Uma situação corriqueira observada por equipes de fiscalização e combate ao trabalho escravo em ações de libertação é a presença de cidadãos maranhenses entre as vítimas. Conforme dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho do governo federal, o Maranhão é o principal “fornecedor” de mão-de-obra escrava.
Emigrantes do Estado menor índice de desenvolvimento humano (IDH) do Brasil, eles buscam em outras regiões, como fronteiras agrícolas em Goiás e Pará, oportunidades de emprego, ainda que precárias.
Compreender as origens dessa situação de vulnerabilidade que leva os maranhenses a se tornarem presas mais fáceis para fazendeiros e gatos é um dos objetivos de uma pesquisa que o professor Marcelo Sampaio Carneiro, da Universidade Federal do Maranhão, com apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), realiza na “região dos cocais”, onde estão os vales dos rios Itapecurú e Mearim.
De acordo com relato do pesquisador no Seminário Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural, que ocorreu durante a Conferência da FAO, em Porto Alegre, essa região é um dos principais locais de origem de trabalhadores resgatados em situação de trabalho escravo no país. Dados da CPT indicam que dois municípios, Codó e Timbiras, estão entre as dez principais origens de trabalhadores resgatados em situação análoga à da escravidão no país.
Com o trabalho de pesquisa, Carneiro e sua equipe foram a campo para reconhecer quem são esses indivíduos que têm necessidade de migrar. Das 114 famílias entrevistadas, 71 (63%) disseram possuir algum membro trabalhando fora do município. Quanto à faixa etária, a situação civil e o sexo dos migrantes, 60,78% dos trabalhadores possuem entre 20-29 anos, 54,36% são casados (ou estão juntos) e 83,65% são do sexo masculino.
“O elemento central para a compreensão da disponibilidade desses trabalhadores é a situação vivenciada por suas famílias no local de origem, marcada pelo não-acesso aos recursos produtivos de que dispõe o município e pela carência de equipamentos públicos coletivos nas áreas da saúde e da educação”, explica ele. Timbiras, por exemplo, ocupa a posição 5421 do ranking da exclusão social dos municípios brasileiros – portanto, entre os cem de menor IDH.
É lá, na periferia urbana, que se encontra o principal espaço de exploração. Carneiro estima que a maior parte das famílias que residem há mais de dez anos nos bairros periféricos foi expulsa do campo no período em que ocorre a chamada “modernização conservadora” da agricultura no Maranhão, entre as décadas de 1970-80. Essa constatação expõe os limites de tantas interpretações que consideram o agronegócio como indício de progresso e melhor plataforma para o desenvolvimento rural do país.
Houve o aumento exponencial do número de empresas agropecuárias incentivadas (via recursos da Sudene, da Sudam e de fundos setoriais como o Fiset, que alavancou projetos de reflorestamento na região) e a redução, através da expropriação total ou da queda da área de terra disponível, da produção camponesa. Isso se comprova pelos dados de estabelecimentos de até 50 hectares, que representam a esmagadora maioria dos estabelecimentos agropecuários (cerca de 92%), mas ocupam apenas 6,80% da área total.
Diante desse cenário, Carneiro defende que a reforma agrária é fundamental para a luta contra o trabalho escravo. Mas não com os pressupostos com que está sendo realizada hoje no Maranhão. Segundo ele, um dos dados que mais se sobressai quando se analisam os assentamentos é a redução progressiva da área média dos imóveis desapropriados para fins de reforma agrária.
“Ao longo dos últimos vinte anos de política de reforma agrária, verificamos que a área média dos projetos de assentamento decresce de forma significativa a cada qüinqüênio, tendo passado de 10.252 hectares entre 1985/89 para 3.404,6 hectares no período de 1995/1999”, explica. Isso, segundo ele, tem dificultado a reprodução da agricultura familiar, na medida em que filhos e parentes de assentados tem de migrar quando a relação entre tamanho do lote e número de pessoas atinge níveis desfavoráveis.
Cadeia produtivo e compromisso empresarial
O Seminário Internacional pôs em discussão diversas alternativas que têm sido utilizadas no Brasil para combater o trabalho escravo. Além do compromisso dos órgãos de fiscalização do governo e da mobilização da sociedade civil, foi uma avaliação comum de que é fundamental o engajamento de setores empresariais.
No ano passado, a assinatura do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo marcou um momento importante desse compromisso. Grandes empresas brasileiras, de setores diversos como alimentação, têxtil e combustíveis, se comprometeram, entre outras coisas, a cancelar contratos de compra de fornecedores flagrados praticando o crime.
O acordo, costurado pelo governo federal e o Instituto Ethos, só foi possível graças ao trabalho da ONG Repórter Brasil, que, com apoio da Organização Internacional do Trabalho, realizou uma pesquisa sobre a cadeira produtiva do trabalho escravo, para descobrir quais empresas e conglomerados se beneficiavam da prática, desde a produção inicial até o varejo.
A pesquisa usou como base a chamada “lista suja”, que reúne empregadores condenados por uso de trabalho escravo. A maioria são empresários rurais do Norte e Centro-oeste brasileiros. “Usamos as duas primeiras listas sujas divulgadas, eram 98 fazendas, das quais 80% eram de pecuária e 10% de soja e algodão”, explica Leonardo Sakamoto, coordenador da organização.
Essa característica desperta, mais uma vez, a atenção para o modelo agrícola que está sendo priorizado nas novas fronteiras agrícolas do país. “O modelo de desenvolvimento da Amazônia brasileira é extremamente predatório, visando a maximização do lucro através do não-cumprimento das legislações trabalhista e ambiental. Isso indica que quem escraviza são agricultores que têm alta tecnologia e pautam seu negócio a partir da Bolsa de Chicago”, completa Sakamoto, com o alerta de que, se por um lado o agronegócio possibilita o surgimento do trabalho escravo, por outro a maior parte dele não está envolvida com a prática.
Após o mapeamento da cadeia, a Repórter Brasil descobriu que parte da carne produzida com trabalho escravo chegava a grandes frigoríficos brasileiros, que em seguida vendiam o produto para supermercados do porte de Wall Mart, Bom Preço e Pão de Açúcar. Alertados do problema, essas r
edes, assim como grupos da cadeira do algodão e do álcool, firmaram o pacto e decidiram cancelar contratos de compra com fornecedores que mantivessem relações com produtores citados na lista suja.
A tática do boicote funcionou, mas não foi seguida por todas as empresas. Duas das maiores agroexportadoras do Brasil, as multinacionais Cargill e Bunge, que operam na cadeia da soja, não cortaram relações com fornecedores envolvidos com trabalho escravo. Para enfrentar esse tipo de situação, a Repórter Brasil apresentou uma proposta durante o seminário: taxar lucros e dividendos de empresas que, de alguma maneira, se beneficiam do trabalho escravo no país.
Outra experiência importante de união entre o setor empresarial e a sociedade civil para combater o trabalho escravo ocorreu no Maranhão, quando sete siderúrgicas se uniram para criar uma associação independente capaz de fiscalizar e orientar produtores de carvão vegetal, que alimenta os fornos de produção de ferro gusa.
Em agosto de 2004 nasceu o Instituto Carvão Cidadão, que trabalha junto a produtores de carvão para que eles cumpram a legislação trabalhista e não utilizem trabalho escravo. A iniciativa está ajudando a reduzir a incidência de trabalho escravo na cadeira da siderurgia do pólo Siderúrgico de Carajás, entre Maranhão e Pará.
Marcel Gomes é membro da ONG Repórter Brasil
Da Agência Carta Maior