Dia 08 de fevereiro, o município de Nova Lacerda (MT), foi palco de um tiroteio surrealista provocado pela polícia militar do Estado contra os integrantes do Grupo Móvel (policiais federais, fiscais do trabalho e procurador do trabalho), em missão de fiscalização na fazenda Sankara. Por milagre, ninguem saiu morto.
Cinquenta dias depois, por determinação da Conatrae (Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo), o Governo de Blairo Maggi sediou uma reunião da Comissão, presidida pelos ministros Paulo de Tarso Vanucchi (Secretaria Especial dos Direitos Humanos) e Luis Marinho (Ministerio do Trabalho e Emprego), na presença de todos os integrantes da Conatrae, e apresentou-lhe propostas de ação contra a prática do trabalho escravo no seu Estado.
Não há como contornar: com 22% dos libertados desde 1995 (4200 trabalhadores), 31 proprietários com trânsito na lista suja do Ministério do Trabalho (um em cada cinco dos 159 atuais incluídos) e 82 denúncias colhidas desde 2002, o Mato Grosso ocupa o segundo lugar no campeonato brasileiro da escravidão moderna. Difícil minimizar tal situação: referido ao número de latifúndios onde os escravos costumam ser encontrados, temos uma denúncia a cada 25 propriedades (no universo das 2000 propriedades de mais de 5000 ha) ou a cada 100 (nas 8000 propriedades de mais de 2000 ha). Já em dezembro passado, a repercussão dada pela imprensa internacional a denúncias associando a soja matogrossense ao desastre ambiental e à prática do trabalho escravo havia levado o grupo Amaggi, propriedade da família Maggi, a assinar às pressas o Pacto Nacional pela Erradicacao do Trabalho Escravo, que envolve empresas nacionais e multinacionais contra a escravidão: percepção imediata de um "risco-Brasil" de novo tipo, que poderia amanhã, inclusive na OMC, ser levantado contra outros expoentes das exportações brasileiras.
Em função da gravidade do injustificável "incidente" de Nova Lacerda, o governador do agronegócio teve que recuar de sua conhecida posição negacionista ("nunca vi escravo no Mato Grosso") e dar sinais de que, sim, o Estado de Mato Grosso está agora disposto a enfrentar o problema. Depois de devidamente consultado o Fórum Estadual de Combate ao Trabalho Escravo, criado há dois anos e até então ignorado, o Gabinete de Gestão Institucional foi incumbido da missão de apresentar uma proposta que acabou juntando medidas (avaliadas oportunas pelos presentes), inspiradas entre outros do Plano nacional de erradicação e do Plano estadual do Piauí, nas áreas de diagnóstico, prevenção, fiscalização e repressão, incluindo claúsulas impeditivas de obtenção de crédito rural e incentivos fiscais aos adeptos da moderna Casa Grande. Dentro de 30 dias, as intenções apresentadas deverão ser convertidas em Plano, com orçamento e responsabilidades. Dentro de 60 dias, feitos os ajustes sugeridos pelos parceiros (Conatrae, Fórum Estadual), será lançado o Plano e deverão surgir as primeiras ações, as quais contarão com o monitoramento permanente do Fórum Estadual.
Cobrado de apoiar a votação da PEC 438 (que postula o confisco das terras dos escravistas), o governador Blairo Maggi afirmou que aprovaria tal texto desde que comprovada situação real de escravidão. E apresentou em seguida argumentos habituais da bancada ruralista culpando a imperfeição do conceito de escravidão moderna, a perseguição ao produtor rural "obrigado a se dobrar a leis pensadas para a área urbana" e a desigualdade de tratamento em relação ao trabalho escravo urbano… Na fala da Famato (federação patronal) ou seus prepostos, não faltou tentativa para relativizar a gravidade real da situação: afinal num universo de 130.000 propriedades, o joio seria irrelevante e o trigo (no caso, a soja), majoritariamente "limpo". Para valorizar o trigo, foi lançada a idéia, avaliada por muitos inócua, de criar um selo "que ateste que o produtor rural resguarda os direitos trabalhistas e ambientais": será que, no Mato Grosso, a inscrição na lista suja do governo federal não bastaria para estabelecer essa diferença? Mesmo com as restrições formuladas, a opinião dos integrantes do Fórum (movimentos sociais, DRT, Ministério público) bem como da Conatrae é que esse dia 28 de março de 2006 marca uma linha divisória.
Afinal, não era costume até hoje conseguir do Governador Blairo e da Secretária de Trabalho, Emprego e Cidadania (Terezinha, sua esposa) um debate aprofundado sobre os porões do agronegócio, na capital do celeiro do Brasil.