Primeiro caso de defensor de direitos humanos terá decisão em seis meses

O caso do advogado Gilson Nogueira, assassinado no Rio Grande do Norte em 1996, já resultou em recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao governo brasileiro. Como parte delas não foi cumprida, o caso agora está na Corte da OEA
Por Fernanda Sucupira
 20/02/2006

Nos próximos seis meses, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) deve proferir a sentença do julgamento do primeiro caso na história do órgão sobre violações contra defensores de direitos humanos e o segundo brasileiro a chegar a essa instância. Trata-se do brutal assassinato do advogado Gilson Nogueira, coordenador do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP) do Rio Grande do Norte, aos 32 anos, ocorrido em 20 de outubro de 1996, na cidade de Macaíba, na região metropolitana de Natal. Na época, ele estava denunciando a ação de um grupo de extermínio constituído por policiais civis da alta cúpula do estado, conhecido como “Meninos de Ouro”. Nogueira foi morto com três tiros, de um total de 17 disparados na cena do crime.

No início do mês, em audiência pública na sede da Corte, na Costa Rica, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e os peticionários – o CDHPM, o Centro de Justiça Global e a organização internacional Human Rights Watch – apresentaram as denúncias e os representantes do governo brasileiro se defenderam das acusações.

Os peticionários alegam que tanto a investigação quanto o processo judicial apresentaram falhas graves que impediram que os culpados fossem levados à Justiça e punidos devidamente. “A principal linha de investigação, a dos integrantes do grupo de extermínio denunciado por ele, não foi investigada”, aponta Carlos Eduardo Gaio, coordenador de relações internacionais da Justiça Global.

O primeiro inquérito do caso foi concluído em 1997 e arquivado por não chegar a nenhum responsável, apesar de diversas evidências do envolvimento de policiais. Por conta disso, Antonio Lopes, travesti conhecido como Carla, amiga de infância de Gilson, ficou revoltado e resolveu realizar investigações por conta própria. As novas provas encontradas levaram à reabertura do inquérito em 1998. A principal delas diz respeito ao carro utilizado no crime, um Gol vermelho roubado, que acabou sendo queimado. Lopes descobriu que o carro havia passado o dia anterior ao assassinato na granja da família Targino, tradicional no cenário político do Rio Grande do Norte.

Em março de 1999, o travesti foi assassinado, por fazer em suas investigações particulares o que o Estado ainda não havia conseguido: começar a desvendar o homicídio de Gilson Nogueira. Foi solicitado então pelos advogados de Nogueira que as provas do processo do assassinato de Antonio Lopes fossem juntadas ao do defensor, mas esse pedido nunca foi julgado. Também foi indeferido o requerimento para que fosse ouvida no processo Angélica Campelino, testemunha de outro caso, hoje em programa de proteção à testemunha, que afirmou ter informações de que os responsáveis pela morte de Gilson Nogueira eram integrantes do grupo de extermínio.

“Outra falha no bojo das investigações é que ela foi feita por atos mecânicos. O delegado ouviu 100 pessoas, mas não confrontou os depoimentos, nem fez nenhuma acareação”, avalia Daniel Pessoa, advogado dos pais de Nogueira e do CDHMP. Além disso, ele afirma que o delegado da Polícia Federal do primeiro inquérito deixou passar provas fundamentais para o processo. É o caso do documento que comprovava que um dos suspeitos do crime, Jorge Luís Fernando, estava em liberdade no dia do assassinato. Na época, ele estava preso sob acusação de fazer parte do grupo de extermínio denunciado por Gilson Nogueira, mas foi autorizado pelo juiz a sair duas vezes por semana. Apesar de haver depoimentos de que Jorge “Abafador”, como é conhecido, havia perseguido e ameaçado seu acusador, o delegado não apreendeu esse documento. A cópia solicitada só chegou cinco meses depois, com indícios de adulteração.

A única pessoa processada, Otávio Ernesto Moreira, outro dos acusados por Nogueira de integrar o grupo de extermínio, foi absolvido pelo Tribunal do Júri em primeira instância. Isso ocorreu embora um laudo policial comprovasse que uma arma pertencente a ele foi utilizada no crime, ainda que não tenha sido diretamente responsável pelo homicídio. Foram encontradas no local do crime e no veículo da vítima balas da arma de Moreira. Nesse caso, Daniel Pessoa avalia que a absolvição ocorreu por falha do Ministério Público, que acusou Moreira como o executor do crime e não apenas como partícipe, deixando o júri sem alternativas, já que o laudo comprova que a arma dele não matou o defensor de direitos humanos.

A transferência do júri de Macaíba, cidade onde ocorreu o crime, para Natal sem que estivessem presentes os requisitos para tal, como a ameaça de morte do acusado ou a suspeita de parcialidade do júri, exceções que quando comprovadas permitem a mudança do local, também é alvo de reclamação dos peticionários. “Não foram levantados elementos para isso. Ele alegou que estava correndo risco de ser linchado, cinco anos depois do crime”, diz Pessoa. Além disso, o Tribunal não ouviu a manifestação do Ministério Público sobre a mudança do júri, nem dos assistentes de acusação, os pais de Gilson, como determina a Constituição de 1988. Essa transferência teria contribuído para a absolvição de Moreira, por afastar a acusação da sociedade afetada pelo crime.

Para os peticionários, esse caso envolve o desrespeito ao direito à vida, ao acesso à Justiça e às devidas investigações. “Até agora os responsáveis não foram punidos por falta de vontade de investigar os culpados, já que entre os envolvidos no grupo de extermínio existem integrantes da polícia civil e pessoas ligadas à Secretaria de Segurança Pública”, argumenta Gaio, representante da Justiça Global.

O governo brasileiro, no entanto, negou todas as acusações, informando que, ao contrário do que afirmam os peticionários, foram realizadas diligências sérias e um processo correto na Justiça, tendo sido tomadas todas as medidas existentes para solucionar o caso e punir os culpados.

Após a audiência pública, as três partes – a CIDH, os peticionários e o Estado Brasileiro – devem apresentar até dia 10 de março as suas alegações finais por escrito. Depois disso, estima-se que a Corte venha a julgar o caso em cerca de seis meses.

Histórico
O caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em 1997, que fez recomendações ao Estado brasileiro, como a elaboração de um programa nacional de proteção dos defensores de direitos humanos, a indenização moral e material à família, o resgate da memória histórica de Gilson Nogueira – como uma estátua ou a nomeação de uma praça – e o incentivo a uma investigação séria e eficaz do assassinato.

Algumas delas foram cumpridas, como o programa criado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) para os defensores, mas quando o governo federal tentou um acordo com o governo do Rio Grande do Norte para discutir a questão da indenização, recebeu resposta negativa. Segundo Pessoa, a governadora Wilma Maria de Faria (PSB) disse que, embora reconheça e respeite o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, não iria acatar as recomendações da Comissão porque ela entende que o Brasil é um país soberano e o processo ainda tramita na Justiça. Por isso, o caso foi encaminhado pela Comissão à Corte, instância jurídica mais alta no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, em janeiro de 2005.

Fernanda Sucupira é membro da ONG Repórter Brasil

Da Agência Carta Maior

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