Patrícia Audi é coordenadora nacional do Projeto de Combate ao Trabalho Escravo e representante da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Nesta entrevista concedida ao DIÁRIO DO PARÁ, ela explica como o Brasil conseguiu se tornar modelo internacional no combate à escravidão de trabalhadores. Patrícia também conversou sobre a atuação do projeto que coordena e da assistência que é dada aos empregados libertados. Ela também contou que o Pará ainda lidera o triste ranking deste crime e que a maior incidência é na região sul do Estado. Aliás, o maior número de ações de libertação de trabalhadores se deu justamente em terras paraenses. Patrícia lamentou a indefinição de competência para julgamento desses crimes, pois isso acaba ajudando na impunidade e, consequentemente, em mais casos.
O que é o trabalho escravo?
Patrícia Audi – Quando se fala de trabalho escravo é uma situação extrema, aliada a uma completa degradação no ambiente de trabalho, à falta de liberdade destes trabalhadores. E essa falta de liberdade é muito diferente da escravidão antiga, por três principais fatores: uma é a famosa servidão por dívida, em que o trabalhador é aliciado em municípios muito carentes, do Nordeste e até mesmo do Pará e Tocantins, e é levado a milhares de quilômetros de distância, em fazendas principalmente no Pará, Matogrosso e Tocantins. Quando chega lá, já deve as despesas de transporte, alimentação, em valores muito superiores ao salário inicialmente acordado. Isso se transforma numa dívida impagável. Como eles são muito humildes, acreditam que devem e permanecem naquela situação de servidão. Outro fator é a questão do isolamento geográfico destas fazendas. Quando nós falamos em fazendas no Pará, estamos falando de fazendas a dezenas e até centenas de quilômetros de distância. Ou então ainda a presença de guardas armados que ameaçam e até matam esses trabalhadores que tentam fugir dessa situação. É muito comum que essas três situações estejam juntas. Existe todo um esquema, uma quadrilha montada que faz com que esse crime ocorra. Existe o aliciador de mão-de-obra, que é o "gato", que vai até a sede dos municípios, principalmente do Maranhão e do Piauí e leva estes trabalhadores. Existe o gerente da fazenda, existe o "sub-gato", existe o dono da fazenda.
Por que o Brasil se transformou numa referência internacional no combate ao trabalho escravo?
Primeiro porque não é vergonha para país algum ou Estado reconhecer que o problema existe, o problema é fingir que não existe e não fazer nada. O trabalho escravo não é uma exclusividade de países em desenvolvimento, de países pobres, ele existe em todas as economias do mundo, em todas as regiões e apresentando as mais diversas formas. O Brasil foi um dos primeiros países perante a OIT (Organização Internacional do Trabalho), a reconhecer o problema. E criou desde 95 o grupo móvel de fiscalização, formado por fiscais, procuradores do trabalho e policiais federais e atende denúncias em todo o país.
Já foram resgatados, de 95 até 2006, mais de 20 mil pessoas nestas condições.
A grande diferenciação e o grande salto, em termos de qualidade que o Brasil teve nestes últimos anos, primeiro foi a constituição de uma comissão, que é a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, que traçou um plano, uma estratégia. A comissão é constituída por associação de juízes federais e do trabalho, procuradores da República e do Trabalho, OAB, OIT, CPT, todos fazem parte dessa comissão. Isso dá resultado devido a esta articulação. Essa comissão então, lançou o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, e o Brasil foi o primeiro país a lançar um plano nacional, além disso, a cobertura na
mídia impressa cresceu de 2002 a 2004 em 1.900%. O que mostra que realmente esta situação passou a ser um tema da agenda nacional.
Você falou em 20 mil resgates de trabalhadores em todo o país. Onde foi a maior incidência?
No Pará. Infelizmente o Estado, ao longo de todos esses anos, que têm maior
incidência de trabalho escravo é o Pará. Ano passado houve uma diferença porque numa destilaria no Mato Grosso foram encontrados mil trabalhadores nestas condições. Então, no ano passado, Mato Grosso passou a frente do Pará. Mas as curvas mostram que, infelizmente, a maior incidência dessa questão ainda é no Pará, principalmente no sul do Estado. Além dessas ações por danos morais que vem sendo confirmadas pela justiça do trabalho, o governo foi corajoso e lançou a "lista suja" das empresas que se utilizaram de mão-de-obra escrava. Cada instituição decide o que fazer com esta lista. Por exemplo, o Ministério da Integração resolveu suspender o crédito de financiamento destas atividades. Então o governo agora deixou de financiar o que vinha combatendo. Além disso, o Banco do Brasil restringiu os créditos, o Basa também, o Incra descobriu que 70% dessas fazendas não têm registro nenhum, o que mostra também o crime de grilagem de terras.
O trabalho escravo é um crime previsto no Código Penal. Não há nenhuma ação com relação à pena de reclusão?
Esse é um grande problema, essa é uma coisa que precisa realmente ser resolvida. Há uma discussão de quem é a competência para julgar esse crime, se é a Justiça Federal ou a Justiça Comum. Enquanto existe essa discussão, o crime prescreve e ninguém é julgado e condenado. Existe um processo no Supremo que pode de uma vez por todas definir essa competência, mas esse processo começou a ser julgado há um ano e meio. Então, já que não há possibilidade de responsabilização criminal, por enquanto nós estamos buscando responsabilizações pecuniárias e até de constrangimento dessas pessoas.
Existe algum órgão responsável para conferir se as multas estão sendo aplicadas?
O próprio Judiciário se encarrega de verificar se essa execução está sendo feita com esses valores altos.
A "lista suja" já teve alguma redução?
Nós informamos a inúmeras empresas brasileiras e multinacionais que elas estavam comercializando produtos oriundos da mão-de-obra escrava, e elas não sabiam. Imediatamente foi firmado um pacto nacional contra o trabalho escravo, em que essas grandes empresas deixaram de comprar os produtos das fazendas dessa "lista suja". Antes, e isso é muito importante para o caso específico do Pará, pois a Associação da
s Siderúrgicas de Carajás criou um acordo para não mais adquirir produtos dessas fazendas. E eles fizeram ainda mais, criaram uma ONG em que o próprio instituto fiscaliza as carvoarias. Existe uma sede em Imperatriz no Maranhão e outra em Marabá. Já foram cancelados por irregularidades trabalhistas mais de 125 contratos de fornecimento, além daqueles da "lista suja". E esse instituto ainda buscou trabalhadores egressos na escravidão e admitiu 52 deles em suas siderúrgicas, mostrando realmente um papel importantíssimo de responsabilidade social.
Essas pessoas que são libertadas, de que forma elas são assistidas?
Elas recebem durante três meses o seguro-desemprego e em dezembro do ano passado, passaram a receber o Bolsa-Família. Mas ainda é necessário mais medidas de prevenção e reinserção principalmente naqueles municípios já identificados como de aliciamento de mão-de-obra.
O que mais inibe o trabalhador escravo é o medo da morte?
O medo faz parte do cotidiano desses trabalhadores. A única instituição que eles
realmente acreditam que possa ser isenta é a Igreja. Então, o principal canal de
denúncia continua sendo a CPT (Comissão Pastoral da Terra). Gostaríamos que a senhora falasse um pouco do Projeto Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, que a senhora coordena. O projeto teve início em abril de 2002, com várias atividades formais. Eu acho que o principal ganho do projeto na verdade é a possibilidade de fazer essa ação coordenada entre membros dessa comissão. Aproximadamente 20 instituições que trabalham, que se falam praticamente todos os dias, algumas com mais intensidade do que outras, vem colocando em prática as ações do plano. Lógico que nós encontramos inúmeras resistências, temos políticos condenados por estar envolvidos, temos grandes grupos econômicos também nesta "lista suja". Então enfrentamos dificuldades político-econômicas, mesmo lá em Brasília. Nós temos a previsão da aprovação de uma
PEC, que prevê a expropriação de terras nas glebas onde foram encontrados
trabalhadores escravos e essa PEC passou em primeiro turno no Congresso Nacional. Mas a bancada ruralista, depois de quebrar vários acordos firmados, disse que não vai mais aprovar essa PEC. Dificuldades existem, são inúmeras, mas aos poucos nós vamos vencendo. Esse é um projeto de 1,7 milhão de dólares, que está praticamente no final, começou em 2002, é um projeto da OIT. A maior parte das atividades já foi cumprida – a capacitação de juízes, procuradores, fiscais, lançamento de campanhas, a elaboração de um plano, a doação de equipamentos a um grupo móvel de fiscalização. A campanha foi feita de maneira absolutamente gratuita. A nossa principal função é ajudar as instituições nacionais naquilo que for possível e divulgar essa questão.
Na sua opinião, o que o governo poderia fazer para minimizar a questão do trabalho escravo?
Acho que existem competências diferentes. Primeiro são necessárias medidas efetivas de prevenção e reinserção. O Estado brasileiro – e aí a gente não fala só do executivo -, de maneira heróica vem fazendo o papel dele, embora consiga atender só 30% das denúncias que são apresentadas. A gente não pode pensar que apenas ONGs ou a iniciativa privada vão readmitir esses trabalhadores, é preciso dar alguma capacitação e reinseri-los no mercado de trabalho e naqueles municípios gerar alguma oportunidade de renda para que essas pessoas permaneçam aí minimamente. Se nós falamos de Estado brasileiro de uma maneira geral, é necessário que o Executivo exerça melhor o seu papel, que o Judiciário se posicione em relação a essa questão da competência e que o Legislativo se posicione com relação ao fim da escravidão. Com relação aos Estados, há cerca de três anos, nós lançamos uma campanha aqui no Pará, onde foi criado um fórum estadual. A principal competência dos Estados primeiro é reconhecer que o problema existe, é possível também que o Estado se envolva, alertando, prevenindo.
No "ranking da escravidão", o Pará continua atrás de Mato Grosso ou no topo? Quais os municípios paraenses que têm grandes índices de trabalho escravo?
O Pará continua no topo. Mas eu não saberia te precisar agora quais são os principais municípios paraenses, mas com certeza a região de Redenção, Marabá,
Parauapebas, toda a região sul do Pará é onde mais se encontram. Justamente por que fica mais perto dos outros Estados como Tocantins e Mato Grosso? Não. É porque é justamente o arco de desenvolvimento Amazônico. Os municípios onde
são registradas as maiores incidências de crimes ambientais estão diretamente
relacionados ao crime de trabalho escravo.
Você tem o número de pessoas que continuam em regime de trabalho escravo no Estado?
Nós não temos o número de trabalhadores nessas condições, temos o número de pessoas resgatadas e das denúncias feitas no Pará. Cerca de 37% dos trabalhadores resgatados que faziam parte das empresas relacionadas na "lista suja" são do Pará.
Nos Estados que apresentam os índices maiores vocês atuam com maior intensidade?
A OIT trabalha muito no âmbito político. Nós ajudamos na elaboração e na divulgação da campanha do Pará e temos estimulado as discussões nesses principais Estados. Nós ainda não conseguimos fazer essa discussão no Tocantins, por exemplo, mas no Piauí, Maranhão, Mato Grosso e Pará, ou existem fóruns estaduais ou campanhas e planos lançados para tratar desse assunto.
Qual é a posição do Brasil no ranking mundial?
A OIT não identifica números. Por se tratar de uma atividade ilícita, o máximo que conseguiram foi identificar números por região. Estima-se um número mínimo entre 25 e 40 mil brasileiros submetidos ao trabalho escravo. E isso é falso, porque se baseia nos canais de denúncia, mas não quer dizer que onde não existam os canais de denúncia as pessoas consigam ser assistidas ou não.
Como uma pessoa pode denunciar o trabalho escravo?
Ela pode procurar a Delegacia Regional do Trabalho no Estado, a Subdelegacia, quando houver, o Ministério Público do Trabalho ou ligar diretamente para Secretaria de Inspeção do Trabalho em Brasília. O número é (61) 3317-6435. A identidade dela é sempre preservada.