Das manchetes policiais para a revolução social

Dez anos após ser apontada como a região mais violenta do mundo pela ONU, distrito do Jardim Ângela, zona sul da cidade de São Paulo, começa a reverter o problema. Mas ainda convive de perto com sua maior causa: a miséria
Por Maurício Monteiro Filho
 12/01/2006

J.A, nove anos, finalmente abandonou as páginas policiais. Hoje, pode revelar o nome por trás das iniciais, que preservavam uma identidade marcada pela violência: Jardim Ângela, zona Sul da capital paulista.

Depois de ter sido considerado, em 1996, a região mais violenta do planeta pela Organização das Nações Unidas (ONU), o distrito, com seus mais de 266 mil habitantes, celebra uma conquista histórica. Segundo um levantamento da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), publicado em julho deste ano, entre 2000 e 2004, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes caiu mais de 45%, de 118,31 para 64,5.

A redução supera em muito a verificada no estado no mesmo período. De acordo com o Mapa da Violência de São Paulo, organizado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco, sigla em inglês), e publicado em maio também deste ano, a queda dos índices em São Paulo foi de apenas 15%.

Na época do reconhecimento da ONU, o Jardim Ângela chegou a superar os índices de cidades como Cali, na Colômbia, que atravessava um dos piores períodos da guerra do narcotráfico. Hoje, passou a ser o quarto distrito mais violento da capital. Acima dele, estão Brás, Grajaú e Parelheiros.

Entre as explicações para essa queda estão, certamente, os maiores investimentos públicos em serviços básicos e um policiamento mais preparado e consciente. Mas, sem dúvida, a maior contribuição está no poder de mobilização da própria comunidade.

Ainda assim, apesar da euforia, enquanto comemoram a diminuição dos homicídios – de janeiro a agosto de 2005, a Polícia Militar (PM) registrou apenas 5 –, a população amarga as mesmas condições de miséria, desemprego e privação de direitos.

Números violentos

Para o padre Jaime Crowe, da paróquia Santos Mártires, um verdadeiro centro de referência para projetos sociais no Jardim Ângela, antes de se falar em redução da violência, é preciso atentar para suas causas. Segundo ele, a raiz dos conflitos está na própria história da ocupação do distrito. "A região foi um dos locais onde se estabeleceu a mão-de-obra barata para as fábricas das imediações da marginal do rio Pinheiros", explica. "Com a saída desses empreendimentos da área, o número de desempregados cresceu muito". Com isso, no início da década de 80, surgiu uma onda inicial de violência, marcada pelos confrontos entre a polícia e a população desocupada.

 
Mosaico de fotos que circunda as lápides do São Luís, onde são enterradas até 20 pessoas por dia, a maioria vítima da violência

 

Desde então, a escalada de crimes, majoritariamente assassinatos, só piorou, especialmente após o fortalecimento do tráfico de drogas, sendo que a repercussão internacional chegou antes mesmo dos recordes de violência. De acordo com dados da Fundação Seade, em 1996, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes foi de quase 98. Esse número não chegou nem perto dos mais de 123, maior índice registrado, em 2001.

Essas estatísticas tornam-se ainda mais aterradores se considerada a taxa para a população mais vulnerável a esse tipo de crime: jovens do sexo masculino. No ano do recorde, na faixa de 15 a 19 anos, as estatísticas apontaram 332. De 20 a 29 anos, mais de 447.

 
Renato Alves, do NEV: "O crime ocorre onde há maior privação de serviços básicos"

Renato Alves, pesquisador do Núcleo de Estudos de Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP) coordena o projeto NEV Cidadão, que trabalha com jovens da comunidade. O objetivo é divulgar, através de um site na Internet e de spots de rádio, veiculados nas emissoras da região, a questão do acesso aos direitos humanos. Ele é categórico ao explicar os índices de violência no Jardim Ângela. "O crime ocorre onde há maior privação de serviços básicos, como água, luz, iluminação pública e ruas calçadas", atesta.

A tese do pesquisador é bastante plausível se forem considerados alguns indicadores sociais do distrito. Para se ter uma idéia, em 2000, ainda segundo a Fundação Seade, mais de 19% dos responsáveis por domicílios não possuía nenhum rendimento.

Outro indicador que revela a péssima qualidade de vida na região, o que certamente reflete nas taxas de violência, é o cálculo do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – que combina renda per capita, expectativa de vida e acesso a educação – para o distrito. Enquanto o Brasil ocupa a 63ª posição entre 177 países, com um IDH de

0,792, o valor para o Jardim Ângela, isoladamente, é de 0,402. Esse dado aproxima a área das condições de nações como a Tanzânia, 164ª no ranking da ONU.

Passos, não grades

Léa Novaes coordena o Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedeca) no distrito. Segundo ela, a função da entidade é atentar para o desenvolvimento de políticas específicas para esse público e trabalhar na prevenção de crimes contra crianças e adolescentes.

Criado quatro anos atrás para atender 100 casos por mês, recebe atualmente entre 350 e 400, a maioria de violência doméstica e abuso sexual. Pelo fato de a região não contar com uma rede de atendimento para esse tipo de ocorrência, o centro, que deveria apenas realizar a triagem das crianças e adolescentes e encaminhá-los para os serviços competentes, acaba realizando também o tratamento. Entre os serviços prestados estão atendimento psicológico e assistência social. Além disso, a equipe do Cedeca realiza oficinas nas escolas para capacitar educadores a prevenir esse tipo de violência.

 
Objetivo do Cedeca é atentar para as políticas públicas voltadas para a criança e o adolescente (na foto, Léa Novaes, coordenadora da entidade)

Em sua experiência na entidade, Léa constatou que a queb
ra de vínculos familiares tem ocorrido cada vez mais cedo. "Hoje, há crianças de nove anos fugindo de casa", diz ela.

Não por acaso, foi há exatos nove anos que o Jardim Ângela ganhou as manchetes mundiais. E foi justamente a partir dessa época que a comunidade resolveu se mobilizar para combater esse quadro.

"Começamos a tomar vergonha", declara Crowe. Através de uma articulação promovida pelo padre, algumas entidades se reuniram ainda em 96 para refletir sobre propostas de combate às altíssimas taxas de assassinatos. Com isso, em agosto desse ano, surgiu o Fórum Social pela Defesa da Vida e Superação da Violência.

"Inicialmente, resolver o problema significava construir grades mais fortes e muros mais altos", aponta ele. Contrapondo-se a essa filosofia, as atividades da entidade começaram com uma caminhada pela paz, que reuniu 5000 pessoas.

 
Violência levou moradores a se organizarem: 5 mil pessoas foram à 1ª Caminhada pela Paz

Hoje, o Fórum se reúne mensalmente e cada encontro conta com uma participação média de 50 a 60 pessoas, entre representantes de associações de bairro, diretores de escolas, delegados de polícia e, eventualmente, sub-prefeitos.

As ações iniciais da agremiação frutificam hoje como as grandes responsáveis pela queda da violência. A primeira grande luta do Fórum foi pela implantação do policiamento comunitário na região. "Queríamos policiais que tivessem nome", conta o padre. O resultado veio com criação de duas bases, em 1998 e 1999.

Além disso, a união de esforços de diferentes setores da comunidade resultou em um diagnóstico das causas da violência. A partir desse levantamento, constatou-se que cerca de 80% dos crimes estava relacionado, direta ou indiretamente, às drogas. Com isso, foi implantada na região, em parceria com a Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, uma Unidade Comunitária de Álcool e Drogas (Ucad) para auxiliar no tratamento e prevenção de dependência química. A ação foi fundamental, já que uma pesquisa realizada em 1999 apontou que existia um bar para cada dez moradores do Jardim Ângela.

Por isso, na sua décima caminhada, realizada no último dia 2 de novembro, a entidade teve muito a comemorar em comparação à época em que, todas as noites, os pontos de ônibus viviam lotados de pais, à espera do retorno dos filhos dos estudos ou do trabalho, para garantir que eles chegassem em casa em segurança.

Apesar de as taxas de homicídios no Jardim Ângela permanecerem altas – são quase o dobro da média do estado, de 35,9 –, as iniciativas originadas no Fórum mostraram que a mobilização comunitária foi responsável por uma evolução considerável do quadro. Prova disso é que, até o fechamento dessa edição, segundo a PM, o distrito ficou 76 dias sem homicídios. O que é uma grande conquista para uma região que já conviveu com uma média de 8 por noite, no início da década de 1990.

 
Pe Crowe discursa para a multidão durante a 1a Caminhada pela Paz

Fórmula da mudança

Daniel Calazans e Eliomar Pereira, o Mazinho, são moradores do Jardim Nakamura, mais um entre as centenas de áridos jardins que compõem a constelação do Jardim Ângela. Para eles, o hip-hop venceu a batalha contra o tráfico pela conquista de seus corações e mentes. Caretas convictos, fazem parte da banda Família NK, referência ao bairro onde moram.

Um computador, um aparelho de som e a vontade de transformar o local onde vivem é tudo o que precisam para compor, como dizem, "um hip-hop que agrada a gregos e troianos". "Mostramos a violência, mas também o lado bom da comunidade", explica Daniel. Num estúdio improvisado na casa de Mazinho, gravaram e produziram boa parte das músicas que fará parte de seu primeiro álbum – que está quase terminado.

São jovens – Daniel tem 23 anos e Mazinho, 27 – que se preocupam com aqueles que, como eles, viveram a falta de opção da adolescência na periferia de São Paulo. "Cantando, nosso objetivo é acrescentar pra molecada", pontua Mazinho. "Aqui, a gente não tem em quem se espelhar. Com a Família NK, queremos fazer com que a galera tenha até orgulho de morar no Jardim Ângela", emenda Daniel.

 
Daniel (à frente) e Mazinho (fundo): 'Queremos fazer com que a galera tenha até orgulho de morar no Jardim Ângela'

Segundo Paula Miraglia, doutoranda em Antropologia pela USP, sobre os dados mais otimistas quanto à violência na área, "ainda é cedo para perceber mudanças no cotidiano. Mas o fato de a região ocupar as manchetes por bons motivos gera um impacto positivo". Para ela, a evolução se deve a uma interação de três fatores. "A fórmula foi a combinação de políticas públicas – estaduais e municipais – mais eficazes, com a presença do terceiro setor e uma maior mobilização comunitária", afirma.

Somado a isso, não se pode esquecer das campanhas pelo desarmamento, da chamada lei seca, que obriga o fechamento dos bares às 23h, e do programa Escola da Família, que determina a abertura de milhares de escolas públicas aos fins-de-semana. Mas, segundo o Mapa da Violência de São Paulo, esses são fatores que explicam a melhora dos índices do estado como um todo.

Assim, a particularidade que justifica um desempenho melhor do Jardim Ângela em relação a outras áreas é a articulação de toda a comunidade no combate à violência.

Uma das iniciativas que melhor simboliza esse fato é o projeto Redescobrindo o Adolescente na Comunidade (RAC), que atende jovens que tenham cometido infrações e cumpram medidas sócio-educativas, ou que vivam em situação de vulnerabilidade, isto é, convivam de perto com miséria e criminalidade graves.

O projeto começou em 1997, com um curso de DJ para 25 adolescentes, dos quais 4 estavam em liberdade assistida, por terem cometido delitos. Devido ao sucesso inicial, uma parceria entre a paróquia Santos Mártires, a Secretaria de Assistência Social do município e a Febem, expandiu o público para 100 adolescente
s.

 
Sérgio Bosco, do RAC, garante que o investimento em prevenção é muito mais eficaz do que em repressão

Atualmente, contando também com algumas parcerias privadas, a entidade realiza oficinas de hip-hop e cursos profissionalizantes, como de cabeleireiro e montagem de computadores, e atende mais de 300 jovens. Mas, segundo o coordenador pedagógico do RAC Sérgio Bosco, "o foco não são os cursos, e sim o desenvolvimento de potenciais". "Em 96, não havia na comunidade nenhuma alternativa para esse público. Por isso, mais do que profissionalização, oferecemos perspectivas de vida", explica ele.

A principal virtude do RAC, que no início do ano chegou até a publicar um livro sobre a experiência, é demonstrar que é muito mais viável investir em prevenção à violência do que em repressão. "Aqui, um adolescente custa entre R$ 300 a 320 por mês. Na Febem, esse valor é de R$ 1200, oficialmente", declara Bosco.

Rap na porta da PM

Na época do auge da violência, a área de atuação das delegacias do Jardim São Luís, do Capão Redondo e Jardim Ângela ficou conhecida como "triângulo da morte".

E a denominação era válida tanto do ponto de vista dos policiais, pelo número de crimes, como do ponto de vista da população, pela alta incidência de abusos por parte da polícia.

Assim, a mudança de raciocínio por parte do policiamento do Jardim Ângela também foi parte ativa do basta que o distrito deu à violência, segundo a maioria dos movimentos sociais.

De acordo com o tenente Cássio Novaes, do Batalhão da Polícia Militar responsável pela área, no início da década de 90, havia apenas 8 viaturas e cerca de 135 policiais para uma população de mais de 200 mil pessoas. Atualmente, o quadro mudou bastante: são 710 agentes, 62 viaturas e mais 12 motos.

Mas apenas o maior volume de investimentos em segurança na área não é suficiente para explicar a melhora. Isso porque o aumento do orçamento para essa rubrica foi uma constante em todo o estado. Segundo o Mapa da Violência de São Paulo da Unesco, entre 1998 e 2004, o incremento das verbas destinadas à Secretaria de Estado de Segurança Pública foi de 150%.

Mais importante que o maior aporte de recursos, foi a mudança de filosofia da corporação. "O policiamento tradicional, diferente do comunitário, não cria laços com a comunidade", explica o tenente Novaes.

Essa alteração iniciou-se em dezembro de 1998, com a inauguração da Base Comunitária do Jardim Ângela, no centro do distrito. Desde então, verificou-se uma redução não apenas dos homicídios, mas também de outros crimes, como roubo e furto, que caíram cerca de 50%. Os flagrantes de tráfico de drogas também cederam. Hoje, a média mensal desse tipo de ocorrência é de 15 casos.

"Quando vim trabalhar aqui, foi um choque. Mas, melhorou muito", garante o sargento Creomar Souza. "Nós criamos uma polícia comunitária inspirada nos moldes japoneses, pioneira do estado", afirma ele, que atua na base há três anos.

Para confirmar sua suposição, o sargento realizou um levantamento na base de dados da PM. Constatou que, num raio de 1 quilômetro em torno da base, área que abriga cerca de 80.000 pessoas, houve 98 homicídios no ano da inauguração do posto. No ano passado, o número caiu para 36.

Hoje, a PM, através de sua base comunitária, organiza cinco eventos anuais, com o intuito de se aproximar da comunidade. O maior deles é a "Corrida pela Paz", que mobiliza atletas de todo o estado. "Nós pensamos: se o Fórum pode andar, por que não podemos correr?", brinca ele, aludindo à caminhada criada pela organização coordenada pelo padre Crowe. No ano passado, mais de 1000 atletas se inscreveram mediante doações de alimentos que totalizaram três toneladas e foram distribuídos a entidades carentes.

Além disso, em frente à base, foi construído um palco, onde acontecem shows musicais nos fins-de-semana. "Quem poderia imaginar um show de rap na porta da PM?", diverte-se Souza.

Mas o sargento reconhece que, mais do que fruto de iniciativas isoladas, a redução da violência no distrito foi um esforço coletivo. "Não foi só a polícia comunitária. As ONGs e o Fórum contribuíram muito".

Que redução?

 
Destino da maioria das vítimas do Ângela, vista do Cemitério São Luís é dominada pela maior das causas da violência: a miséria

Do alto do cemitério São Luiz, até onde o olhar alcança, o panorama é uma massa homogênea de barracos e moradias precárias: é a região pobre da zona Sul da cidade de São Paulo, em todo seu abandono. Dessas casas, vista é diferente, mas não muito pior: a infinidade de lápides do cemitério. Lado a lado, túmulos e favelas parecem forçar uma equação que a história teima em confirmar. Esse é o trajeto que Luís Campos percorre há dez anos. Morador do Capão Redondo, ele é coveiro e jardineiro do São Luiz, destino da maioria dos que falecem no vizinho Jardim Ângela. "Aqui a gente trabalha sob tensão, a todo minuto esperando que aconteça alguma coisa, principalmente porque a maioria dos enterros é de gente que faleceu de morte matada", conta.

Segundo ele, antes da instalação de uma base da Guarda Civil Metropolitana na entrada do cemitério, ocorreram casos de acerto de contas entre facções rivais durante o próprio funeral.

Apesar disso, diz se sentir mais tranqüilo, por conta do policiamento mais atuante. "Mas quando cai a noite, os problemas voltam", contrapõe.

 
Morador do Capão Redondo, Luís Campos conhece as duas dimensões do quadro tenebroso da região

Enquanto abre uma nova quadra de covas, para garantir espaço para a média de 20 a 25 enterros por dia do cemitério, Campos desconfia das pesquisas que dizem que a violência caiu na região. "Continua a mesma coisa", garante.

Independente de não ser possível afirmar categoric
amente que a causa da violência é a pobreza – e vice-versa –, é fato que ambas caminham muito próximas. E, segundo um consenso entre os movimentos sociais que atuam na região, se a queda da violência é motivo de comemoração, é também de incerteza, já que a carência do Jardim Ângela permanece intacta. "Estamos felizes com os números, mas preocupados com até quando isso vai durar. As drogas e o desemprego continuam e nosso abandono em relação ao centro ainda é muito grande", pontua o padre Crowe.

Essa é também a opinião de Sérgio Bosco, do RAC. "A redução da violência deve se manter, mas as causas não mudaram". Para ele, existe a "periferia da periferia", onde a situação é ainda pior. "No projeto, nós recebemos mais casos do 'fundão' do que do centro do Jardim Ângela", constata. "O que continua fazendo falta lá (nas regiões mais distantes do centro do distrito) é o que faz a diferença aqui: a maior presença do estado, mais investimento social e em infra-estrutura", finaliza.

Talvez o maior exemplo do abandono a que se referem Bosco e o padre Crowe esteja na possibilidade de que o Centro Utilitário de Intervenção e Apoio aos Filhos de Dependentes Químicos (Cuida) feche suas portas.

Iniciado em 2001, com auxílio dos fundos do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) do município, o projeto atende jovens de 0 a 18 anos que convivam com casos de dependência química na família. "São casos de depressão, ansiedade e auto-estima muito baixa", diz Neliana Buzi, psicóloga e coordenadora do Cuida.

"Recebemos um menino de 5 anos, cujos pais eram alcoólatras. Ele tinha uma irmã de 1 ano, e era obrigado a fazer arroz e feijão, ou ela não teria o que comer", relembra ela. "Por conta disso, ele estava sempre queimado, o que nos fazia pensar que era agredido", completa.

Hoje, o projeto presta atendimento psicológico, psiquiátrico e assistência social para 112 jovens e mais 49 adultos, familiares dos dependentes químicos. E tem apresentado resultados. Uma avaliação realizada pela equipe identificou que o nível de satisfação com a vida era de 54% para as crianças e pré-adolescentes que já vinham recebendo auxílio do Cuida há algum tempo, contra 33% daqueles recém-chegados.

 
O projeto Cuida, coordenado pela psicóloga Neliana Buzi (terceira, da esquerda para a direita), corre o risco de fechar por falta de verbas

Entretanto, desde agosto deste ano, o projeto depende de doações da paróquia Santos Mártires, já que a verba do CMDCA foi cortada, sob alegação de que não há uma portaria que possa financiar o Cuida. A justificativa apenas confirma a alegação de Neliana: "Não existe política municipal de álcool e drogas para crianças e adolescentes". Para piorar, o projeto tem muita dificuldade de conseguir verba através da iniciativa privada. "As pessoas acham que não vale a pena dar dinheiro para filhos de dependentes químicos, pois acreditam que eles também se tornarão viciados", critica Neliana.

O custo total de manutenção do Cuida por mês é de R$ 18 mil.

Lado B da Comunidade

Ao contrário de Daniel e Mazinho, da Família NK, o tráfico ganhou a batalha contra J.S.F.L e B.V.N. Por sorte, a vitória não foi definitiva. E, por isso, como aconteceu com o nome da região onde moram, podem revelar a identidade ocultada pelas iniciais: Jonathan e Bruno.

Ambos foram presos por crimes relacionados às drogas. Jonathan, apelidado de "Carabina", trabalhava numa "boca". Bruno era responsável pelo "157", código para assalto a mão armada, que reforçava o caixa do tráfico.

"A gente não tem mordomia como na cidade. Da ponte pra cá, são outros quinhentos", diz Bruno. "No meu tempo de criança, nem tinha onde brincar", complementa Jonathan. Assim, pela velha rota da falta de opção, o tráfico acaba se tornando uma alternativa.

Em 2001, Bruno ficou um mês preso, após ter sido pego na fuga de um assalto a banco. "Bateram tanto em mim, que até o legista se assustou no exame de corpo-de-delito", recorda.

Jonathan foi delatado e pegou 9 dias de internação. "Lá dentro, você tem que ficar na sua, não deve arrumar confusão, mas também não pode abaixar a cabeça", conta.

Ambos se encontraram no projeto RAC, após conseguirem liberdade assistida. Lá, perceberam a falta de perspectiva da vida de traficante. "Isso não é pra mim. Ver a sua mãe chorando no Fórum é muito sofrimento", garante Bruno. E completa: "O tráfico é como uma torre. Quem está lá em cima, está legal. Quem está em baixo, fica no veneno".

Através do projeto, constataram que poderiam fazer parte da reabilitação por que todo o Jardim Ângela passava. "Antes, eu só conhecia o lado da violência. O RAC foi como um espelho, por onde eu pude me olhar e falar: eu posso mudar e conseguir algo melhor", relata Bruno.

Além de terem tomado contato com o hip-hop, que hoje praticam através das letras, da dança e do grafite, no projeto, fizeram uma oficina de cinema, onde produziram um curta-metragem chamado "O lado B da comunidade", em que "B" significa "bom". O vídeo retrata a face do Jardim Ângela que fez das iniciais um nome.

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