O gasoduto que ligará Puerto Ordaz, na Venezuela, até a Argentina e o Uruguai, passando pelo Brasil, pode se transformar em um vetor de desmatamento da Amazônia caso siga o padrão de implantação de projetos na região. Com mais de 9 mil quilômetros de extensão e um custo de mais de 20 bilhões de dólares, o gasoduto está sendo alardeado como a grande obra de integração da América do Sul. Em tese, grande parte do Brasil se beneficiaria com a linha central do gasoduto ou com seus ramais – do Amapá e Roraima, passando pelo Amazonas, Pará, Tocantins, Maranhão, Ceará, Goiás, Minas Gerais e o Sudeste, seguindo pela região Sul até o Rio Grande.
Mas infelizmente o país ainda repercute um projeto de forma simplista, colocando em um dos pratos da balança as comunidades locais atingidas e, do outro, as pessoas que serão beneficiadas após a finalização da obra. Normalmente nossos planejadores verificam apenas se o segundo prato está mais pesado que o primeiro e tocam em frente, dando pouco valor ao que chamam de “danos colaterais”. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) pode dar um longo depoimento do que é estar no outro prato da balança, nadando no sentido inverso à marcha do “progresso”.
Não é de se estranhar, portanto, alguns depoimentos anacrônicos, para dizer o mínimo, dados por altas instâncias administrativas da Petrobras a respeito das dificuldades a serem vencidas pelo projeto. Nossos tecnocratas garantem que a floresta e os povos de lá não irão impedir o desenvolvimento sul-americano. O medo demonstrado é sempre a respeito da legislação ambiental brasileira, infelizmente uma das mais “severas” do mundo, da imagem que o país vai passar ao exterior se afetar a Amazônia e por aí vai.
Mas que tipo de integração é essa que nasce do preceito de que uma minoria pode sair prejudicada se for por um “bem maior”? Essa não é a mesma lógica de multinacionais que agem nos países da periferia, expulsando comunidades e poluindo ecossistemas para a implantação de seus projetos?
Os acontecimentos estão caminhando para a criação de um fato consumado, irreversível. Vale lembrar nessas horas que um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) deveria orientar a viabilidade social e ambiental de um projeto, e não apenas quais as contrapartidas que os executores deverão dar pela destruição que vão causar. Ou seja, estão dando o projeto como certo, apesar de não haver um estudo confiável sobre suas conseqüências. Se isso não comover, talvez o tamanho do passivo ambiental que a construção e o funcionamento de uma obra desse porte causaria seja suficiente para repensá-la antes de implantar os canteiros de obras.
Uma das propostas apresentadas prevê que o gasoduto, após cruzar o maciço das Guianas, siga paralelo à BR-174, que liga a Venezuela a Manaus, depois pela AM-010 até Itacoatiara (AM). De lá seguiria pela margem esquerda do Amazonas até Oriximiná (PA), atravessaria o rio e desceria pelo Pará em regiões, segundo o governo, já ocupadas. Esse projeto prevê o aproveitamento das obras da linha de transmissão de energia elétrica de Tucuruí até Manaus.
Diretores da Petrobras afirmam que o trajeto não atravessará mata fechada, mas ambientalistas questionam a afirmação. O roteiro não atravessaria parques e reservas florestais existentes, mas passaria por florestas, igarapés e rios com baixa ocupação. E incluiria reservas indígenas, como a Waimiri Atroari, entre os Estados do Amazonas e de Roraima.
Como temos subsídios apenas para desconfiar desse projeto e não para analisá-lo em profundidade, vale aqui uma comparação com outra obra, muito menor, mas que há anos é palco de uma verdadeira batalha na Amazônia ocidental.
Urucu
A Província Petrolífera do Rio Urucu, localizada no município de Coari, no coração do Amazonas, começou a ser explorada comercialmente em 1988, dois anos após o estabelecimento do primeiro poço. A produção média diária de petróleo de Urucu é de 56,5 mil barris e de gás natural, de 9,7 milhões de metros cúbicos. Isso faz do Amazonas, de acordo com dados da Petrobras, o segundo produtor terrestre de petróleo e o terceiro produtor nacional de gás natural do país. A produção de gás de cozinha daria para produzir 115 mil botijões de 13 kg por dia.
Hoje, o escoamento de gás e derivados do petróleo é feito por barcaças através do rio Solimões até a Refinaria de Manaus (Reman) e de lá para o Norte e Nordeste. A Petrobras, que implantou o gasoduto de 285 quilômetros que liga a Província Petrolífera do Rio Urucu a Coari, vai ligar esse município a Manaus por um gasoduto, para eliminar a dependência do transporte fluvial. Além desse, quer construir outro até Porto Velho. O objetivo é fornecer gás natural a termelétricas para abastecer Rondônia e Acre.
O processo ambiental do gasoduto Urucu-Porto Velho foi duramente criticado durante as audiências públicas (realizadas em cidades que serão afetadas pelo projeto) por pesquisadores, ambientalistas e organizações da sociedade civil. Uma das reclamações é que o Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) não apresenta alternativas à implantação do gasoduto, necessárias a uma obra dessa magnitude. É novamente a política do fato consumado.
Ao todo, o gasoduto terá 522,2 quilômetros, abrindo uma clareira de 20 metros de largura que percorrerá os municípios de Coari, Tapauá e Canutama, no Amazonas, até atingir Porto Velho, e atravessando os rios Madeira, Açuã, Purus, Coari e Itanhauã, além do igarapé Trufari e do furo Curá-Curá. Em quase todo o percurso, ficará enterrado a uma profundidade mínima de um metro.
Outras críticas recaem sobre o risco de contaminação da água e do solo, a alteração da vida das populações indígenas e ribeirinhas, a exploração desenfreada e o desmatamento que o projeto pode trazer. O relatório não afasta a possibilidade do aumento das doenças sexualmente transmissíveis, da prostituição e do índice de violência – que ele próprio considera hoje “bastante baixo na região” – além da transformação de moléstias endêmicas, como a malária e a leishmaniose, em epidemias.
As recomendações para reduzir os impactos nem sempre se mostram suficientes. Uma delas é a contratação de trabalhadores apenas na sede dos municípios, para evitar que se utilize mão-de-obra dos ribeirinhos, causando êxodo. Mas, caso se repita o que aconteceu em Coari, um deslocamento de pessoas em busca de emprego no centro urbano ocorrerá de qualquer forma.
O professor Aziz Ab’S&
aacute;ber fez um alerta para as conseqüências do projeto: “Com uma extensão dessa e com uma estrada de apoio, abre-se um caminho fantástico para os especuladores. Daí fazem ramais, sub-ramais, loteiam, vendem, começam a extração de madeira”. Um exemplo disso são as margens das rodovias BR-364, em Rondônia, a PA-150 (no Pará) e a Transamazônica. Vistas de uma foto por satélite, parecem espinhas de peixe, cortadas por centenas de estradas e polvilhadas de fazendas.
Em 2003, questionada se o Ministério do Meio Ambiente iria solicitar uma outra alternativa ao projeto do gasoduto, que herdara do governo anterior, a ministra Marina Silva foi evasiva. “O assunto está sendo rediscutido, envolvendo os vários órgãos do governo, inclusive o Ministério de Minas e Energia – com o qual temos uma agenda muito boa. Uma discussão séria, bastante cuidadosa, considerando todos os aspectos. Busca-se o que é mais adequado do ponto de vista ambiental, social e econômico”.
É claro que a realidade de Urucu-Porto Velho será diferente daquela a ser enfrentada pelo gasoduto Venezuela-Brasil-Argentina. Como ainda estamos na fase de intenções, há uma chance dessa vez que os governantes (e as empresas petrolíferas) não olhem apenas para os números, mas ponderem os direitos das comunidades locais e do meio ambiente. Se necessário for, que este gasoduto mude para um traçado de construção mais caro ou simplesmente não chegue a existir. Dessa forma, poderemos dizer que há uma integração verdadeira na América do Sul e não apenas a velha relação de exploração entre a elite e o povo.
Há alguns anos, em carta enviada ao Ibama, um coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Alto Madeira desabafou sobre o batalha do gasoduto de Urucu: “Nós, povos indígenas, nos grandes projetos (rodovias, hidrelétricas, linhão), sempre fomos considerados empecilhos ao desenvolvimento. O discurso de que somos poucos justifica qualquer empreendimento. Mesmo que atinja diretamente em torno de 4 mil pessoas, distribuídas em 57 aldeias, com dez etnias diferentes, além dos indígenas de pouco ou nenhum contato […] para o governo federal, os Estados e a Petrobras, o projeto vale a pena porque trará benefícios para milhões de ‘brancos’ que moram distantes de nossas terras e que não se importam com nosso sofrimento…”