O significado prático de “revitalização”, no Brasil, raramente reflete as definições encontradas nos dicionários. Historicamente, o termo está muito mais para um eufemismo de “limpeza social”. O processo de recuperação da região central da capital paulista que está sendo colocado em prática pelo prefeito José Serra (PSDB) não foge à regra.
A recuperação de edifícios públicos importantes, a reforma de praças, parques e avenidas, o combate aos crimes e a tentativa de atrair investimentos da iniciativa privada não estão sendo acompanhados de políticas públicas que incluam os grupos marginalizados que vivem ou trabalham na região central da cidade. Pelo contrário, os sem-teto estão sendo removidos de suas ocupações, o trabalho dos catadores de material reciclável está sendo dificultado e os moradores de rua têm sido vítimas de atos preconceituosos e alvo de ações repressivas para que não fiquem mais no centro. Tampouco são apresentadas alternativas viáveis para a parcela de excluídos que vive na região.
Essa política, no entanto, foi bastante elogiada numa matéria da revista Veja, na edição da 11 de janeiro, intitulada “A solução é derrubar”. O conteúdo veiculado pela publicação semanal causou indignação entre movimentos sociais, urbanistas, organizações ligadas aos moradores de rua e que defendem o direito à cidade, entre outras. O Instituto Polis começou a formar, na semana passada, junto a outras entidades da sociedade civil, uma rede de repúdio à revista. Para eles, o texto é preconceituoso e viola os direitos humanos. O Centro de Mídia Independente, por sua vez, lançou uma campanha contra o periódico intitulada “A solução é não assinar”.
A matéria em questão trata especialmente do caso da Cracolândia, região degradada do centro, no bairro da Luz, em que a subprefeitura da Sé realizou no ano passado uma série de ações para fechar bares e hotéis que estavam ligados ao tráfico e à prostituição, retirou moradores de rua e aumentou o policiamento para inibir o consumo de drogas no local. Em seguida, a prefeitura declarou de utilidade pública 750 imóveis, em uma área de 105 mil metros quadrados, que agora podem ser desapropriados. A idéia é retirar os sem-teto da região e atrair empresas, por meio de incentivos fiscais, que possam “valorizar” a área.
“Um projeto para o centro tem que ser pensado a partir do contexto brasileiro de profundas desigualdades sociais, precisa incluir a população de baixa renda para promover uma mistura socioeconômica a fim de construir uma sociedade mais equilibrada”, defende o pesquisador Francisco Comaru, da equipe de urbanismo do Instituto Polis, que integra o Fórum Centro Vivo, articulação que reúne movimentos populares urbanos, pastorais, universidades, sindicatos e entidades de defesa dos direitos humanos, educação e cultura em São Paulo.
Segundo ele, nas últimas décadas vem ocorrendo um movimento perverso de esvaziamento do centro e inchamento das periferias, onde há menos empregos, infra-estrutura e oferta de serviços de educação e saúde, menor número de atividades culturais e uma rede de transporte público mais precária. “A região central tem um potencial muito grande para abrigar a população que trabalha no centro e diminuir o impacto econômico, social e ambiental desse deslocamento”, diz. Nesse sentido, a política que vem sendo implementada na Cracolândia e em outros locais não ajuda a reverter esse processo, pois não estimula o uso residencial dessas áreas, o que evitaria a necessidade de um movimento pendular entre residências e locais de trabalho e serviços oferecidos pela cidade, que gera enormes congestionamentos e contribui para aumentar a poluição da cidade e diminuir a qualidade de vida da população em geral.
Há cerca de uma década, os movimentos de moradia da cidade de São Paulo vêm lutando intensamente para permanecer no centro, por meio de ocupações, mobilizações e outras formas de pressão e diálogo com o poder público. Durante a atual gestão da prefeitura de São Paulo, no entanto, foram realizadas diversas reintegrações de posse e remoção das famílias que se encontravam nesses imóveis vagos sem qualquer preocupação com o destino dessas pessoas.
“Existe uma disputa pesada pelo território no centro de São Paulo. Os comerciantes, os empresários, o mercado financeiro e imobiliário, com o apoio do poder público, têm uma visão de que o centro tem que ser modernizado, que o patrimônio histórico e cultural deteriorado tem que ser recuperado, que a classe média deve voltar à região e que tudo isso é incompatível com a possibilidade das pessoas de baixa renda viverem nesse território. Esse é o grande conflito”, avalia Benedito Roberto Barbosa, conhecido como Dito, representante da União de Movimentos de Moradia de São Paulo.
Na gestão Marta Suplicy, de acordo com Dito, havia diálogo com os movimentos e foram implementadas algumas políticas interessantes, como os programas Bolsa Aluguel e Locação Social. “Quando esse novo governo começou, havia a expectativa de que pelo menos essas iniciativas tivessem prosseguimento, mas isso não aconteceu. A secretaria deixou de negociar com os movimentos e de dialogar para buscar alternativas para a população que foi despejada do centro”, critica.
O professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Nabil Bonduki, ex-vereador petista durante a gestão da prefeita Marta Suplicy (PT) e relator do projeto de lei do Plano Diretor, concorda que não pode haver uma política para a região central que leve à exclusão dos setores populares. “Isso cria uma cidade que não responde ao conjunto de seus habitantes e classes sociais. O centro tem que ser um espaço de todos”, enfatiza. Para ele, é necessária uma intervenção positiva, que não se baseie na idéia de demolição, mas de reaproveitamento do patrimônio construído.
Preconceito
Está embutido na atuação da prefeitura, e também na matéria da Veja, que traduz o pensamento de uma parcela da sociedade brasileira, um preconceito contra a população de baixa renda. Para melhorar a imagem do centro, na visão dos setores conservadores, é preciso deixar cada vez mais distantes os trabalhadores informais, os sem-teto, os catadores de material reciclável, os moradores de rua e profissionais do sexo; torná-los invisíveis aos olhos da elite paulistana.
“Está ocorrendo uma criminalização da população que vive nas ruas da cidade. Não se pode confundir os moradores de rua com criminosos”, alerta o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, que foi duramente atacado pela matéria da Veja e acusado de “demagogo”, o que gerou uma forte revolta na população que admira o trabalho incansável do padre na defesa dos direitos humanos de grupos excluídos. O ciclo de manifestações da pastoral realizadas no ano passado relacionadas ao massacre dos moradores de rua em 2004 havia sido encerrado, mas como se iniciou um novo massacre pela imprensa, ele foi reiniciado. Nesta quinta-feira (19), em ato público, foi denunciado o preconceito contra os moradores de rua que reivindicaram políticas públicas destinadas a eles. Também foram expostas as centenas de mensagens enviadas para a revista Veja, com cópia para Casa Vida e Pastoral de Rua, que não foram publicados pela edição seguinte. Além disso, foi apresentada uma Ação Civil Pública do Ministério Público Estadual em relação às rampas antimendigo, construídas na gestão Serra.
Soluções
Esse embelezamento desejado pode realmente ocorrer, mas os problemas não serão resolvidos de fato, apenas transferidos para outros locais. “Ninguém é contra a valorização do centro da cidade e ninguém vai defender a criminalidade, a violência e o narcotráfico, mas a questão mais complexa é tentar fazer do centro o cartão de visitas da cidade tendo que tirar compulsoriamente a população de rua ou que está em outras áreas degradadas. Isso não surte efeito”, diz Lancellotti.
A revalorização do centro, para o Padre Júlio, tem que partir da revalorização da vida das pessoas, do espaço público e das políticas públicas. “Quais foram as políticas implementadas na Cracolândia? Quais os espaços de convivência, os serviço de saúde e prevenção de uso de drogas, quais atividades de cultura, de lazer e esportivas, de profissionalização e capacitação que estão sendo feitas com as pessoas que ficavam lá?”, questiona.
Os albergues, apontados por muitos como a solução para a questão dos moradores de rua – inclusive por representantes da prefeitura – são uma política insuficiente e paliativa. Eles não recebem famílias, pois separam por sexo e por idade, impõem horários rígidos de entrada e de saída, não oferecem privacidade às pessoas que vivem neles. Por isso, muitas pessoas sequer querem ir aos abrigos, preferem ficar nas ruas. “Devem ser criados abrigos que não sejam apenas dormitórios noturnos, mas lugares de requalificação e inserção profissional”, defende Bonduki. Como essa população é muito heterogênea, o papel do poder público em relação a essa situação é bastante amplo, implica na criação de espaços de convivência, de políticas nas áreas de saúde, trabalho e moradia, entre outras.
Além disso, os albergues não substituem uma política de habitação necessária para a área central, que deve incluir a utilização da grande quantidade de imóveis vagos ou ociosos na região e a criação de habitações de interesse social e outros programas.
A proposta de acabar com diversos calçadões de pedestres no centro da cidade, em vias de ser concretizada pela subprefeitura da Sé, também é alvo de críticas, por estimular a utilização de carros. Isso porque a requalificação da área central também passa pelo incentivo ao uso do transporte público – com integração cada vez maior entre ônibus, metrô, trem e barateamento das tarifas, que cada dia pesam mais no bolso da população de baixa renda – somado a mecanismos que desestimulem o transporte individual, como rodízios e pedágios.
Uma solução real para os problemas da cidade de São Paulo, definitivamente, não passa por derrubar a Cracolândia, como propõe a revista Veja, nem outras áreas do centro. “É preciso atracar as causas e não as conseqüências. Dessa forma que está sendo feito não se resolve o problema do tráfico, nem das desigualdades, nem os problemas urbanos. Fica esteticamente mais agradável, mas agrava os problemas e contribui para uma cidade mais insegura porque as barbaridades que são promovidas de um lado aparecem de outra forma do outro, na falta de segurança”, conclui Comaru.
Fernanda Sucupira é membro da ONG Repórter Brasil
Da Agência Carta Maior