Por Sérgio Abranches
Não foi surpresa para mim, encontrar na parede do pequeno hall de entrada da Pousada Veredas, em Chapada Gaúcha, Minas Gerais, um poster do Jornal da Soja, com a chamada "Rumo a uma safra recorde". Era propaganda de uma marca de tratores e colheitadeiras.
Fui a Chapada Gaúcha para conhecer o parque Grande Sertão: Veredas. É viagem longa. Mais de 1200 quilômetros do Rio de Janeiro. O caminho é a BR 040, até Paracatu, depois se segue até Unaí, Arinos, Garapuava e, por estrada de chão, Chapada Gaúcha. Entre Unaí e Arinos, já entramos em pleno território da soja mineira. Da soja e do carvão ilegal.
Desde minha infância, estou acostumado a rodar por aquelas estradas sertanejas, vendo os caminhões de carvão, sobrecarregados, com carga irregular, na forma e no conteúdo. Os sacos mal-ajambrados de carvão empilhados em pilhas muito mais altas do que seria admissível. A carroceria cambada vai negociando estabilidade com a carga ilegal, que passa por baixo do nariz das polícias rodoviárias, estadual e federal, impunemente. Também não fiquei surpreso em ver os caminhões dos carvoeiros pra cima e pra baixo. Nessa desordem brasileira, surpresa é a legalidade.
No trajeto, medi uma plantação de soja com 15 quilômetros de frente. Não dava para ver o fundo. Os retões de 5 quilômetros ou mais são comuns. Tudo plano, tudo grande e tudo coberto de soja. Tratores e colheitadeiras novinhos alinhavam-se esperando a hora da colheita. São campos irrigados, onde antes era cerrado. Reserva legal de 20%? Nem pensar. Não se vê árvore. Na estrada entre Arinos e Chapada há uma mancha de cerrado de alguns quilômetros. Milagre. Desentendi porque resiste. Passei por ela por volta das quatro da tarde. Vi tucanos, papagaios, araraúnas e periquitos-rei e até uma cotia me cruzou o caminho. Pareciam um flanco da resistência da natureza, sitiado naquele pequeno fragmento de seu território.
Ao chegar a Chapada Gaúcha, logo na entrada ergue-se o barracão da Cooperativa dos Produtores de Soja. Nas ruas sem calçamento, enormes caminhões e tratores. Na praça principal da cidade, onde fica a prefeitura, numa das esquinas tem uma loja de tratores reluzentes. Ela tem o mesmo jeito das lojas de automóveis da cidade grande. A praça, um enorme quadrado de uma dezena de metros quadrados, parece um monumento ao desmatamento. Tem umas poucas árvores na borda, no mais é um terreirão nu.
Daí, não ter sido surpresa para mim, encontrar na Pousada Veredas, não a celebração do livro que deu o nome à reserva ou a seu autor. Não é que não conheçam Guimarães Rosa de ouvir falar e de ler. Conversando com os donos da Pousada, prosa amena, sobre coisas do bem, eles, emocionados, repetiam, vez ou outra, no seu sotaque pampeiro: "nisso eu me identifico com o Guimarães Rosa". É que a cidade respira soja. Um ambientalista que conhece bem a região me disse que os "chapadenses" se orgulham de ser modernos. Tudo é de ponta: tratores, colheitadeiras, sementes. Por isso quase toda a produção é transgênica.
Viajei com uma equipe do Bom Dia Brasil, que fez um especial sobre o parque e o livro para o próximo dia 26, aniversário de publicação da obra. Como cheguei primeiro, tinha que esperar algumas horas. Sentei-me numa cadeira em frente ao hotel, na esquina da praça principal. Meu carro, um 4×4 com placa do Rio de Janeiro, chamava atenção. As pessoas passavam e me olhavam com um misto de curiosidade e desconfiança no olhar. Afinal, meu carro tem um baita adesivo de O Eco na janela.
O primeiro a se sentar foi Airton, o jovem atendente do hotel. Garoto inteligente, desejoso de fazer carreira militar, apaixonado por botas de cano curto e pela roça. "Eu gosto duma roça, viu? Vou sempre que posso, faço um trabalhinho, fico andando pra cima e pra baixo, tiro umas prosas boas mesmo. Taí, eu gosto duma rocinha". Perguntei de Chapada e ele me contou que achava o lugar "meio ruim".
– Médico não tem. O médico daqui mora na fazenda. Vai embora de tardinha e não atende chamado à noite. E se for uma emergência e a pessoa estiver morrendo? Não tem jeito. Chama os enfermeiros…
Reclama do comércio todo.
– Tudo caríssimo. O senhor vai ver, quando for abastecer o carrão. A farmácia não tem nem remédio para pressão.
Enquanto ele falava, Juliano, um paulista de seus 35 anos, sentou-se numa cadeira vaga e ficou ouvindo, para confirmar.
– É doutor. Comprei umas terrinhas aqui, mas outro dia falei para minha mulher, que não estava dando. Tava gastando quase mil reais no mercado. Um dia, fui a Januária e fiz a compra de mês por 250.
Quando eu era pré-adolescente, via meus avós sentados à porta de casa, na rua principal de Curvelo e as pessoas paravam para prosear. Ali, sem sair da porta, eles ficavam sabendo de tudo que se passava não só na cidade, mas de Cordisburgo até Corinto. Fiquei com a sensação de que se me sentasse durante alguns dias, por algumas horas da tarde, depois da lida, naquela cadeira na porta da Pousada Veredas, teria material para um ano de coluna.
Para confirmar esse pensamento, Clécio, um negro alegre e falador, do interior de São Paulo, sentou no lugar de Juliano, que se despedira. Morador do interior de São Paulo, "mas já é cidade de mais de 200 mil habitantes, grande demais", é mecânico e operador de máquinas pesadas, de tratores a caminhões fora de estrada, crescido em Corumbá.
– Trabalhei muito naquela região de Corumbá, Cáceres, no Pantanal. No Mato Grosso mesmo. Não no Mato Grosso do Sul. Vi muito bicho: onça, tamanduá bandeira, lobo, tatu canastra.
Curioso, quis logo saber: "lá na reserva tem muito bicho, tem"? Não pude responder, porque ainda não havia entrado no parque. Devolvi uma pergunta: e o que você fazia lá pelo Mato Grosso?
– Fiz de tudo. Transportei carga, trabalhei em mineração, abri fazenda, ajudei a furar o gasoduto da Bolívia, sempre operando máquina pesada, né?
Perguntei como era fazer o gasoduto.
– Ah furei rio, furei serra, furei o Corumbá, até o Paraguai. Furei muita serra. Uma vez, furamos uma serra grande, daquelas retas, mesas – né? – primeiro a gente passa uma broca menor, depois vai crescendo a bitola da broca, até dar para passar o duto. Estávamos passando a primeira broca, quando brotou aquela água branca de cristal, clarinha, geladinha, uma beleza… A pedra parecia ter veias de água. Essa primeira secou. Depois, demos com uma outra, que nunca parou de jorrar. Ficou lá… Quando liberamos a área, um fazendeiro lá do local fez umas represas, a água cai duma pra outra, pra outra. Uma beleza.
Mas a curiosidade não apaga:
– O senhor tá fazendo o quê aqui? Veio comprar terras?
Contei que era de O Eco e ia fazer uma matéria sobre o parque. Fez um ãhn daqueles que não deixam dúvida e logo ofereceu informação:
– O problema aqui é com os carvoeiros. Um crime. Desmatam tudo, tocam fogo, para vender para as usinas l&aacut
e; de Sete Lagoas. Isso o Ibama não vê. É crime, sabe? Desmatamento ilegal, fornos clandestinos, sapecam tudo. O senhor sabe que acaba com os bichos. Morre tudo estorricado. Acaba com tudo. Isso o Ibama devia ver e não vê… Estão transformando tudo em carvão. A soja, não. Eu já vi um lobo guará atravessando a cultura de soja.
Ouvi a mesma frase do representante do Ibama. "O maior problema aqui são os carvoeiros".
Clécio não gosta de queimada.
– A queima da cana é muito ruim. Lá na região de Araçatuba, a gente vê capivara com febre por causa do fogo. O couro todo sapecado, ela entra na água e fica lá, quietinha. Dá uma dó danada.
Também não gosta de cidade grande. É homem de fronteira. Vai de uma para a outra, buscando essa vida meio de aventura, meio de camaradagem, mundo masculino, de muito trabalho e, depois da lida, um certo tipo de liberdade, de desamarração do mundo.
– Eu chego em casa, fico um mês com a mulher e os filhos, mas vai me dando uma coisa, eu arrumo outro serviço e me mando. Eu gosto mesmo é da roça.
Perguntei o que fazia em Chapada.
– Estou trabalhando numas fazendas de um senhor aqui. Tem várias. Uma lá no Urucuia, outra no Carinhanha, do outro lado é Bahia. Agora estou arrumando as cercas da propriedade lá do Urucuia.
Clécio conhece bicho e gostava de pescar no Pantanal. "Pantanal é cerrado, só que é úmido, não é essa secura daqui".
Ele chegou à região de Chapada depois do desmatamento, que destruiu as veredas. Se tivesse chegado no tempo em que aquele cerradão estava preservado, teria visto aquela pausa de água e sombra oferecida pelas veredas cheias de buritis. Mas, desflorestado, o cerrado é seco mesmo. Chão de areia, areia de tantas cores que os artesãos locais fazem aquelas garrafinhas com paisagens sertanejas feitas com areias de várias cores, iguais às que se costuma encontrar no Ceará.
Outros sabem, porém, que o sertão tem água, que ela fica nas veredas preservadas. Já no finzinho da tarde, chegando a hora do jantar, um fazendeiro local, dono de muitas propriedades, sentou-se na roda de prosa e assuntou: o que eu fazia ali, se era verdade que estava chegando uma equipe da Globo, qual era o foco da reportagem.
Satisfeito com o fato de que estávamos interessados era no parque, na reserva, entrou na conversa, para falar "do outro lado":
– O maior problema da reserva, é que eles não pagam as indenizações. Aquilo lá é uma beleza. Já viu a água que tem lá dentro?
No dia seguinte, pela manhã, todos estavam à mesa coletiva do café. Quando nos levantamos para sair, Clécio entrou no caminhão de seis eixos que deixara estacionado e foi para o trabalho.
Os locais tratam o parque como algo meio misterioso, algo totalmente externo. O que não é bom. O parque está cercado de soja por todos os lados. Sua defesa legal, é o representante do Ibama local. Kolb Von Braun Soares Santos, sabe tudo da região, é uma liderança local, mas é um só. Não tem nem como defender aquele parque de mais de 230 mil hectares. Ele sabe o que faz. Tornando-se útil à comunidade, ganha sua simpatia e protege o parque.
O maior aliado do parque e de Kolb é João Guimarães Rosa, cujo livro, que traz para a região a televisão, turistas estranhos, a maioria estrangeiros, pesquisadores, e celebridades, vários locais já leram mais de uma vez. Encontrei um rapaz que tinha sue exemplar, todo marcado, para poder mostrar os locais aos turistas. Outro, mostra com orgulho a edição especial que ganhou da Funatura, porque conhece o livro de trás para a frente, que já leu três vezes. Livro que a gente da cidade acha difícil, eles acham a cara deles mesmos. E têm razão. No remoto povoado de Ribeirão de Areia, esse rapaz de não mais que 20 anos, que mostra com orgulho o exemplar presenteado de Grande sertão encadernado em pelica, declamou para nós os primeiros parágrafos da estória, não decorado sem entendimento, mas falado com compreensão e emoção. Sêo Jonas, famoso violeiro local, compôs música para o parque e contou a seguinte história:
– Um dia apareceu esse homem por aqui, perguntava tudo: que planta é aquela ali, qual o nome daquele rio, como é que chama esse lugar acolá? Perguntava tudo e anotava tudo num caderno amarrado no pescoço. Foi embora e uns tempos depois apareceu o livro. Muitos anos depois, apareceu um pessoal da Funatura aqui, fez uma porção de perguntas e foi embora. Uns tempos depois, apareceu o parque.
O parque vai precisar de reforço. Pelo que pude observar de seu entorno, a agricultura da região não está em crise não. Está em expansão. Encontrei o maior fazendeiro local na semana em que acabara de somar mais 60 tratores à sua frota, de uma tacada só. Ainda se compra e se vende terras por lá, para fazer fazendas, usando máquinas pesadas para preparar o terreno. Ouvi um recém-chegado contar numa roda de conversa que havia comprado cinco fazendas. "Eles estavam oferecendo um pacote, eu comprei". Planta-se alternadamente soja e braquiária, para produzir sementes que são vendidas a pecuaristas do Pará.
A cidade vive da soja e para a soja. Fazenda, trator, sementes são a matéria de todas as conversas e casos importantes. Propriedade por lá não é coisa pequena, 10 mil a 30 mil hectares. Coisa de perder de vista. Muita coisa ainda é como Guimarães Rosa viu, muita coisa só existe ainda, no interior da reserva: "fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata a mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho". Só vi as vargens, nas veredas do parque. Água, quase não se vê. Só as dos rios que povoam o livro de Guimarães Rosa: "Olhe: o rio Carinhanha é preto, o Paracatu moreno; meu, em belo, é o Urucuia – paz das águas… É vida!" ainda há paz. Mas, se entendo de risco, a pressão pode subir nos próximos anos, a menos que se desenvolva uma estratégia preventiva, em aliança com os produtores que já estão lá.
O parque é mistério e prestígio. Mas chique mesmo, em Chapada Gaúcha, é trator. Já na noitinha, quando me preparava para ir jantar, em frente à Pousada, um homem saiu todo bem arrumado, banho tomado, subiu no reluzente trator vermelho, parado no jardim em frente à sua casa como se fosse uma Ferrari, e saiu para passear pela cidade. Ao contrário de outros lugares, naquela cidade, de proprietários ausentes – uns moram em suas fazendas, outros longe dali – o bacana não é circular em pickups, que lá são carro de serviço, a maioria muito mal tratada, bacana é circular de trator e caminhãozão, os principais veículos no curioso trânsito de Chapada Gaúcha.