aos poucos até ser extinto na década de 90.

Ariovaldo Oliveira: expansão da cana vai agravar a concentração de terra no país

É justamente em meados dos anos 70 que as indústrias do Centro-sul assumem o posto de maiores produtoras de açúcar e álcool, ao atingirem um patamar tecnológico superior às usinas nordestinas. Atualmente, Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Bahia, juntos, contribuem com apenas 15% do total. Porém, essa inversão de papéis também trouxe sérias conseqüências. Sem dúvida, o crescimento do êxodo de trabalhadores em busca de melhores condições de vida é uma das mais preocupantes. “Com a cana de São Paulo, introduz-se o trabalho assalariado na agricultura brasileira. Desde a década de 1930, existe uma classe de migrantes que pode ser considerada a origem dos bóias-frias”, completa Ariovaldo Oliveira.

Negócios em alta

De acordo com dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o valor das vendas externas de açúcar e álcool atingiu a cifra de US$ 4 bilhões, entre junho de 2004 e junho de 2005. Juntos, eles ocupam a terceira posição na pauta de exportações do agronegócio brasileiro, atrás somente da soja e do complexo de carnes. A tendência é de crescimento, tanto dos negócios como da produção.

Em todo o Centro-sul – onde o clima e os solos planos, que permitem a mecanização do corte, são mais propícios para o cultivo da cana do que no Nordeste – há pelo menos 43 projetos de novas unidades industriais que devem entrar em pleno funcionamento na próxima década. Os investimentos previstos são da ordem de US$ 3 bilhões e vão aumentar a capacidade de moagem em 60 milhões de toneladas por safra. Dados do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), entidade que dá suporte técnico ao setor sucroalcooleiro, mostram que as plantações de cana no interior de São Paulo cresceram quase 500 mil hectares, nos últimos cinco anos. Até 2010, a meta é ampliar as lavouras e agregar mais um milhão.

Apesar de abrir um valioso horizonte para os usineiros no futuro próximo, a decisão da OMC que considerou ilegal a exportação do açúcar fabricado com subsídios no Velho Continente não é o principal motivo para explicar por que a cana ressuscitou. “O Brasil não vai deixar de abastecer o mercado externo, mesmo se a cotação dessa commodity estiver baixa. Nós temos os menores custos de produção do planeta. Porém, o crescimento mundial do mercado de açúcar é muito lento, já que ele é mandado para países não muito desenvolvidos”, explica Ribeiro. Das 27 milhões de toneladas produzidas aqui, 17 vão parar na mesa dos consumidores de outras nações. Mas Europa e Estados Unidos, por exemplo, não importam o produto brasileiro.

Por esses motivos, a bola da vez é o álcool. Na verdade, há dois tipos. O primeiro é conhecido por anidro, que pode ser adicionado à composição da gasolina – no Brasil, ele está presente em 25% de sua fórmula. A segunda modalidade é o hidratado, utilizado como combustível propriamente dito nos motores de automóveis. Com a assinatura do Protocolo de Kyoto, que prevê a redução nas emissões de gás carbônico proveniente da queima de derivados de petróleo por parte dos países signatários, o suco destilado da cana acena como opção para atenuar os índices de poluição. Em 2003, por exemplo, o parlamento japonês autorizou a mistura de 3% de álcool anidro à gasolina vendida nos postos nipônicos.

Essa é uma das razões para entender por que as exportações – que hoje estão na casa de 2,7 bilhões de litros – triplicaram desde o início do século. A meta é que elas cheguem a 7 bilhõ
es, nos próximos cinco anos. O próprio governo federal não está medindo esforços para conquistar mercados. No primeiro semestre de 2005, uma comitiva liderada pelo presidente Lula foi até o Japão a fim de sensibilizar essa potência asiática para a compra do etanol brasileiro. Porém, o negócio ainda enfrenta fortes resistências das companhias locais de petróleo, que enxergam custos muito altos para adaptar o país à logística do álcool.

Mas o advento dos carros tipo flex é a grande esperança dos empresários do ramo. “As perspectivas são alentadoras. O Proálcool ressurgiu”, comemora Ribeiro. As estatísticas da Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) não deixam dúvidas de que o momento é mesmo de transformação. Em 2004, 65% dos carros vendidos em todo o país eram movidos a gasolina, enquanto 27% se enquadravam na categoria flex. Em apenas um ano, essa proporção praticamente se inverteu. Hoje, seis montadoras oferecem juntas 25 modelos de bicombustíveis e a tendência é de que outras também passem a fabricá-los.

Outro negócio promissor é a venda do excedente de energia elétrica não consumida na fabricação de açúcar e álcool, produzida a partir da queima do bagaço da cana. Neste ano, a capacidade das usinas brasileiras chegou à casa dos 1500 MW. Mas, na próxima década, projeções de especialistas dão conta de que o potencial chegue a 12000 MW – o equivalente ao que a hidrelétrica de Itaipu, a maior do país, é capaz de gerar.

A efervescência do setor pode ser detectada ainda por outro indicador: a entrada de multinacionais. A americana Cargill, gigante mundial do agronegócio, já comprou duas usinas no interior de São Paulo. Investidores franceses também adquiriram unidades industriais nessa região ou então aplicaram capital em grandes empresas nacionais. A longo prazo, especialistas acreditam que os atuais 120 grupos que controlam as 350 usinas espalhadas pelo Brasil vão se fundir em, no máximo, 15 ou 20. “As multinacionais não trazem nada, a não ser dinheiro. Há quem acredite que a tecnologia vai melhorar, mas hoje nós damos aula nesse quesito”, completa Ribeiro.

Todo esse sucesso não é fruto apenas da conjuntura favorável de mercado. Se o Brasil apresenta baixos custos na fabricação desses produtos, o que impulsiona o comércio interno de álcool e as exportações de açúcar, isso também se deve ao grau de miserabilidade de que são vítimas as centenas de milhares de cortadores da cana que alimenta usinas e destilarias, em todo o país. Enquanto governo e empresários comemoram a boa fase do setor sucroalcooleiro, o mesmo não se pode dizer dos trabalhadores rurais que há séculos esperam por uma distribuição menos desigual dos lucros obtidos pela economia canavieira.

Trabalhadores em baixa

“Quando tem que acontecer, os pés levam o corpo para a sepultura”, profetiza Francisco Conceição. Em março deste ano, ele deixou o município de Codó, no Maranhão, para tentar a vida nas lavouras do interior do estado mais rico da federação. Hoje, longe da família, lamenta a hora em que pegou a primeira condução que o levaria a Guariba, a 60 quilômetros de Ribeirão Preto. Desde julho, ele está impossibilitado de se dedicar a qualquer atividade braçal, devido a um acidente. Ao voltar de mais um dia comum de trabalho, em uma das usinas dessa região que já foi apelidada de Califórnia Brasileira, Francisco se desequilibrou ao descer do ônibus que transportava a turma de cortadores de cana de que fazia parte, e caiu com todo o peso do corpo em cima da mão esquerda. No atestado feito pelo médico, o parecer é “fratura exposta grave”.

A mão imobilizada pelo gesso o obriga a ficar o dia inteiro em casa, uma precária construção de dois quartos e uma sala onde ele e outros seis conterrâneos se amontoam e dividem o aluguel mensal de R$ 180. Francisco, assim como seus colegas maranhenses, é um “safrista”. Quando o serviço acabar, no começo de novembro, todos vão retornar para Codó levando o dinheiro que conseguiram juntar nos seis meses anteriores que atravessaram empunhando facões para as usinas onde foram admitidos.

Em Guariba, o piso salarial da categoria é de R$ 410, mas boa parte dos cortadores obtém rendimentos superiores, pois o pagamento varia de acordo com a produção. Quanto mais cana, mais dinheiro. Um empregado considerado eficiente retira, em média, 12 mil quilos por dia – recebendo R$ 2,50 por tonelada. Segundo um estudo da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), a produtividade era seis vezes menor, na década de 60. Nos anos 80, o trabalhador passou a extrair cerca de oito toneladas por dia. Hoje, o ritmo é de verdadeira disputa com as máquinas. Essa competição desumana motivou especialistas da Organização das Nações Unidas (ONU), em parceria com a Pastoral do Migrante de Guariba, a investigarem se o excesso de trabalho foi mesmo a causa das paradas cardio-respiratórias que levaram dez bóias-frias à morte, em canaviais da região, desde 2004.

Homens jovens e bem nutridos são os principais alvos dos feitores, funcionários das usinas que têm a missão de montar a turma de cortadores, cuidar do transporte e ainda fiscalizar a atividade. “Eles recebem uma comissão por produtividade e por isso não escolhem os de idade mais avançada. As pessoas com mais de 30 anos já não conseguem emprego com facilidade. São velhas demais para trabalhar, e novas demais para se aposentarem”, afirma Wilson Rodrigues da Silva, presidente do Sindicato dos Empregados Rurais (SER) de Guariba.

“Todos os anos chegam milhares de cortadores a São Paulo, vindos em sua maioria do Nordeste e do Vale do Jequitinhonha (MG). Apesar de a lei mandar que eles já tenham contrato assinado antes de deixarem suas terras, é muito difícil encontrar alguém com a carteira assinada no local de origem”, afirma Roberto Figueiredo, chefe da fiscalização rural da Delegacia Regional do Trabalho de São Paulo (DRT/SP).

  Detalhe da mão de um “gato”: controle da produção dos trabalhadores por ele aliciado

As condições de moradia desses migrantes é outro fator que preocupa Figueiredo. Muitos são trazidos por “gatos”, agenciadores que sobrevivem do recrutamento de mão-de-obra barata em lugares distantes das propriedades das usinas. Como os alojamentos nas áreas rurais não dão conta de abrigar todos os trabalhadores, eles são empurrados para moradias em péssimo estado, nas periferias das cidades, assim como os maranhenses de Codó. Em época de safra, a população de alguns municípios pequenos che
ga a dobrar, e esse excesso de contingente traz transtornos principalmente para o sistema público de saúde. “As usinas nem sempre aceitam o argumento da DRT de que a responsabilidade também é delas, e se esquivam dizendo que não trouxeram os trabalhadores. Porém, trata-se de um aliciamento indireto, através do gato”, afirma Figueiredo. Na opinião do chefe da fiscalização rural, outro problema grave a ser combatido no interior de São Paulo é o transporte de trabalhadores de maneira não apropriada. Ônibus que antes circulavam pelas cidades, aposentados pelo desgaste do tempo, são ressuscitados nas estradas de terra que levam até os canaviais. “E, por incrível que pareça, o Departamento de Estradas de Rodagem (DER) ainda autoriza que caminhões também façam esse serviço”, acrescenta.

É claro que existem usinas que cumprem as determinações da legislação trabalhista. Entregam e fiscalizam o uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) por parte de seus funcionários; fornecem alimentação balanceada e até água gelada durante o expediente. Entretanto, o próprio secretário-geral da Unica, Fernando Ribeiro, reconhece que muito ainda precisa ser feito. “As condições de trabalho são as ideais? É claro que não. Estão longe de ser? É claro que sim. Mas os avanços foram significativos, e o setor está apostando muito em programas de responsabilidade social”, assume.

Problemas sem solução

Manuel é marinheiro de primeira viagem e não se julga um bom trabalhador. Durante uma manhã inteira de corte em um engenho de Amaraji, município da zona da mata pernambucana, não foi capaz de tirar sequer uma tonelada – esforço em vão que lhe rendeu apenas R$1,50. No Nordeste, as fazendas de cana, pertencentes a usinas ou não, ainda são chamadas de engenho, herança do período colonial que ainda não é página virada na história da região. Ele tem apenas 16 anos e, por lei, não poderia se dedicar a uma atividade tão pesada. Porém, o “bico” que arrumou foi a saída encontrada para comprar o material escolar de que necessitava para acompanhar as aulas que assiste à noite.

De acordo com um levantamento da DRT/PE, quase um quarto de toda a mão-de-obra utilizada nos canaviais, no início da década passada, tinha menos de 18 anos. Para combater esse quadro, as usinas daquele estado assinaram em 1997 o Pacto Paulo Freire, pelo qual se comprometiam a erradicar o trabalho infantil em suas propriedades. A medida atenuou o problema nos imóveis rurais pertencentes a grandes grupos produtores de açúcar e álcool, mas não é preciso faro de detetive para encontrar ainda hoje menores que se ocupam do corte na área rural da zona da mata. “Atualmente, é nos engenhos particulares que se verifica com mais freqüência o emprego de crianças. É uma forma de baratear os custos de produção, porque eles são fornecedores de matéria-prima e têm de se submeter aos preços que as usinas pagam pela cana”, explica Fábia Esteves, delegada-adjunta do trabalho em Pernambuco.

Alojamentos precários e sem higiene abrigam cortadores de cana que vêm de longe

Mas o desrespeito à lei não é exclusividade dos engenhos particulares. Mesmo em usinas de grande porte, donas de milhares de hectares de cana, é comum encontrar funcionários que são obrigados a bancar os gastos com a compra de botas e luvas com uma parte do mínimo de R$ 305 que recebem. Quem não tem dinheiro trabalha descalço. Outro motivo de dor de cabeça para a DRT são os alojamentos destinados aos trabalhadores. Em alguns casos, os “curubas”, como são conhecidos os migrantes vindos principalmente do sertão para a época da safra, dormem em instalações precárias. “Na verdade, estamos mais avançados nas negociações coletivas do que no cumprimento dos direitos individuais”, analisa Fábia. Apesar de importantes vitórias alcançadas pela categoria, como o direito de discutir os acordos de trabalho que definem, entre outras coisas, o piso salarial, os benefícios demoram a chegar de fato a cada um dos cortadores, isoladamente.

Pressão social

Apesar de possuir uma parcela no assentamento Veneza, localizado na cidade pernambucana de Chã de Alegria, Severino José da Silva tem saudade do tempo em que cortava cana, empregado em uma usina. “Pelo menos eu tinha um salário”, desabafa. Passados três anos desde a criação do assentamento, as 62 famílias que nele vivem receberam apenas a terra e um crédito inicial de R$ 1500. Com esse valor, Severino comprou ferramentas, arame para as cercas, alguns mantimentos para a casa e dois bois.

Hoje, assim como os outros agricultores do Veneza, ele sobrevive da roça de subsistência que cultiva a duras penas, enquanto aguarda pelo dinheiro que lhe é de direito e que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) já deveria ter liberado. Sem o recurso, é impossível investir na produção das suas glebas. Severino está parado. “Parece que a intenção do poder público é provar que a reforma agrária não dá certo”, alfineta Alexandre Conceição, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST/PE).

A partir de 1985, com o apagar das luzes da ditadura militar, o setor sucroalcooleiro entrou em colapso. “O governo deixou de estimular o plantio de cana por meio do oferecimento de subsídios e créditos”, explica Urgel de Almeida, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP). No Nordeste, essa derrocada revelou sua face mais cruel. Atoladas em dívidas com instituições financeiras públicas, e com uma série de compromissos trabalhistas não quitados, só em Pernambuco quase duas dezenas de usinas foram obrigadas a fechar as portas, ao longo da década de 1990. As conseqüências foram desastrosas para o meio rural.

“Nós, dos movimentos sociais, nunca conseguimos que se fizesse uma desapropriação global de terras de usinas falidas. Os donos vendiam ou arrendavam. Depois, desmontavam a fábrica e levavam as peças para o Centro-sul. Aos trabalhadores, restava a expulsão dos engenhos e a exclusão social. Numa região de monocultura e latifúndio, eles não tinham alternativa de emprego, e se dirigiram paras as periferias das cidades. Foram 150 mil postos de trabalho perdidos”, resume Bruno Ribeiro.

Trabalhadores ainda são transportados de caminhão, com conivência do poder público

O passado recente de decad&
ecirc;ncia do setor sucroalcooleiro é uma das explicações para a verdadeira explosão de movimentos dedicados à luta pela reforma agrária a que se assiste atualmente na zona canavieira nordestina. A utilização de máquinas colheitadeiras nas usinas de São Paulo – hoje, elas são empregadas em pelo menos um quarto das propriedades do interior do estado – também contribuiu para que boa parte dos migrantes desistisse de buscar o eldorado no sudeste. A automatização do processo produtivo nas lavouras de cana foi a saída encontrada pelos empresários para contornar as sucessivas greves de repercussão nacional, ocorridas em meados da década de 80, contra as péssimas condições de vida a que os trabalhadores estavam submetidos.

Com a diminuição da oferta de emprego, os cortadores passaram então a engrossar o contingente de sem-terras, aumentando a pressão social pela reorganização da estrutura fundiária da região. Para se ter uma idéia desse verdadeiro caldeirão de conflitos, existem 12 mil famílias pernambucanas, divididas em 14 grupos de diferentes bandeiras, que lutam por um tão sonhado pedaço do chão onde escravos derramaram sangue em nome da economia açucareira. “Como vai ficar a segurança alimentar dos trabalhadores da região com essa expansão dos canaviais? Nós vamos comer cana?”, indaga Conceição.

Desde o início deste século, a matéria-prima do álcool e do açúcar está retornando aos holofotes do agronegócio brasileiro. No Centro-sul, com a expansão das lavouras, “o fluxo migratório de bóias-frias vai se intensificar e os problemas existentes vão se agravar”, alerta Roberto Figueiredo, da DRT/SP. Já no Nordeste, as notícias do crescimento das exportações de açúcar e do aumento do consumo interno de álcool eram os motivos de que os donos das usinas necessitavam para recuperar o fôlego da monocultura e recompor suas plantações, barrando mais uma vez o acesso de movimentos sociais à terra. Não há dúvidas de que esse novo ciclo da cana irá movimentar a economia e gerar investimentos em todo o país. Mas, infelizmente, a história ensina que o sucesso do setor sucroalcooleiro apropriou-se dos solos mais férteis do Brasil, da renda e da saúde dos trabalhadores rurais. Resta saber se, desta vez, vai ser diferente.

Catende

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