Artigo – Vive la France?!

Em discurso surpreendente, o presidente francês Jacques Chirac defendeu a punição de empresas que “conscientemente” utilizaram trabalho forçado. Nesse ponto, a experiência brasileira ensina muito: que empresário vai afirmar que tratou um homem como um animal de forma consciente?
Por Leonardo Sakamoto
 02/03/2006

“Cabe a nós, enfim, vigiar para que as empresas ocidentais, quando investirem nos países pobres ou emergentes, respeitem os princípios fundamentais do direito do trabalho tais quais constam no direito internacional. As empresas que, conscientemente, tenham recorrido ao trabalho forçado devem poder ser processadas e condenadas pelos tribunais nacionais, mesmo em relação a fatos ocorridos no exterior.”

O trecho acima não saiu da boca de nenhum “funcionário comunista” do governo federal brasileiro ou de algum “sindicalista radical”, mas do presidente francês Jacques Chirac, que pelo seu currículo, definitivamente não pode ser considerado um político de esquerda. O discurso (proferido em 30 de janeiro, durante solenidade que fixou o dia 10 de maio para a comemoração anual da abolição da escravatura) exortou o combate à escravidão contemporânea e ao tráfico de seres humanos – que ele considerou como manchas indeléveis da humanidade – reconhecendo o papel da sua França e da Europa na privação da liberdade de milhões de pessoas.

“Na história, a escravidão é uma ferida. Uma tragédia que machucou a todos os continentes. Uma abominação perpetrada, durante séculos a fio, pelos europeus, por meio de um inqualificável comércio entre a África, as Américas e as ilhas do Oceano Índico (…) Tantos homens e tantas mulheres vendidos igual gado e explorados em condições subumanas! (…) A maioria das potências européias tiveram parte neste tráfico. Por vários séculos consideraram seres humanos como mercadorias.”

O discurso, é claro, tem que ser entendido em um contexto em que a população imigrante – tratada como cidadã de segunda classe na república francesa – explodiu em protestos por todo o país após a morte de dois rapazes moradores de um subúrbio em outubro do ano passado. As cenas de milhares de carros sendo queimados correram as TVs de todo o mundo, acompanhadas de declarações infelizes de alguns membros do governo. No meio do embate pela sucessão de Chirac, Nicolas Sarkozy, ministro do interior, chamou os manifestantes de “escória”, enquanto o primeiro ministro Dominique de Villepin adotou um comportamento mais apaziguador.

Em sua fala, Chirac afirma que a escravidão histórica alimentou o racismo. “Foi quando se tornou preciso justificar o injustificável que passou-se a elaborar teorias racistas (…) O racismo é uma das razões pelas quais a escravidão continua sendo até hoje uma chaga viva para parte de nossos compatriotas.” Por isso, diz que é necessário reafirmar a dignidade das vítimas e dos descendentes do tráfico na França. Não faz nenhuma referência direta aos fatos recentes, mas há muita coisa nas entrelinhas.

O fato é que o tráfico e a escravização de pessoas não é uma mancha do passado, mas sim do presente francês em território europeu e ultramarino. Milhares de imigrantes africanos buscam anualmente melhores condições de vida não só na terra de Chirac como em toda a Europa, fugindo da fome e da desigualdade em seus países de origem, situação que as metrópoles ajudaram a criar. Há, por exemplo, as adolescentes utilizadas como escravas domésticas em lares franceses. Não podem deixar seu local de serviço, sob o risco de serem denunciadas à imigração, muitas ganham apenas a comida e a hospedagem e são vítimas de maus tratos. Isso sem contar a escravidão por dívida na Guiana Francesa. Políticas para alterar essa condição que fiquem restritas ao país serão como enxugar gelo, pois o problema envolve mudanças internacionais. A solução também não passa por políticas de restrição à imigração e de penalização dos imigrantes, o que só aumenta o descontentamento dessa população. Mas sim pelo estabelecimento de uma relação justa entre países ricos e pobres.

Chirac afirmou em seu discurso que: “A fim de lutar contra a sobrevivência da escravidão, mas tambem contra suas resurgências no contexto da competição econômica mundial, é preciso aprofundar a cooperação entre países do Norte e os do Sul. O crescimento deve ser um acelerador do progresso social. É preciso ainda aproximar as organizações internacionais competentes, em particular a Organização Internacional do Trabalho e Organização Mundial do Comércio. O direito do comércio internacional não poderia ignorar os princípios fundamentais dos direitos humanos”.

Tanto essa proposta quanto a da punição às empresas que se utilizam de trabalho escravo são excelentes, mas não novidades. Elas são defendidas há décadas por entidades da sociedade civil em todo o mundo, que têm encarado quase sozinhas a força de multinacionais e do mercado internacional de commodities, que lucram com a exploração do ser humano. E de um crescimento econômico, baseado na exploração das economias mais pobres e que sempre privilegiou os países ricos.

O caso do Brasil é exemplar. Durante a ditadura militar, empresas estrangeiras receberam subsídios do governo federal para se instalarem na região de fronteira agrícola amazônica. Algumas utilizaram o trabalho escravo para a derrubada de mata, implantação e limpeza de pastos, entre outros serviços. Tanto que uma das primeiras denúncias a ganharem repercussão sobre esse problema foi a da fazenda Volkswagen, no Sul do Pará.

A superexploração de mão-de-obra não-especializada e o trabalho escravo são adotados por empresas e fazendas para diminuir custos de produção, aumentando assim a competitividade – sem alterar seus lucros. Vale ressaltar que essa minoria de empresários criminosos não é suficiente para gerar uma diminuição completa do valor de uma mercadoria produzida em um país para a exportação – ao contrário do que afirmou recentemente um estudo inglês. Porém, os criminosos que se utilizam disso conseguem, por vezes, repassar parte desse lucro ilegal a varejistas e exportadores.

No início de 2005, pelo menos 200 empresas nacionais e internacionais que atuavam no país tinham entre seus fornecedores diretos e indiretos fazendas que foram flagradas com mão-de-obra escrava. É leviano afirmar que todas se beneficiavam com as conseqüências desse tipo de crime, mas o fato de boa parte do PIB nacional estar lá relacionado é preocupante.

Há também empresas flagradas com trabalho escravo com participação estrangeira no Brasil. Chirac sugere a punição de empresas que “conscientemente” utilizaram trabalho forçado. Contudo, nenhum empresário vai afirmar que tratou um homem como um animal de forma consciente. Prova disso são os discursos dos proprietários de fazendas escravocratas quando fiscalizados pelo governo fede
ral. Atestam ignorância, e jogam a responsabilidade em gerentes e “gatos”. Hipocritamente, a “consciência” é tratada de forma passiva.

Ao mesmo tempo, há outros fatores que deve ser considerados para que governos controlem suas multinacionais. Juridicamente, o cliente de uma fazenda com trabalho escravo não é responsável pelos crimes cometidos pelos proprietários ou seus prepostos, mesmo que lucre com isso. Por exemplo, diretores de empresas distribuidoras de combustíveis afirmaram que a Destilaria Gameleira, localizada em Confresa (MT), oferecia álcool a um preço baixo e competitivo. A Gameleira foi alvo de quatro fiscalizações do grupo móvel de fiscalização com libertação de trabalhadores e é palco da maior libertação de trabalhadores (1003) ocorrida no país. (Hoje, as grandes distribuidoram deixaram de comprar da Gameleira.)

Deve-se criar um mecanismo que verifique não apenas o comportamento direto da empresa para com os seus contratados, mas também de como foi obtido o seu lucro que será enviado da “colônia” à “metrópole”. Nesse contexto, é importante uma maior integração entre a Organização Internacional do Trabalho e Organização Mundial do Comércio. Seria ótimo se países e empresas pudessem ser julgados pela forma como tratam os seus trabalhadores e não apenas pela forma como fazem comércio.

No Brasil, a França ganhou dois pontos importantes com a adesão das redes de supermercados Pão de Açúcar e Carrefour – ambos com capital acionário francês – ao combate à essa prática. Ambas as empresas eram clientes de frigoríficos que compravam carne de fazendas da “lista suja” do trabalho escravo do governo federal. Ao terem conhecimento disso, anunciaram a seus fornecedores que não aceitariam esse tipo de comportamento e cortaram relações comerciais com aqueles que não mudaram de atitude.

Ao mesmo tempo, empresas como a ADM, Bunge, a Cargill, que comercializavam soja de fazendas também da “lista suja”, tomaram conhecimento do fato, mas não fizeram questão de aderir ao Pacto Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, promovido pelo Instituto Ethos e a OIT.

Garantir condições dignas de vida – o que passa pela erradicação do trabalho escravo, infantil, degradante – pode diminuir o lucro de empresas que atuam diretamente nos locais com incidência desses crimes. Pois, algumas delas, “conscientemente” ou “inconscientemente”, contribuem para esse sistema. É uma sugestão interessante o Poder Judiciário dos países onde ficam as matrizes dessas empresas julgar ações contra as que se benecificam de trabalho forçado. Haja visto que uma incômoda parte da Justiça dos países da periferia, assim como de seus poderes executivos e legislativos, ainda mantém uma relação de vassalagem com o capital internacional.

E, é claro, a melhoria de vida das populações dessa periferia depende também do fim da exploração pelos países do Centro. É fácil se orgulhar de uma economia crescente e de um estado de bem-estar social enquanto parte desse cenário é mantida por um vazamento de riquezas dos países mais pobres. As barreiras comerciais impostas a produtos agrícolas, os juros escorchantes cobrados por dívidas externas, a desigualdade do comércio internacional contribuem para que migrações continuem acontecendo. Apesar da escravidão ter sido extinta oficialmente em 1848, na França, e em 1888, no Brasil, a força de trabalho continua sendo explorada e maltratada quando toma o caminho para o norte, seja na África, seja no Brasil.

As nações periférias também têm uma grande responsabilidade, devendo combater aqueles que ganham dinheiro com a exploração do trabalhador. Setores do governo vêm fazendo sua parte, mas o silêncio ainda constrange. Em dezembro do ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva esteve presente no lançamento da nova fase da campanha nacional de combate ao trabalho escravo. Entrou mudo e saiu calado. Apesar das entidades governamentais e da sociedade civil presentes esperarem uma manifestação de apoio do presidente a uma série de assuntos relacionados ao tema, como o projeto de lei que prevê o confisco de terras em que escravos forem encontrados, ele preferiu não se pronunciar. É triste constatar que o discurso que Lula deveria ter feito ficou a cargo de Chirac.

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