Acusação de biopirataria contra Natura expõe legislação falha

OAB, MP e MPF do Pará investigam acusação de que a empresa Natura teria usado indevidamente conhecimentos tradicionais na produção do perfume de priprioca, raiz vendida no comércio popular do Pará. A empresa garante que cumpriu a legislação; o caso expõe a fragilidade da regulamentação sobre acesso a conhecimentos e repartição de benefícios a comunidades tradicionais
Verena Glass
 30/05/2006

Uma filmagem realizada pela empresa de cosméticos Natura há cerca de dois anos com várias vendedoras de ervas e raízes do mercado Ver-o-Peso, em Belém do Pará, acabou gerando uma nova polêmica em torno das regras que regulamentam o processamento comercial de produtos a partir de recursos genéticos e conhecimentos detidos por comunidades tradicionais.

O caso das feirantes contra a Natura, que foi levado inicialmente à Comissão de Propriedade Imaterial da OAB do Pará no início do ano passado, dá conta de que a empresa teria gravado depoimentos de várias vendedoras do Ver-o-Peso sobre o processamento rudimentar da priprioca, uma raiz muito cheirosa usada pelas erveiras para fazer perfumes e banho-de-cheiro. Segundo as feirantes – seis delas haviam assinado um termo de cessão de imagens com a empresa -, a Natura teria utilizado seus conhecimentos para elaborar produtos a base da raiz, principalmente o perfume de Priprioca.

O caso ganhou notoriedade em abril deste ano, quando o jornal O Liberal publicou uma matéria sobre as filmagens e entrevistou uma das erveiras, conhecida como Beth Cheirosinha. A repercussão da reportagem levou os Ministérios Públicos Estadual e Federal a entrar nas investigações sobre um possível crime de apropriação indevida de conhecimentos tradicionais, sem anuência prévia nem repartição de benefícios, mas segundo a OAB, o MP e o MPF, “ainda não se pode dizer se o caso pode ser caracterizado como biopirataria”.

“Estamos em fase de levantamento de informações e coleta de depoimentos. Em todo caso, existe um procedimento [para acesso a recursos e conhecimentos tradicionais], que é a anuência prévia, registrada junto ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), e a repartição dos benefícios ou lucros com a comunidade”, afirmou o procurador do MPF, Alexandre Soares. O Promotor do MP, Nilton Chagas, também acredita que é “prematuro falar em biopirataria”, mesmo que hajam indícios de procedimentos irregulares.

CONTROVÉRSIAS
A cautela dos três órgãos na avaliação do caso neste momento reflete o respeito ao princípio da precaução no processo investigativo, mas também se deve ao fato de que a primeira teoria – que a Natura, através da filmagem das erveiras, teria se apossado de seus conhecimentos sobre o processamento da priprioca – se mostrou inconsistente, uma vez que os depoimentos foram colhidos em 2003, quando o perfume da empresa já estava pronto.

Segundo Eliane Moreira, presidente da Comissão de Biodireito da OAB, porém, existem relatos de pesquisas e filmagens da Natura desde 2001, e o próprio site da empresa afirma que a “equipe de Natura Ekos conheceu a priprioca no Mercado Ver-o-Peso, em Belém”. Isso indicaria o acesso aos conhecimentos tradicionais em algum momento, mesmo que o vídeo produzido com as erveiras tenha mesmo cumprido um papel promocional do produto, como alegou a Natura. Mas, como afirmou o presidente da entidade, Ophir Cavalcante, ainda não seria possível adiantar juízos antes da conclusão das investigações.

Uma das empresas mais empenhadas em associar a sua imagem à preservação da Amazônia, a Natura afirmou estar surpresa com as denuncias das feirantes. Segundo os diretores de Sustentabilidade, Marcos Egydio, e de Assuntos Corporativos, Rodolfo Guttilla, as gravações com as seis erveiras do Ver-o-Peso foram feitas no intuito de “enaltecer as mulheres e seu conhecimento”, em uma homenagem à cultura popular e à riqueza do mercado e da população paraense, para material de lançamento do perfume.

Ainda de acordo com os diretores da empresa, o processo de elaboração do perfume de priprioca exigiu a aplicação de altíssima tecnologia, desenvolvida em partes na Unicamp, e que não teve relação alguma com os métodos utilizados pelas feirantes. Mas eles reconhecem que houve pesquisa junto às comunidades nas cercanias de Belém e no próprio Ver-o-Peso.

“Nós reconhecemos que tivemos acesso ao patrimônio genético da priprioca na comunidade Boa Vista, e estamos fazendo repartição de beneficio com esta comunidade – que, aliás, é uma das fornecedoras de priprioca para a Natura. No caso do conhecimento tradicional, estamos com dificuldade porque se trata de um conhecimento difuso. A legislação manda repartir benefícios quando há acesso a recursos genéticos e a conhecimentos tradicionais associados, ou seja, nos casos em que é possível detectar a fonte”, diz Egydio, explicando que a priprioca é processada por inúmeras comunidades e empresas.

De acordo com a Natura, que afirma adotar o conceito internacional de comércio justo e que diz apostar num modelo de desenvolvimento da Amazônia que valoriza a floresta em pé e a sustentabilidade das comunidades tradicionais, há por parte da empresa o maior interesse em conversar com as erveiras do mercado para resolver as pendências.

LEGISLAÇÃO
O debate que a pequena e cheirosa priprioca desencadeou em Belém tem em suas raízes um problema de difícil solução: a aplicação dos princípios de respeito às comunidades tradicionais, apontados mas não definitivamente estabelecidos nem na Convenção de Diversidade Biológica (CDB) da ONU.

No Brasil, a legislação que versa sobre o tema é uma medida provisória, promulgada em 2001, que reconhece que as comunidades têm direito a parte dos lucros advindos de produtos elaborados a partir de materiais ou conhecimentos tradicionalmente utilizados ou desenvolvidos por elas, assim como garante a obrigatoriedade de uma anuência prévia para a utilização deste “patrimônio cultural”.

Segundo Eduardo Vélez, secretário executivo do CGEN, porém, esta legislação não trata o tema de forma adequada. Não resolve, por exemplo, o problema da co-titularidade dos recursos ou conhecimentos, ou seja, os casos onde várias comunidades detém o patrimônio em questão. No caso específico da Natura, que tem mais de 12 produtos registrados ou em processo de registro junto ao CGEN, Vélez afirma que a empresa estaria esperando do órgão uma definição sobre como remunerar o acesso ao conhecimento difuso, uma vez que as informações sobre a priprioca teriam sido colhidas em vários lugares, inclusive na literatura e em centros de pesquisa.

“O CGEN está discutindo está questão há mais de um ano. O fato é que o tema nunca foi regulamentado no Brasil, e a tendência é que casos como esse se repitam”, diz Vélez. Segundo ele, o governo deve enviar em breve ao Congresso um projeto de lei que, entre outros, propõe a criação de um fundo comum que receberia os recursos da repartição de benefícios de conhecimentos difusos para posterior investimento no bem comum de todas as comunidades.

COMO FICA?
Deusarina da Silva Correia, ou simplesmente Deusa, nunca soube direito o que é biopirataria. Representante do setor de
ervas do Ver-o-Peso, foi ouvir falar no assunto quando o caso da priprioca chegou à OAB. E como foi parar lá?

Na verdade, o que começou a incomodar Deusa e as amigas foi que a priprioca encareceu e rareou no mercado. O tanto que elas compravam a 20 centavos e vendiam por 50 hoje custa R$ 1,50 e é vendido a R$ 2. E o pior é que, com a proximidades das festas de São João, o produto para fazer o banho de cheiro, imprescindível para dar boa sorte, está faltando. Conclusão: “a Natura compra tudo e não sobra nada para nós”.

“Eles (a Natura) vieram aqui fazer umas filmagens, explicamos tudo, levamos eles pras comunidades, e agora estamos com dificuldades de encontrar a priprioca”, diz Deusa. E arremata: “não é assim, chega uma empresa, pega o nosso produto… queremos a preservação da nossa tradição, é daqui que tiramos o nosso sustento e o dos nossos filhos. É a nossa cultura!”

Enquanto a Natura sugere que discutirá formas de incentivar a produção de priprioca exclusivamente para abastecer o Ver-o-Peso, e que é essencial investir no desenvolvimento sustentável da Amazônia; enquanto o governo se debate na fragilidade de suas próprias leis e permanece paralisado perante pendengas jurídicas previsíveis; enquanto os órgãos responsáveis pela proteção dos cidadãos, como a OAB e os Ministérios Públicos, buscam saídas viáveis de imbróglios legais, uma pergunta permanece em suspenso: quem dá ao capital o direito de se apossar de conhecimentos centenários, pertencentes à cultura de um povo, muitas vezes à sua espiritualidade, e transformar em dinheiro o que sempre foi bem comum?, questionam muitos movimentos sociais da Amazônia. Como fica isso?

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