Artigo – O trabalho escravo e as exportações

De credibilidade duvidosa, o estudo publicado na Inglaterra que diz que a carne brasileira é produzida com trabalho escravo mal camufla o interesse de incentivar barreiras contra o Brasil. Mas não dá pra negar: a exportação de produtos feitos com mão-de-obra escrava é uma possibilidade
Por Leonardo Sakamoto
 17/01/2006

Um estudo publicado recentemente na Inglaterra afirmou que a carne brasileira para exportação é produzida através de trabalho escravo, sugerindo que o baixo preço do produto no exterior é devido à economia gerada pelo não pagamento das obrigações trabalhistas. O estudo tem credibilidade duvidosa, uma vez que seu objetivo é fomentar barreiras comerciais através da desqualificação das exportações brasileiras. O argumento de proteção aos direitos humanos é usado apenas como escudo para os interesses econômicos e o trabalho não vai a fundo na discussão do problema, limitando-se no necessário para gerar um factóide. Também não se incomoda com o fato de que grandes multinacionais utilizaram trabalho escravo no Brasil durante a ditadura ou que outras já comercializaram com produtores flagrados com trabalho escravo nos dias de hoje. Além disso, o estudo inglês não traz nada de novo e faz um apanhado do que a imprensa brasileira já está veiculando há tempos a respeito dos negócios dos empresários flagrados cometendo esse crime.
Entre 1995, quando começaram as libertações sistemáticas de trabalhadores pelo governo federal, e o fim do primeiro semestre de 2005, 1340 propriedades haviam sido fiscalizadas – e nem todas tinham a pecuária como sua base. Ou seja, muito pouco se comparado com o total de propriedades no país. De acordo com dados do Ministério da Agricultura e da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, em 2004, 8,35 milhões de toneladas de carne bovina foram exportadas em um total de 2,419 bilhões de dólares.

A prática já foi detectada em quase todos os estados da União, mas está concentrada na região de fronteira agrícola amazônica. A superexploração de mão-de-obra não-especializada e o trabalho escravo são adotados por empresas e fazendas para diminuir custos de produção, aumentando assim a competitividade – sem alterar seus lucros. Mas essa minoria de empresários criminosos não é suficiente para gerar uma diminuição completa do valor de uma mercadoria para a exportação. O lucro fica com fazendeiros e intermediários e raramente é repassado ao importador no exterior ou ao consumidor final no Brasil. Portanto, o valor para o comprador inglês é o mesmo se ele compra de um frigorífico que ganha com crimes trabalhistas ou de um frigorífico que não se beneficia direta ou indiretamente de escravos.

Contudo, as críticas que vêm sendo feitas contra esse estudo no Brasil chegam a ponto de ignorar a ocorrência de trabalho escravo em importantes cadeias produtivas nacionais. Que usamos e também combatemos o trabalho escravo, isso é notório. Em 1995, o governo federal brasileiro – por intermédio de um pronunciamento do então presidente da República Fernando Henrique Cardoso – assumiu a existência do problema perante o país e a Organização Internacional do Trabalho. Com isso, tornou-se uma das primeiras nações do mundo a reconhecer oficialmente a escravidão contemporânea. Nesse ano foram criados os grupos móveis de fiscalização, coordenados pelo Ministério do Trabalho e Emprego, que verificam denúncias e constatadas irregularidades libertam trabalhadores e garantem o pagamento de seus direitos. Em março de 2003, o atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, lançou o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo e compôs a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae). Um ano depois, o Brasil reconheceu perante a Organização das Nações Unidas a existência de pelo menos 25 mil pessoas reduzidas anualmente à condição de escravos no país.

As operações de libertação de trabalhadores do governo federal demonstram que quem escraviza no Brasil não são proprietários desinformados, escondidos em propriedades atrasadas e arcaicas. Pelo contrário, são grandes latifundiários, que produzem com alta tecnologia para o grande mercado consumidor interno ou para o mercado internacional. E essa pequena fração de grandes propriedades rurais monocultoras está inserida em nossa economia. Uma investigação solicitada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos do governo federal e realizada pela ONG Repórter Brasil identificou, em 2004, as cadeias produtivas das fazendas flagradas com mão-de-obra escrava, reunindo cerca de 200 empresas nacionais e multinacionais. O objetivo desta investigação, que acabou originando um estudo, foi tornar a iniciativa privada parceira no combate ao trabalho escravo no Brasil. Agindo de forma preventiva, através de diálogos com o empresariado, para evitar que sejam erguidas barreiras comerciais por uma falta de ação que poderia ser considerada com conivência.

As cadeias produtivas iniciam-se na propriedade rural em que foram encontradas pessoas reduzidas à condição de escravos, passando por seus compradores primários (como frigoríficos, beneficiadoras e tradings) e intermediários, até chegar aos mercados consumidores interno e externo. O ponto de partida são as fazendas presentes no Cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo, a conhecida “lista suja” divulgada pelo governo federal pela primeira vez em novembro de 2003. Atualizada semestralmente, hoje conta com 159 nomes. Os produtos identificados foram carne bovina, algodão, soja, álcool, café, pimenta-do-reino e carvão vegetal, sendo que a pecuária responde por 80% do total de fazendas. Os relacionados na “lista suja” ficam impossibilitados também de receber crédito em agências públicas de financiamento como o Banco do Brasil, o Banco da Amazônia e o BNDES e em alguns bancos privados nacionais e internacionais.

A pesquisa identificou que, pelo menos, seis grandes frigoríficos exportadores brasileiros tinham entre seus fornecedores propriedades rurais flagradas com mão-de-obra escrava pelos grupos móveis de fiscalização. Após tomarem conhecimento do estudo, parte desses frigoríficos alegou desconhecimento sobre o fato e afirmaram que deixariam de comprar gado das referidas fazendas. Redes de supermercados no país também suspenderam as compras de carne oriunda dessas propriedades até que a situação dos seus proprietários se regularizasse perante o governo.

Baseado nas informações levantadas durante a pesquisa, o setor empresarial, organizado pelo Instituto Ethos e a Organização Internacional do Trabalho, lançou o Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo no dia 19 de maio de 2005. Mais de 60 grandes empresas assinaram o pacto até agora se comprometendo a adotar medidas para manter suas cadeias produtivas longe do trabalho escravo. Com varejistas, atacadistas, industriais e exportadores negando-se a comprar produtos que tenham trabalho escravo na origem, outros fornecedores intermediários, como os próprios frigoríficos, estão se mobilizando para excluir o produtor que
utiliza essa prática. Dessa forma, o corte de custos trazido ao empresário rural pela utilização desse tipo de mão-de-obra vai deixar de ser um bom negócio.

Há interesse de outros países em desqualificar comercialmente o Brasil e contra isso devemos mostrar as ações que vêm sendo tomadas para erradicar o trabalho escravo. Porém, isso não pode servir como justificativa para que sejam entregues salvo-condutos para essa minoria de empresários que tratam seres humanos como animais. O campo, principalmente as regiões de expansão agrícola, muitas vezes tem leis próprias – como gostam de ressaltar os próprios fazendeiros ao afirmarem que a legislação da “zona urbana” não cabe na “zona rural”. Para manter o lucro fácil vale qualquer coisa, inclusive matar quem cobre multas ou reclame por uma vida mais justa. Foi assim com os sindicalistas de Rio Maria, no Pará, durante a ditadura militar, com os 19 trabalhadores rurais sem-terra em Eldorado dos Carajás, com os auditores em Minas Gerais, com a irmã Dorothy Stang e no dia-a-dia de quem resolve se insurgir contra o status quo do campo. Pois é difícil lutar contra a apropriação do discurso desenvolvimentista que prega a expansão, a qualquer preço, da área plantada de soja, algodão e pimenta, do aumento da pastagem e da produção de álcool, do carvão para a exportação do aço. Na maioria das vezes, é a defesa cega do agronegócio, repetindo a já desgastada justificativa de que o combate ao trabalho escravo vai gerar prejuízos à balança comercial do país.

Mas a verdade é que não vai. O número de fazendeiros que se utilizam dessa prática é muito pequeno dentro do total de empresários rurais como já foi dito. E as ações de libertação do Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho e Polícia Federal, entre outras medidas tomadas pelos membros da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) têm mostrado que é possível erradicar o trabalho escravo, garantindo mercados. Para isso é necessário mais apoio de outros órgãos do governo federal, do Congresso e do Judiciário e que esse processo não seja colocado no fogo cruzado da guerra comercial travada pelo país.

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