Desde 2004, morreram pelo menos 13 cortadores de cana-de-açúcar no Estado de São Paulo, na sua grande maioria jovens e migrantes. Ainda que não tenha sido completamente comprovado, há fortes indícios de que esses óbitos ocorreram por causa do excesso de trabalho a que esses trabalhadores rurais são submetidos. Em condições insalubres, sob sol forte e em ritmo acelerado, muitas vezes eles trabalham por dez a doze horas ininterruptas, já que são remunerados de acordo com a quantidade de toneladas de cana-de-açúcar cortada durante o dia. E é exatamente a esse sistema que muitos atribuem as mortes ocorridas nos últimos dois anos.
Por conta disso, o Ministério Público do Trabalho (MPT) pretende proibir, a partir da safra de 2007, o pagamento por produção. Durante este ano, as usinas deverão negociar com sindicatos e federações a nova forma de remuneração e se adaptar a ela. Parte dos trabalhadores, no entanto, teme que a medida resulte em diminuição da renda mensal e quer que a proposta passe por um processo mais amplo de discussão entre os cortadores de cana.
Um dos elementos que levam à suspeita de que as mortes estão relacionadas ao esforço dos trabalhadores são os sintomas bastantes semelhantes nas diferentes histórias: tontura, náusea e desmaio, seguido do óbito. Além disso, foram registrados diversos outros casos de cortadores de cana que chegaram aos hospitais com os mesmos sintomas, mas não vieram a falecer. Outros estão com doenças relacionadas ao trabalho, como dores na coluna e outros tipos de problemas decorrentes do esforço excessivo que se vêem obrigados a fazer.
“Esse trabalho penoso, sem as condições mínimas para ocorrer, somado ao pagamento de acordo com a produção, resulta em mortes e afastamento por tonturas constantes ou LER [lesão por esforço repetitivo]. Como o ganho é por produtividade, eles não param para comer, trabalham o dia todo, num ritmo rápido, sem controle de quanto produzem e conseqüentemente de quanto deveriam ganhar’”, explica Mário Antonio Gomes, procurador do Trabalho que integra o grupo formado em novembro de 2005 pelo MPT para investigar as mortes e buscar soluções para o problema nos canaviais.
Até a safra do próximo ano, os usineiros precisam demonstrar que estão negociando com os sindicatos e buscando alternativas para a remuneração desses trabalhadores. Caso contrário, o MPT vai ajuizar uma Ação Civil Pública com o objetivo de acabar com o salário por produção. “Pela primeira audiência pública que fizemos, não parece que haja interesse por parte das usinas de fazer isso. Elas não se manifestaram, não falaram nada”, conta o procurador.
Nem todos os trabalhadores, no entanto, estão convencidos sobre a efetividade da medida, e alguns estão descontentes sobre a forma como ela vem sendo conduzida. Segundo Miguel Ferreira dos Santos Filho, diretor da Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (Feraesp), à qual estão filiados 70 sindicatos, a mudança pode ser positiva, visto que a remuneração por produção é muito ruim para os trabalhadores, mas ainda é necessária uma grande discussão com os cortadores de cana para saber o que eles querem. A Feraesp está se posicionando contrariamente ao fim do pagamento por produção porque considera que não houve o amadurecimento da proposta.
“O Ministério Público do Trabalho visita os canaviais, mas não ouve os trabalhadores por inteiro, só alguns. E as audiências não são suficientes porque só participaram delas os sindicalistas”, critica Santos, referindo-se às audiências públicas que o MPT está promovendo em todas as regiões do Estado de São Paulo onde há produção de cana-de-açúcar, para debater o problema e informar sobre as ações do órgão. Já ocorreu uma em Ribeirão Preto e estão marcadas para este mês outras em Piracicaba, Araraquara, São José do Rio Preto e Barretos. São chamados representantes das usinas de cada região, de sindicatos e federações dos trabalhadores rurais, além de subdelegados e juízes do Trabalho. “Os sindicalistas não têm condições de afirmar que sim ou que não. Eles representam os trabalhadores, mas são as assembléias que determinam as mudanças na categoria”, argumenta o diretor da Feraesp.
Existe entre uma parcela dos cortadores de cana-de-açúcar um temor de que haja uma diminuição da renda mensal. Eles defendem que deveria fazer parte da proposta do MPT um aumento no piso salarial da categoria, que hoje é de R$ 410. No sistema de pagamento por produção os trabalhadores da região de Ribeirão Preto, por exemplo, recebem em média R$ 950 mensais e chegam a ganhar até R$ 1.200 por mês. No entanto, são muito poucos os que conseguem atingir essa renda mais alta e normalmente precisam trabalhar até o limite de sua resistência para isso.
Outro problema é que a remuneração por tonelada é fixa – R$ 2,40 por tonelada na região de Ribeirão Preto – independentemente do tipo de cana-de-açúcar cortada. Essa forma de pagamento é considerada injusta porque o esforço necessário para cortar a cana deitada, por exemplo, é muito maior do que o da cana em pé. “O setor se modernizou, desenvolveu várias qualidades de cana satisfatórias para as empresas, mas não levou em conta os trabalhadores”, avalia Santos. Uma dessas variações, segundo ele, tem maior grau de sacarose e alta produtividade de álcool, só que é muito leve, o que diminui a remuneração dos trabalhadores. Eles reivindicam o pagamento de acordo com o grau de dificuldade de cada variedade e não pela tonelada.
Além da mudança na forma de remuneração no próximo ano, o órgão pretende exigir a efetiva implantação, a partir de abril deste ano, da Norma Regulamentadora 31 (NR 31) do Ministério do Trabalho e Emprego, publicada em março de 2005, que trata de segurança e saúde no trabalho rural. Ela aborda alguns aspectos importantes para o trabalhador da cana, como a pausa de uma hora para alimentação; abrigos decentes onde o trabalhador possa comer calmamente e se proteger da chuva e de raios; a existência de sanitários; pausas durante o trabalho, assim como acontece no caso de digitadores; fornecimento de água potável e fresca; e pronto atendimento médico, já que é comum que eles tenham problemas de saúde. Está previsto também um exame médico admissional completo para evitar que os empregadores utilizem a usual desculpa de que o cortador de cana morreu porque tinha hipertensão ou doença de chagas.
Para que tivessem tempo de se programar para a safra deste ano, que começa em abril, o Ministério Público do Trabalho enviou às 95 usinas do Estado de São Paulo, em janeiro, uma
notificação recomendatória para que cumpram a NR 31, contendo os pontos principais que serão verificados, sob pena de serem alvo de uma Ação Civil Pública. O MPT avalia, no entanto, que a NR 31 não vai ter efeito se não terminar o pagamento por produção, por causa dos próprios trabalhadores.
As 13 mortes apontadas nos últimos dois anos se restringem apenas aos trabalhadores registrados pela indústria. Estima-se que esse número possa ser bem maior se forem levados em conta os cortadores de cana terceirizados, sobre os quais não existe controle. Há suspeitas de que pelo menos mais duas mortes ocorreram nesse período pelos mesmos motivos. “O trabalhador não consegue trabalhar em mais do que dez safras. Eles caminham rapidamente para a morte ou a invalidez”, lamenta o procurador Gomes.
Fernanda Sucupira é membro da ONG Repórter Brasil
Da Agência Carta Maior