Chacal já tinha tomado três ou quatro batidas de limão, o que certamente contribuiu para deixá-lo menos envergonhado. Parecia bastante empolgado com o movimento de uma feira de artes que ele e alguns amigos organizavam no espaço da livraria Muro, a pedido do próprio dono. As pessoas que perambulavam pela loja localizada em Ipanema, bairro badalado da zona sul do Rio de Janeiro, estavam entretidas com a projeção de um vídeo sobre índios nativos do Brasil. As imagens eram acompanhadas pela reprodução da batucada do Cacique de Ramos, tradicional bloco carnavalesco carioca. Não havia microfone ou qualquer outro aparelho que aumentasse a potência de sua voz. Mesmo assim, Chacal não resistiu à súbita vontade de emendar "Papo de Índio", poema de tom coloquial e dinâmico publicado em 1971, quatro anos antes daquele evento realizado em Ipanema:
"Veio uns ômi de saia preta
cheiu di caixinha e pó branco
qui eles disserum qui chamava açucri
Aí eles falarum e nós fechamu a cara
depois eles arrepetirum e nós fechamu o corpo
Aí eles insistirum e nós comemu eles"
Chacal compara sua atitude à declamação de "O uivo", feita por Allen Ginsberg, em 1956, numa galeria de São Francisco. A performance do poeta norte-americano é considerada um marco para a chamada beat generation, cujos valores revolucionaram o comportamento dos jovens dos Estados Unidos no período do pós-guerra. Em busca de uma vida recheada de emoções e aventuras, eles se atiravam na estrada e atravessavam o país de ponta a ponta, preparados para o que desse e viesse. Esse movimento de contracultura surgido na metade do século 20 conquistou corações e mentes do mundo inteiro.
Impossível não reconhecer a herança do ideal beat no espírito da poesia que Chacal e seus jovens colegas do Rio de Janeiro praticavam em 1975. Afinal de contas, eles não queriam parecer com Carlos Drummond de Andrade, mas sim com Bob Dylan. Não almejavam apenas fazer poemas, mas viver poeticamente. Contudo, havia referências ainda mais fortes para compreender esse fenômeno literário que criou raízes sólidas na zona sul da capital fluminense, e que acabou se espalhando por diversas cidades do Brasil. "A nossa geração é embebida em Beatles, um lance mais hippie", explica Chacal, que também é autor de teatro, roteirista de televisão e compositor musical.
No ano seguinte à apresentação na livraria Muro, outros versos de sua autoria fizeram parte de uma antologia chamada "26 poetas hoje", organizada pela professora Heloisa Buarque de Hollanda. A obra provocou bastante burburinho no meio acadêmico nacional ao definir aquele que, mesmo três décadas depois, ainda pode ser considerado o último rótulo significativo quando se fala em poesia no Brasil: marginal. "O livro levantou uma questão que precisava ser colocada naquele momento: o que é literatura? Ele irritou porque pôs em dúvida os paradigmas, derrubou explicitamente o mito da grande poesia", afirma Heloisa. Nomes conhecidos, como Torquato Neto, Waly Salomão e Ana Cristina César, figuram entre esses 26 poetas. Há outros escritores importantes que não foram relacionados, como o curitibano Paulo Leminsky, mas cuja produção também guarda semelhanças com a do grupo que compõe a antologia.
O termo "marginal" foi cunhado pela própria professora e não remete à noção de fora-da-lei, como poderia supor o leitor mais desavisado. Na verdade, ele se aplica a autores que tinham dificuldade para emplacar suas obras em editoras de grande porte. Não é à toa, portanto, que eles foram imortalizados pela expressão "geração do mimeógrafo", já que se valiam dessa máquina para levar ao público consumidor, de forma ágil e barata, livros de pequena tiragem bancados por conta própria. Entretanto, "26 poetas hoje" é emblemático porque fez justamente o contrário: abriu as portas do mercado editorial para a maioria dos que participaram da antologia. Além disso, marginal era aquele que traduzia em versos de postura anti-intelectual os problemas do seu cotidiano, revelando sintonia com as mudanças políticas e comportamentais por que passava o país. Uma época de repressão e censura impostas pelo governo militar, mas também um período de assimilação da cultura pop, que o Tropicalismo de Caetano Veloso e Gilberto Gil ajudou a introduzir.
É necessário fazer uma importante ressalva ao se analisar essa produção literária que marcou os anos 70. Falar de poesia marginal não implica falar apenas de jovens inebriados por cinema, cartoons e shows de rock. Ela não diz respeito somente a pessoas como Chacal e Charles, que organizavam bem freqüentados recitais – as famosas "artimanhas" – e mergulhavam de cabeça no ambiente de psicodelia típico daquela década. A antologia lançada por Heloisa Buarque de Hollanda é prova disso. Constam dela escritores de pelo menos três gerações diferentes, com valores e ideais distintos, mas que se irmanavam pela insatisfação com os anos de chumbo da ditadura. Também se aproximavam pela utilização de "uma comunicabilidade direta, uma linguagem cotidiana e nada rebuscada para expressar aquela realidade", explica Flávio Aguiar, professor de literatura da Universidade de São Paulo (USP), que também participou dos "26 poetas hoje".
Por essa razão, soaria falso caracterizar a poesia marginal como um movimento. Até porque não se percebe uma unidade ideológica, muito menos a manifestação de receitas sobre o modo de se fazer literatura – como propunham os modernistas de 1922, encabeçados por Mario e Oswald de Andrade, por exemplo. Tratava-se da partilha de um sentimento comum sobre uma realidade hostil. "A grande qualidade da antologia da Heloisa foi revelar alguns poetas, mas o defeito consistiu em colocar um rótulo em pessoas muito diferentes que estavam produzindo na mesma época. Eles não se vêem como um grupo", garante Viviana Bosi, professora da USP.
Liberdade e repressão
Há quem diga que o ano de 1968 não acabou até hoje. Em Paris, durante o mês de maio, centenas de milhares de jovens europeus tomaram as ruas da cidade com um objetivo no mínimo ambicioso: mudar o mundo. Protestavam contra a manipulação exercida pelos meios de comunicação de massa, lutavam pelo fim das discrepâncias entre homens e mulheres, defendiam a preservação do meio ambiente. Enfim, clamavam por uma sociedade mais justa e, acima de tudo, livre.
No Brasil, as manifestações de Paris também ecoaram para valer e apimentaram o já temperado caldeirão político da época. O país havia completado quatro anos sob o domínio da ditadura, e a press&atild
e;o social pela redemocratização se acentuava. No campo das artes, Chico Buarque, com sua peça de teatro "Roda Viva", e Caetano Veloso, através de sua canção "É proibido proibir", funcionavam como porta-vozes dos críticos do regime militar. Entretanto, em reação à crescente insatisfação popular, o general e presidente da república Costa e Silva assinou o Ato Institucional de n°5 (AI5), no apagar das luzes de 1968. Imediatamente, começou um nebuloso período de perseguições e repressão aos inimigos do governo.
As mídias de grande circulação e as manifestações culturais de massa, como o cinema e a música, sofreram mais com a censura dos órgãos militares do que a literatura. "A poesia nunca foi formadora de opinião, e não tinha o poder de fogo das outras artes. Por isso, não existia tanto controle. De qualquer maneira, ela agregou muita gente nos anos 70. Os recitais eram muito concorridos. Hoje isso é impensável", analisa Heloisa. A poesia marginal também seguiu a trilha aberta pela imprensa alternativa, de que se destacam os jornais "Opinião", "Movimento" e "Pasquim". "Havia um clima muito receptivo no país a esse tipo de publicação devido à censura. Era uma forma de resistência cultural contra um mercado editorial considerado anacrônico e contra o controle imposto pelo regime militar", conta Flávio Aguiar.
O florescimento da poesia marginal é fruto do choque entre a atmosfera repressiva, no plano político interno, e a metamorfose comportamental que se verificava em esfera mundial. "Imagine o que é ter 17 anos em 1968, com a ditadura comendo solta? Meu pai foi preso depois do AI5. Aí aparecem o movimento hippie, o festival de Woodstock. Eu precisava de um canal para responder a todas essas informações, e o canal foi a palavra", conta Chacal. Havia um tom de desilusão no ar com relação aos métodos tradicionais de luta pregados pela esquerda – que não pareciam a resposta adequada à violência dos novos tempos. Por outro lado, a liberdade individual defendida pelos jovens de Paris era um convite à rebeldia, não à revolução.
"Foi um momento de demolição de dogmas, uma resposta aos que acreditavam, com a melhor das intenções, que o intelectual era irmão do operário para fazer a revolução. O que os dois tinham em comum? Ambos estavam fora do centro social, mas cada um se encontrava isolado no seu mundo", argumenta Viviana Bosi. O clima de desilusão e de crítica a esse discurso em certa medida populista é evidenciado por um poema de Charles intitulado "Perpétuo Socorro":
"O operário não tem nada com a minha dor
Bebemos a mesma cachaça por uma questão de gosto
ri do meu cabelo
minha cara estúpida de vagabundo
dopado de manhã no meio do trânsito
torrando o dinheirinho miúdo a tomar cachaça
pelo que aconteceu
pelo que não aconteceu
por uma agulha gelada furando o peito"
A ânsia de viver desregradamente, com cara de vagabundo dopado de manhã, rendeu à geração de 70 o adjetivo de "desbundada" – trocando em miúdos, um grupo que queria tão somente curtir a vida. Mas não eram apenas os jovens que enxergavam a necessidade de repensar os métodos de militância política, ao fazer do próprio cotidiano a arma de protesto contra o status quo. Na verdade, a poesia marginal nasceu da aliança entre esses poetas influenciados pelo modo de vida alternativo da contracultura americana e os escritores que vivenciaram o clima de disputa política profundamente ideologizada da década anterior. "Ao ler Chico Alvim (um dos "26 poetas hoje"), que era marxista convicto, percebe-se que ele acha que a retórica do Partido Comunista não tinha mais eficácia para a situação que se armou. Enxerga-se a vontade de buscar uma saída, mas não a saída da revolução comportamental, como fez a geração do desbunde", afirma Heloisa.
Traços estilísticos
À primeira leitura, a poesia marginal dos anos 70 parece resgatar propostas formuladas pelos escritores que redefiniram os rumos da literatura nacional na Semana de Arte Moderna de 1922, realizada em São Paulo: versos com toque humorístico e linguagem coloquial, que revelam pouca preocupação com a métrica ou com a rima, e que retratam situações bastante cotidianas. Entretanto, os marginais foram além nessa vontade de casar poesia e vida, deixando de lado o politicamente correto e se valendo do efeito libidinoso e dos palavrões – tão corriqueiros, diga-se de passagem, nas conversas entre as pessoas. É o que se pode ver nos versos de "Epopéia", de Cacaso, professor universitário que exerceu uma certa liderança entre os marginais, conquistando admiradores e popularizando esse tipo de produção no meio acadêmico:
"O poeta mostra o pinto para a namorada
E proclama: eis o reino animal!
Pupilas fascinadas fazem jejum"
Abordar temas terrenos e subjetivos consistia numa crítica ao que era considerado cânone na época, como a poesia de João Cabral de Mello Neto, por exemplo. Na concepção de alguns marginais, a literatura do mestre pernambucano tinha um caráter muito maquinal e tecnicista, com versos bem acabados, porém pouco antenados ao dia-a-dia. Também representava uma alfinetada no projeto estético do concretismo, criado pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e por Décio Pignatari, que defendiam a "morte" do verso convencional ao darem mais importância para a espacialização das palavras na transmissão de uma mensagem – uma poesia que privilegiava os efeitos de caráter visual. Além disso, os marginais não se enquadravam no engajamento político-partidário da poesia produzida nos moldes prescritos pelo Centro de Cultura Popular, da União Nacional dos Estudantes (UNE), durante a década de 60.
Mas, se a opção por uma linguagem coloquial e temas pouco complexos já havia sido praticada pelos modernistas, e se a crítica à conjuntura política também já tinha sido feita antes, o que de fato singulariza os marginais? Pode-se dizer que eles "desengravataram" a poesia, que desceu do pedestal e passou a freqüentar ambientes não tão eruditos. O público fiel, composto principalmente de universitários que freqüentavam a zona sul do Rio de Janeiro ou os cinemas de São Paulo, identificou-se com aquela maneira espontânea e inocente de peitar as grandes editoras. "Era difícil entrar no mercado. Mas, com o avanço das técnicas gráficas, fazer um livro de poucas páginas ficou barato, e o mimeógrafo se tornou a forma mais simples de reprodução. Havia dificuldade para comercializar, e isso passou a ser feito de mão em mão, pelo próprio autor, nas portas de restaurantes e teatros. A princípio era uma alternativa, depoi
s virou uma opção de recusa ao mercado tradicional", acrescenta Flávio Aguiar.
Legado
Quando Caetano Veloso, Gilberto Gil e companhia estremeceram a cena da música popular brasileira com a Tropicália, no final da década de 60, estava claro que esse movimento descendia diretamente da Antropofagia criada por Oswald de Andrade, quarenta anos antes. A idéia de devorar as influências culturais vindas de fora, misturando-as ao pastiche de ritmos e expressões genuinamente tupiniquins, demorou a ser digerida pela esquerda tradicional no país. O som da guitarra era visto como uma verdadeira afronta aos valores nacionalistas e por isso causou tanto alvoroço na época. Com a mesma ânsia que Caetano e Gil beberam da fonte de um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, os poetas marginais da década de 70 também se apropriaram do canal de cultura pop desbravado pelos tropicalistas.
O piauiense Torquato Neto, que pertencia à linha de frente daquele movimento, é um dos grandes responsáveis pela disseminação dos novos valores que deram o tom da produção literária desenvolvida ao longo dos anos de chumbo da ditadura. Por essa razão, é considerado um dos pais da poesia marginal. Entre 1971 e 1972, ele assinou a coluna "Geléia Geral" no jornal "Última Hora", com textos que refletiam a efervescência contracultural que já havia contaminado outras áreas, como as artes plásticas. Não é por acaso, portanto, que a homenagem eternizada pelo slogan "seja marginal, seja herói", feita por Hélio Oiticica ao traficante Cara de Cavalo, morto pela polícia em 1966, é considerada uma metáfora da aura inquieta daqueles anos.
Apesar de se encontrarem autores independentes em diversas partes do Brasil, como São Paulo, Belo Horizonte e Brasília, a poesia marginal na verdade é um fenômeno bastante localizado, uma febre que assolou a classe média e universitária, que freqüentava a zona sul do Rio de Janeiro. "Não acho que existisse um grupo coeso de poetas, mas pelo menos havia um grupo. Isso também era devido à liderança exercida pelo Cacaso", afirma Flávio Aguiar. Foi nessa região da capital fluminense que surgiram círculos de autores que se reuniam para lançar publicações de poesia, como a revista "Navilouca" e a coleção "Frenesi", produzidas com recursos próprios e vendidas de mão em mão. É no Rio de Janeiro também que surge a Nuvem Cigana, um grupo formado não só por poetas, como Chacal e Ronaldo Bastos – parceiro de Milton Nascimento em diversas composições –, mas também por pessoas como o cantor Paulinho da Viola e o jogador de futebol Afonsinho, que se reuniam para organizar artimanhas e eventos culturais de todo tipo.
Atualmente, o legado da poesia marginal pode ser visto sob diversos ângulos. No campo específico das letras, o número de teses acadêmicas sobre autores como Chico Alvim e Ana Cristina César só fazem crescer. "É bastante irônico. Na década de 70, eles não eram considerados literatura, mas hoje são parte do cânone, viraram oficiais", afirma Heloisa. Outros buscaram novas formas de expressão artística e acabaram migrando para a televisão, como é o caso de Chacal e Charles, que se tornaram roteiristas da Rede Globo. Além disso, diversas composições de sucesso, consagradas nas vozes de cantores bastante populares como Edu Lobo, Moraes Moreira, Lulu Santos e Adriana Calcanhoto, foram feitas em parceria com os poetas marginais.
É difícil resumir o espírito alvoroçado daquela época, em que a poesia preencheu uma parte do vazio deixado pela repressão ostensiva aos movimentos organizados de contestação política. Os marginais oscilam entre a necessidade de se libertar e a tensão por não se deixar controlar, mas todos são reféns das suas individualidades, o que impossibilita qualquer generalização. "A poesia marginal é um saco de gatos", brinca Chacal. Talvez também seja "como se todos estivéssemos escrevendo um poema a mil mãos", como escreveu Cacaso.