A diferença entre o joio e a soja no Mato Grosso

O governo de Blairo Maggi (MT) sediou uma reunião da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo e apresentou propostas de ação contra a prática do trabalho escravo no seu Estado. Não era costume até hoje conseguir dele um debate aprofundado sobre os porões do agronegócio, na capital do celeiro do Brasil
Xavier Plassat
 29/03/2006

Dia 08 de fevereiro, o município de Nova Lacerda (MT), foi palco de um tiroteio surrealista provocado pela polícia militar do Estado contra os integrantes do Grupo Móvel (policiais federais, fiscais do trabalho e procurador do trabalho), em missão de fiscalização na fazenda Sankara. Por milagre, ninguem saiu morto.

Cinquenta dias depois, por determinação da Conatrae (Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo), o Governo de Blairo Maggi sediou uma reunião da Comissão, presidida pelos ministros Paulo de Tarso Vanucchi (Secretaria Especial dos Direitos Humanos) e Luis Marinho (Ministerio do Trabalho e Emprego), na presença de todos os integrantes da Conatrae, e apresentou-lhe propostas de ação contra a prática do trabalho escravo no seu Estado.

Não há como contornar: com 22% dos libertados desde 1995 (4200 trabalhadores), 31 proprietários com trânsito na lista suja do Ministério do Trabalho (um em cada cinco dos 159 atuais incluídos) e 82 denúncias colhidas desde 2002, o Mato Grosso ocupa o segundo lugar no campeonato brasileiro da escravidão moderna. Difícil minimizar tal situação: referido ao número de latifúndios onde os escravos costumam ser encontrados, temos uma denúncia a cada 25 propriedades (no universo das 2000 propriedades de mais de 5000 ha) ou a cada 100 (nas 8000 propriedades de mais de 2000 ha). Já em dezembro passado, a repercussão dada pela imprensa internacional a denúncias associando a soja matogrossense ao desastre ambiental e à prática do trabalho escravo havia levado o grupo Amaggi, propriedade da família Maggi, a assinar às pressas o Pacto Nacional pela Erradicacao do Trabalho Escravo, que envolve empresas nacionais e multinacionais contra a escravidão: percepção imediata de um "risco-Brasil" de novo tipo, que poderia amanhã, inclusive na OMC, ser levantado contra outros expoentes das exportações brasileiras.

Em função da gravidade do injustificável "incidente" de Nova Lacerda, o governador do agronegócio teve que recuar de sua conhecida posição negacionista ("nunca vi escravo no Mato Grosso") e dar sinais de que, sim, o Estado de Mato Grosso está agora disposto a enfrentar o problema. Depois de devidamente consultado o Fórum Estadual de Combate ao Trabalho Escravo, criado há dois anos e até então ignorado, o Gabinete de Gestão Institucional foi incumbido da missão de apresentar uma proposta que acabou juntando medidas (avaliadas oportunas pelos presentes), inspiradas entre outros do Plano nacional de erradicação e do Plano estadual do Piauí, nas áreas de diagnóstico, prevenção, fiscalização e repressão, incluindo claúsulas impeditivas de obtenção de crédito rural e incentivos fiscais aos adeptos da moderna Casa Grande. Dentro de 30 dias, as intenções apresentadas deverão ser convertidas em Plano, com orçamento e responsabilidades. Dentro de 60 dias, feitos os ajustes sugeridos pelos parceiros (Conatrae, Fórum Estadual), será lançado o Plano e deverão surgir as primeiras ações, as quais contarão com o monitoramento permanente do Fórum Estadual.

Cobrado de apoiar a votação da PEC 438 (que postula o confisco das terras dos escravistas), o governador Blairo Maggi afirmou que aprovaria tal texto desde que comprovada situação real de escravidão. E apresentou em seguida argumentos habituais da bancada ruralista culpando a imperfeição do conceito de escravidão moderna, a perseguição ao produtor rural "obrigado a se dobrar a leis pensadas para a área urbana" e a desigualdade de tratamento em relação ao trabalho escravo urbano… Na fala da Famato (federação patronal) ou seus prepostos, não faltou tentativa para relativizar a gravidade real da situação: afinal num universo de 130.000 propriedades, o joio seria irrelevante e o trigo (no caso, a soja), majoritariamente "limpo". Para valorizar o trigo, foi lançada a idéia, avaliada por muitos inócua, de criar um selo "que ateste que o produtor rural resguarda os direitos trabalhistas e ambientais": será que, no Mato Grosso, a inscrição na lista suja do governo federal não bastaria para estabelecer essa diferença? Mesmo com as restrições formuladas, a opinião dos integrantes do Fórum (movimentos sociais, DRT, Ministério público) bem como da Conatrae é que esse dia 28 de março de 2006 marca uma linha divisória.

Afinal, não era costume até hoje conseguir do Governador Blairo e da Secretária de Trabalho, Emprego e Cidadania (Terezinha, sua esposa) um debate aprofundado sobre os porões do agronegócio, na capital do celeiro do Brasil.

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