Reforma agrária – Poder Judiciário desrespeita princípio da função social da propriedade

Marco Legal da Reforma Agrária foi tema de debate na Conferência da FAO. Para Procurador da República, no Brasil, só há uma coisa mais sagrada do que a propriedade: sua proteção jurídica. Esse caráter sagrado, segundo Domingos Sávio da Silveira, aparece nas decisões do Judiciário que ignoram a função social da propriedade
Por Marco Aurélio Weissheimer
 08/03/2006

Desde 1919, a partir da Constituição de Weimar, na Alemanha, ficou instituída no mundo moderno a exigência de que uma propriedade deve cumprir uma função social. A partir daí, a função social passou a ser constitutiva do conceito de propriedade e não um apêndice deste. No entanto, o Brasil chega ao ano de 2006 sem respeitar essa exigência. Pior ainda: esse desrespeito conta com a participação do próprio Poder Judiciário que, em tese, deveria zelar pelo seu cumprimento. Reside aí um dos principais obstáculos para o avanço da Reforma Agrária no país. Essa foi uma das principais conclusões do debate sobre Processos Legais na Ação da Reforma Agrária, promovido nesta quarta-feira (8), pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), na II Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural.

Para Maria Cecília de Almeida, Procuradora Regional do Incra em São Paulo, a assimilação do conceito de propriedade ao de produtividade, dominante no Judiciário brasileiro, é uma interpretação pífia. “No que diz respeito à propriedade rural, não basta apenas a terra ser produtiva. É preciso levar em conta todos os fatores que constituem a função social da propriedade e não apenas um”, observou. A Constituição brasileira define no artigo 186, incisos I a IV, que “a função social da propriedade é constituída por um elemento econômico (aproveitamento racional e adequado), um elemento ambiental (utilização adequada dos recursos naturais e preservação do meio ambiente) e um elemento social (observância das normas que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores)”. Assim, só cumpre a função social a propriedade rural que atenda simultaneamente aos três elementos.

Não faltam obstáculos
A procuradora do Incra apontou outros dois fatores que obstaculizam o processo de Reforma Agrária no país. O primeiro deles é o dispositivo legal que exige que o Incra avise previamente o proprietário em caso de vistoria de uma propriedade rural. “Como é que alguém, tendo poder de polícia, tem que avisar antes quando vai fazer uma visita de inspeção? Ele informa o proprietário por que motivo mesmo? A resposta é: para dar tempo de ele tentar impeder a vistoria. Pois bem, o Incra está submetido a essa regra, o que não ocorre, por exemplo, com a vigilância sanitária, que não precisa avisar um bar ou restaurante que vai fazer uma visita de fiscalização”, criticou Maria Cecília de Almeida.

O segundo fator é o crescente desprestígio da disciplina de Direito Agrário nos cursos de Direito. A procuradora contou uma rápida história para ilustrar o que vem ocorrendo no Brasil. “Há alguns anos, um concurso público iria ser realizado sem a inclusão da disciplina de Direito Agrário. Graças a um colega, a situação foi revertida. Detalhe: o concurso era do Incra”.

Esse ponto foi reforçado por Darcy Walmor Zibetti, da Associação Brasileira de Direito Agrário. “Reforma Agrária não se realiza sem a existência do Direito Agrário. No Brasil, temos um Direito Agrário compatível com a realização de uma Reforma Agrária. O que é preciso é uma decisão política de Estado e de Governo”, defendeu. O presidente da Sociedade Nacional de Agricultura, Octavio Mello de Alvarenga, reforçou: “Nunca haverá justiça agrária enquanto quem for fiscalizado tiver que ser avisado previamente e a disciplina de Direito Agrário for desprestigiada”.

Comentando a evolução da legislação agrária no Brasil, Alvarenga perguntou: “Por que o Brasil teve o Estatuto da Terra, criado em 1964?”. “Em 1962, os Estados Unidos levaram uma surra em Cuba, na tentativa frustrada de invasão da Baía dos Porcos. Após esse episódio, em uma reunião realizada no Uruguai, determinaram que os países da América Latina deveriam fazer uma Reforma Agrária capitalista, antes que ela fosse feita de outro modo. Mas nem isso chegou a se concretizar.

Desapropriação com valor de mercado?
O Procurador Regional do Incra do Rio de Janeiro, Helio Roberto Novoa da Costa, declarou, em tom provocativo: “É lamentável que essa conferência esteja sendo realizada em Porto Alegre, pois isso significa que a Reforma Agrária ainda não foi feita”. No Brasil, segundo ele, já existe uma legislação suficiente para enfrentar o problema fundiário, com algumas mudanças em pontos como aqueles apontados por Maria Cecília de Almeida (a obrigatoriedade do Incra avisar previamente o proprietário em caso de uma vistoria). Ele também apontou os critérios para a fixação de valores em caso de desapropriação. “Não existe essa coisa de o Estado ter que pagar a terra por valores de mercado. Que sentido há em falar em desapropriação ou sanção se o proprietário recebe por valores do mercado?"

Mas os problemas não param por aí. “Outra coisa que precisa ser mudada é a proibição de vistoriar imóveis que tenham sido ocupados. Uma outra ainda: a lentidão do Poder Judiciário, com a eternização de processos que acabam se arrastando por anos. É um absurdo eu propor uma ação que o meu bisneto vai ver concluída. Além disso, a gente pega um imóvel que não vale nada e acaba pagando uma fortuna ao final do processo de desapropriação”, protestou.

Luciano de Souza Godoy, Desembargador Substituto do Tribunal Regional Federal da 3a. Região concordou que a lentidão do Poder Judiciário é um problema, mas apontou a deficiência de atuação do poder estatal como um elemento adicional para a demora no julgamento de processos. Segundo ele, a falta de recursos humanos e materiais faz com que muitos processos sejam encaminhadas com falhas e ausência de documentos importantes. Ele também destacou a falta de formação jurídica em Direito Agrário de muitos juízes, procuradores e integrantes do Ministério Público.

“Parece que o Direito Agrário vem encolhendo. Se hoje a disciplina de Direito Agrário fosse exigida como obrigatória nos cursos de Direito, teríamos falta de professores”. Para tentar reverter esse quadro, Luciano de Souza Godoy propôs a criação de varas especializadas em Direito Agrário, já que, na sua avaliação, não há ambiente político para a criação de uma Justiça Agrária.

O caráter sagrado da propriedade
O ambiente político que cerca a questão agrária no Brasil foi mencionado diversas vezes e com diferentes inflexões no debate. E o Poder Judiciário não parece estar livre des
ta “contaminação”. Para Domingos Savio da Silveira, Procurador da República junto ao Tribunal Regional Federal da 4a. região, o que marca o dia-a-dia desse debate, também do ponto de vista jurídico, é uma luta com palavras, uma luta retórica. “Muitas vezes, disfarçamos essa luta com o uso de conceitos supostamente universais”. Uma das palavras centrais dessa luta, segundo ele, é “propriedade”.

“No Brasil, só há uma coisa mais sagrada do que a propriedade: a proteção jurídica que damos à propriedade. O mais triste é que, apesar de estarmos há quase cem anos da Constituição de Weimar e da Constituição mexicana, falar de função social da propriedade hoje ainda é visto como coisa de comunista”. Esse caráter sagrado da propriedade aparece na maioria das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que, segundo Silveira, “com raras exceções, ignora o princípio da função social da propriedade”.

A Constituição de 1988, acrescentou o Procurador, dirigiu à propriedade uma única palavra, “função social”, mas ela é tratada como se fosse um enfeite, um adereço de menor importância. Para Domingos Savio da Silveira, essa proteção sacrossanta da propriedade se expressa, entre outras coisas, na exigência de que os reajustes dos Títulos da Dívida Agrária (TDAs) mantenham o valor econômico de mercado, posição referendada pelo STF. Mas quando o mesmo STF julgou a mesma exigência para o reajuste de pensões, sua decisão foi exatamente a oposta, lembrou o procurador.

Ele resumiu o marco legal do debate sobre a Reforma Agrária no Brasil do seguinte modo: “Temos uma Constituição generosa em seus princípios gerais, uma legislação agrária avançada e uma interpretação anacrônica sobre o direito de propriedade”.

A crítica mais aguda partiu de Fernanda Maria da Costa Vieira, advogada do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e da Rede Nacional de Advogados Populares. Ela defendeu uma reforma profunda no Poder Judiciário. “Essa ordem jurídica que está aí, com sua pretensão de neutralidade, não nos interessa. Os processos de desapropriação são uma aberração, pois garantem o valor da terra para o proprietário que não usa a terra.”

Ela também criticou a criminalização dos movimentos sociais, lembrando que, no período entre 1989 e 2002, 6.330 trabalhadores rurais foram presos por envolvimento em ações de ocupação de terra. As ocupações, acrescentou, viraram um motivo para o Judiciário enquadrar trabalhadores rurais por formação de quadrilha. “O Judiciário hoje é um grande advogado do latifúndio”, resumiu. A saída, para ela, é trabalhar pela democratização do Poder Judiciário e pela construção da figura do “juiz cidadão”, comprometido com a construção de justiça, o que passaria, entre outras coisas, pela mudança de currículos e de cultura dos cursos de Direito.

Pelo que se viu no debate promovido pelo Incra, essa proposta tem um longo e árduo caminho a percorrer. Resta saber se uma parcela representativa do Poder Judiciário está disposta a levar essa discussão adiante.

Da Agência Carta Maior

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