Defensores do livre-comércio a todo custo, representantes do setor do agronegócio batem as portas do governo federal, mais uma vez, na hora da crise. Nos próximos dias, o Palácio do Planalto deve anunciar medidas de renegociação de dívidas e medidas de apoio à comercialização da última safra (2005/2006), estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 122,6 milhões de toneladas.
De pronto, o setor agrícola exportador – que encontra no ministro Roberto Rodrigues (Agricultura, Pecuária e Abastecimento) o seu principal porta-voz – pede a suspensão por 120 dias de todos os vencimentos dos financiamentos e dívidas rurais. Como proposta propriamente dita, a Confederação Nacional de Agricultura (CNA) solicita ações governamentais em duas frentes.
A primeira delas diz respeito à rolagem das dívidas para custeio (gastos correntes) das duas últimas safras vencidas e não pagas, dos empréstimos oficiais para operações de investimentos (novos bens) durante este mesmo período e de recebíveis emitidos pelos produtores rurais e suas cooperativas junto a instituições financeiras e aos fornecedores/fabricantes privados de insumos, máquinas e implementos, medidas essas mais diretamente relacionadas com a crise atual do setor, para incluir dívidas antigas já renegociadas durante o governo passado – mas ainda pendentes – nas formas da Securitização e do Programa Especial de Saneamento de Ativos (Pesa). A CNA propõe as seguintes condições de rolagem para esse somatório (próximo de R$ 13 bilhões segundo projeções – contestadas por outros técnicos da área – da confederação): pagamento em 25 parcelas anuais, iguais e sucessivas, a partir de outubro de 2007, com encargos financeiros prefixados de 3% ao ano, 1% a menos que os juros (4%/ano) cobrados no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).
Em complemento à questão das dívidas, a entidade que representa os grandes produtores pede mais recursos no Orçamento Geral da União (OGU), inadvertidamente ainda não aprovado pelo Congresso Nacional, dos recursos destinados para o cumprimento da Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM). Na safra passada, os recursos orçamentários empregados para a garantia e sustentação de preços com a PGPM foram da ordem de R$ 1,2 bilhão. Para 2006, o orçamento é de apenas R$ 650 milhões. A CNA pede, portanto, crédito suplementar de R$ 2,2 bilhões, para que o montante total destinado às operações da PGPM atinja R$ 2,8 bilhões. Esses recursos, conforme coloca a confederação, devem garantir a formação de 7,8 milhões de toneladas de estoques e a realização de 13,8 milhões de toneladas de contratos de opções de produtos agrícolas.
Até aqui, o governo tem demonstrado intenção de rolar parte das dívidas contraídas a partir de 2005 e de destinar mais recursos para a compra de produtos agrícolas, mas parece não estar disposto a rolar os “esqueletos” da Securitização e do Pesa, que dependem necessariamente da edição de uma nova medida provisória (MP). Em eventos Brasil afora, o ministro da Agricultura tem prometido inclusive o que vem sendo chamado de “MP do Bem Agrícola”, que incluiria também isenções tributárias para o setor agrícola, as quais dependem da concordância da equipe econômica. Na prática, porém, a tal “MP do Bem Agrícola” tende a ficar para depois.
O cenário das dívidas do setor agrário, no entanto, se mostra bem mais complexo do que parece. Matéria do jornal “Valor Econômico” publicada com destaque nesta terça-feira (4) sustenta que o Tesouro Nacional já assumiu prejuízo de R$ 6,5 bilhões por parcela e encargos de dívidas atrasadas, originárias sobretudo da atividade rural, dos fundos constitucionais do Norte (FNO), Nordeste (FNE) e Centro-Oeste (FCO).
Além disso, o imbróglio específico sobre as dívidas dos produtores do Nordeste permanece. O Poder Executivo vetou o projeto de lei acerca da temática, aprovado nas duas Casas do Congresso Nacional, e publicou, em substituição, uma MP no dia 7 de março. Assinada pelo presidente da República em exercício, José Alencar Gomes da Silva, a medida restringe o benefício da renegociação das dívidas rurais apenas para mini, pequenos e médios produtores, cooperativas e associações, que tenham financiamentos concedidos até 31 de dezembro de 1998, com recursos do FNE, no valor de até R$ 50 mil. A matéria ainda está sem relator, mas já possui cerca de 100 emendas e deve obstruir a pauta nas próximas semanas.
Tramita também na Câmara Federal proposta (PL 5507/2005) do deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO), que prevê a repactuação e o alongamento amplo, geral e irrestrito das dívidas agrárias, no sentido dos pedidos da CNA. Os produtores agrícolas, no entendimento da confederação, estão sujeitos a riscos diferenciados (climáticos e de mercado, particularmente) e ainda sofrem com a pressão de cadeias oligopolizadas de fornecedores (da área de fertilizantes, por exemplo) e de compradores (80% da produção de grãos se concentram nas mãos de quatro empresas, o chamado grupo do “ABCD” – Archer Daniels Midland (ADM), Bunge, Cargill e o grupo Dreyfus). Além dos mecanismos governamentais de garantia de preço, técnicos da CNA apontam a escassa cobertura de seguro – não chega a 1% do valor total envolvido de R$ 200 bilhões – como outro problema estrutural que acarreta no problema recorrente das dívidas do setor rural. Existe, na visão da entidade, o risco de repetição da crise de abastecimento de 1993. Os mercados continuam abastecidos, mas a CNA estima que, se nada for feito, produtos podem começar a desaparecer das prateleiras a partir do ano que vem. Isso sem contar a ameaça da gripe aviária.
Riscos à parte, dados relativos às dívidas de grande porte revelam algumas características singulares: cifras quilométricas embutidas em poucos contratos, com alto índice de inadimplência e histórico extremamente favorável de rolagem nas últimas décadas. Somando-se os cerca de 9 mil contratos de mais de R$ 200 mil da Securitização (I e II) e do Pesa, com base em tabela organizada pelo Banco do Brasil (detentor de 70% das dívidas rurais) no final do julho de 2005, 91% (8,4 mil) estavam em atraso. Dos R$ 7,9 bilhões emprestados para essa mesma faixa, R$ 5 bilhões não haviam sido pagos.
No ano passado, a Via Campesina – coalizão internacional de movimentos sociais camponeses – denunciou o que chamou de “mensalão do agronegócio”. O documento traz o histórico da formação do Pesa e da Securitização, instaurados pelo governo FHC como resultado da renegociação de dívidas anteriores a 1995. Foram feitas, pela mesma gestã
;o federal, outras duas revisões dessa rolagem, em 1999 e 2002. Os empréstimos menores de R$ 200 mil foram encaixados na chamada Securitização e aquelas dívidas acima desse valor tiveram o complemento incluído no Pesa. Ou seja, quem estivesse hipoteticamente devendo R$ 215 mil em 1995 teve de renegociar R$ 200 mil na Securitização e os R$ 15 mil restantes foram enquadrados no Pesa, programa específico para abarcar os extras dos grandes devedores. O Tesouro Nacional, além de garantir os empréstimos, paga mais de R$ 3 bi por ano de juros para rolar essas dívidas. “Na verdade, estas dívidas são impagáveis e o agronegócio é economicamente inviável. E se é para subsidiar, que o governo subsidie os pequenos e os médios agricultores que geram mais emprego, distribuem renda, respeitam o meio ambiente e produzem 80% de toda a produção agrícola nacional, tanto para o mercado interno como para exportação”, defendem os movimentos sociais.
Da Agência Carta Maior