Há muito tempo atrás, pousou um pássaro sobre uma rocha localizada no rio Sakuriu winã. Com seu bico, fez um buraco no local, criando uma fenda entre a superfície e o subterrâneo do mundo. E foi justamente por ali que brotaram, de dentro da terra, os primeiros descendentes do povo haliti. Uma imponente ponte de pedra natural, que liga as duas margens do rio, marca o local deste sagrado acontecimento.
É assim que começa a história desta etnia, segundo o seu próprio mito de criação. Com a chegada do homem branco, no entanto, o rio Sakuriu winã virou rio Ponte de Pedra, e integra hoje a cartografia do Estado do Mato Grosso. Os próprios halitis também mudaram de nome, rebatizados de parecis pelos bandeirantes que os escravizaram a partir do século XVIII.
No início do século XX, o homem branco entrou novamente no caminho do povo pareci. Desta vez através do Marechal Rondon, comandante de um grande projeto de integração nacional com a construção de linhas telegráficas pelo interior do Brasil. Diversos parecis foram incorporados à mão-de-obra do empreendimento, que atravessava os territórios tradicionais da etnia. E com a sua decadência, na década de 1930, várias famílias que lá trabalharam foram deslocadas pelo Estado para Cuiabá. Atualmente, centenas de indivíduos descendentes dos chamados "índios de Rondon" ainda vivem na cidade.
"Não viemos para a cidade porque queríamos, nós fomos empurrados para cá", conta Zita Enoré, 51 anos, aposentada. Seu avô trabalhou com Rondon e fez parte da primeira geração pareci da cidade. Passados mais de cinqüenta anos, ela conta que o preconceito enfrentado por eles ainda é grande. "A casa do meu pai virou até referência de trânsito, é a 'casa do índio'", comenta. "Nem mesmo nome ele tem para os outros." Zita diz que muitos dos índios que lá vivem andam de cabeça baixa pelas ruas da capital mato-grossense. "E como vários estão sem emprego, acabam se entregando à bebida, fato usado pelas pessoas para dizerem que índio é preguiçoso."
Um novo capítulo da história dos parecis na cidade começou no final da década de 1990, quando teve início a construção de uma central hidrelétrica no rio Ponte de Pedra. A comunidade pareci de Cuiabá, que desde a década anterior já lutava pela demarcação da região, mobilizou-se para embargar a obra que inundaria a região identificada com a origem da etnia. Em 2003, a Justiça Federal anulou a concessão da União para o empreendimento. Os parecis ainda aguardam a demarcação definitiva da área.
Enquanto isso, grande parte dos índios de Cuiabá fazem planos para irem viver no local. Apesar da falta de estrutura, três famílias já deixaram a cidade para morar na área, em habitações indígenas construídas com a ajuda de outros paresis que vivem nas aldeias. É apenas um dos aspectos do modo de vida tradicional da etnia que estão sendo retomados pelos índios cuiabanos, através de uma troca de informações entre aldeia e asfalto que contribui, para os dois lados, com a formação de novos valores sobre que significa atualmente ser indígena no Brasil.
Zita Enoré aguarda a homologação da área para mudar-se também. Mas já passa, sempre que pode, alguns dias na aldeia incipiente. Lá ela sempre dorme em rede. "Acho que já está no sangue", reflete. "Dizem que sou louca por querer sair da cidade e viver no meio do mato, sem eletricidade ou televisão. Mas a natureza substitui tudo isso, não é mesmo?"
Os índos paresis moradores de Cuiabá lutam para retomar território tradicional da etnia e sair da cidade (Foto:Maria Fátima Machado) |