Artigo – Quatro mortes, dois anos

Os assassinados em Unaí (e os trabalhadores rurais do país) continuam esperando por justiça
Por Leonardo Sakamoto
 28/01/2006

O texto abaixo foi escrito seis meses após o assassinato dos quatro funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego, na região de Unaí (MG). Infelizmente, hoje, dia em que a chacina completa dois anos, ele ainda é válido e por isso está sendo republicado. As investigações levaram aos executores do crime, porém nenhum deles foi condenado. Acusados de serem os mandantes, Antério e Norberto Mânica – que estão entre os maiores produtores de feijão do país – estão livres. Norberto cuida dos seus negócios, Antério administra a prefeitura de Unaí. Há bons servidores públicos, como procuradores e policiais, batalhando para que os culpados respondam pelos seus atos. Uma dessas batalhas é garantir um júri isento. Para isso é necessário que ele seja realizado longe de Unaí e da influência política e econômica dos Mânica.

Julgamentos de políticos flagrados com trabalho escravo ainda se arrastam. A proposta de emenda constitucional que prevê o confisco das terras em que trabalho escravo for encontrado continua parada na Câmara, aguardando ser votada em segundo turno.

Pouco mais de um ano após Unaí, veio Anapu. Em 12 de fevereiro de 2005, a missionária norte-americana naturalizada brasileira Dorothy Stang foi assassinada por fazendeiros dessa região do Pará, descontentes com a atuação da irmã em prol dos projetos desenvolvimento sustentável. Os julgamentos e condenações dos acusados do caso Dorothy já começaram, contudo a realidade no campo não mudou. Dados da Comissão Pastoral da Terra para o primeiro semestre de 2005 apontaram quase um assassinato por semana em conflitos agrários. Pessoas que viveram anônimas e morreram anônimas.

Esses dois anos mostram que vozes continuam se erguendo pela justiça social e pela dignidade no campo. E continuam sendo mortas por causa disso. E que os governantes continuam achando tudo isso um absurdo, mas que compactuam com umas das raízes do problema, que é a matriz de desenvolvimento do campo, baseada no latifúndio monocultor e exportador, padrão que pouco mudou desde a era colonial. Os trabalhadores rurais e os que zelam por eles continuam sozinhos. E o agronegócio continua intocável no Brasil.

Quatro mortes, seis meses (artigo publicado em 23/07/2004 no site Repórter Brasil e na Agência Carta Maior)

O motorista Aílton Pereira de Oliveira, mesmo baleado, conseguiu fugir do local com o carro e chegar à estrada principal, onde foi socorrido. Levado até o Hospital de Base de Brasília, Oliveira não resistiu e faleceu no início da tarde. Antes de morrer, descreveu uma emboscada: um automóvel teria parado o carro da equipe de fiscalização e homens fortemente armados teriam descido e fuzilado os fiscais. Erastótenes de Almeida Gonçalves, Nelson José da Silva e João Batista Soares Lages morreram na hora.

No dia 28 de janeiro deste ano, três auditores do Trabalho e um motorista que fiscalizavam a região de Unaí, noroeste do Estado de Minas Gerais, foram assassinados. Seis meses terão se passado na próxima quarta-feira (28) sem que os responsáveis pelas investigações tenham conseguido desvendar – ou revelar – qual o motivo das mortes e quem foi o mandante.

O caso dos fiscais em Minas Gerais e o projeto de lei que confisca as terras em que for encontrado trabalho escravo e as destina para a reforma agrária, de certa forma, andam de mãos dadas. A comoção pública gerada pelas mortes em janeiro pressionou os parlamentares e o texto da lei, que estava engavetado na Comissão de Constituição e Justiça, começou a andar. Tanto a fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego quanto a idéia desse confisco da terra sempre causam arrepios em muitos proprietários rurais que ignoram Direitos Humanos em busca do lucro fácil. E, hoje, ambos os casos estão à espera de uma solução.

A PEC, já aprovada pelo Senado, entrou e saiu diversas vezes da pauta de votação, mas foi sendo empurrada com a barriga pelos nobres deputados. Apesar de membros da bancada ruralista já terem firmado um compromisso público com a medida, ainda há pressão contrária de outros parlamentares. Mesmo de dentro de partidos que compõem a base aliada do governo. Um novo ensaio de votação foi marcado para o início de agosto, após o recesso do Congresso.

E já que estamos em uma data comemorativa, vale relembrar que esses não são os únicos casos que indignaram a opinião pública e seguem carentes de resposta. Em março de 2002, 54 trabalhadores foram resgatados da fazenda Caraíbas, do deputado federal Inocêncio Gomes de Oliveira, localizada em Gonçalves Dias, no Maranhão. Há um recurso de Inocêncio que está correndo na Justiça do Trabalho em São Luís e um processo no Supremo Tribunal Federal, após denúncia de trabalho escravo ajuizada pelo procurador-geral da República, Cláudio Fonteles. Nos depoimentos do processo, declarações dos “gatos” [contratadores de mão-de-obra a serviço do fazendeiro], em que afirmam que o deputado comparecia mensalmente à fazenda e sabia de toda a situação, tendo, inclusive visitado os barracos onde estavam amontoados os peões para inspecionar se o serviço estava sendo feito corretamente.

Em junho de 2003, uma ação de um grupo móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) libertou 39 pessoas da fazenda Agropecuária Vale do Suiá S/A, de propriedade do presidente da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, Jorge Sayed Picciani. De acordo com a coordenadora da equipe de fiscalização, Marinalva Cardoso Dantas, apesar de a fazenda ser de criação de gado, os trabalhadores não tinham acesso à carne e estavam caçando animais silvestres, como onças, para se alimentar. Além disso, estavam submetidos à vigilância armada para evitar fugas. Pessoas lavavam roupa, tomavam banho e bebiam da mesma água – as mesmas condições que sempre são encontradas nos casos de trabalho escravo. Picciani conseguiu que o seu processo saísse da Justiça Federal e fosse para a Justiça Estadual – a situação atual é uma incógnita. O Tribunal Regional Federal do Rio de Janeiro também determinou que o caso corra em segredo de Justiça – ou seja, em sigilo.

O campo, principalmente as regiões de expansão agrícola, muitas vezes tem leis próprias – como gostam de ressaltar os próprios fazendeiros ao afirmarem que a legislação da “zona urbana” não cabe na “zona rural”. Para manter o lucro fácil vale qualquer coisa, inclusive matar quem cobre multas ou reclame por uma vida mais justa. Foi assim com os sindicalistas de Rio Maria, no Pará, durante a ditadura militar, com os 19 trabalhadores rurais sem-terra em Eldorado dos Carajás, com os auditores em Minas Gerais e no dia-a-dia de quem resolve se insurgir contra o status quo do campo. Pois é difícil
lutar contra a apropriação do discurso desenvolvimentista que prega a expansão, a qualquer preço, da área plantada de soja, algodão e pimenta, do aumento da pastagem e da produção de álcool anidro, da exportação do aço. Pois, deixemos de hipocrisia, todos saem ganhando com isso, do produtor que vende ao consumidor que compra, do governo que tributa ao importador que leva o seu. Pouquíssimos são a favor do trabalho escravo, mas quantos são a favor de seguir as leis trabalhistas, mesmo que isso signifique a diminuição dos ganhos do empreendimento?

A solução para esse problema passa pelo fim da impunidade, por resolver casos como o do assassinato dos fiscais do Trabalho em Minas Gerais, aprovar mecanismos como a PEC do confisco de terras, julgar com isenção aqueles que cometeram crimes, mesmo que poderosos e cortar o crédito de quem comprovadamente usou trabalho escravo.

Mas a erradicação do trabalho escravo só virá com redistribuição. De renda, de terra, de justiça. Levas de migrantes continuam deixando o Maranhão e o Piauí para sangrar no Pará e Mato Grosso, saem de suas casas no Vale do Jequitinhonha e se acabam de trabalhar em usinas do Rio de Janeiro e São Paulo. Já entrevistei dezenas de resgatados em ações de fiscalização ao longo dos anos. Tive a infelicidade de participar da libertação de um mesmo homem por duas vezes – em ambas, ele não queria ver os filhos passando fome, por isso saiu de casa e foi fazer algo. A justificativa é sempre a mesma: melhor tentar a sorte do que morrer de fome. As raízes do trabalho escravo, mesmo o contemporâneo, estão na estrutura formativa do Brasil. O que aconteceu em 13 de maio de 1888 foi uma mudança de metodologia para se adaptar aos novos tempos e não de mentalidade das elites governantes. E nenhum dos governos após a redemocratização fez algo de substancial para mudar essa estrutura.

A melhoria no combate ao trabalho escravo é visível e os louros são de setores da administração federal, do Ministério Público e da Justiça engajados na causa e da Comissão Pastoral da Terra. Por isso, não se faz aqui uma crítica à fiscalização ou ao ajuizamento de ações, que aumentam a cada dia. Mas o que tem sido feito para evitar que aquele senhor, libertado duas vezes, saia da sua terra novamente? Ou seja, o que tem sido feito de substancial para tirar rapidamente 30 milhões de pessoas que estão abaixo da linha da pobreza? O crescimento econômico é lento, mas o Presidente da República fez um caminho parecido com o de muitos peões libertados da escravidão, saindo de sua terra em busca de vida melhor – sabe que esse pessoal passa fome e não pode esperar.

Toda a mudança social profunda tem um custo e leva tempo. Uma verdadeira reforma com capacidade para alterar as antigas estruturas do país é muito cara politicamente. Fica a pergunta: o governo terá coragem de começar a pagar este preço antes do final deste mandato?

*Versão reduzida do original

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