De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), enfermidades como malária, doença de Chagas, leishmaniose e doença do sono atingem cerca de 530 milhões de pessoas no mundo todo. No entanto, por afetarem, na imensa maioria, pessoas de baixa renda que vivem em países subdesenvolvidos, essas doenças têm sido negligenciadas quanto ao investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) de novos medicamentos, vacinas e diagnósticos. Dos 1.393 remédios aprovados de 1975 a 1999, somente 1% destinava-se ao tratamento de doenças tropicais e tuberculose. Além disso, aproximadamente 90% dos recursos para pesquisa em saúde são gastos com doenças que representam apenas 10% da carga global, como impotência e calvície, mas cujos medicamentos encontram mercado consumidor nos países ricos.
Para tentar reverter essa situação, a Iniciativa de Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, sigla em inglês), instituição internacional de pesquisa científica que reúne órgãos do poder público e da iniciativa privada de diversos países, lançou em junho do ano passado uma campanha internacional por mais engajamento dos governos na pesquisa de medicamentos e, conseqüentemente, maior investimento público em relação a essas doenças. A campanha está agora na reta final, buscando novas adesões brasileiras ao apelo que será entregue ao diretor geral da OMS – o sul-coreano Lee Jong-Wook – durante a Assembléia Mundial da organização, que vai ocorrer, em Genebra, na Suíça, de 22 a 27 de maio. Nessa ocasião, estarão reunidas as delegações dos 192 Estados membros para determinar as políticas da OMS.
Segundo o apelo, que traz assinaturas de cientistas, artistas e outras personalidades internacionais – entre elas 18 vencedores de Prêmio Nobel –, embora essas doenças matem cerca de 35 mil pessoas por dia, totalizando mais de 10 milhões de mortes ao ano, faltam vacinas, diagnósticos e medicamentos seguros, efetivos, adaptados às condições de vida das pessoas afetadas, e com preços acessíveis. Os que existem atualmente são ultrapassados, ineficientes e muitas vezes tóxicos.
“Entre 1986 e 2001, o financiamento global para a pesquisa em saúde aumentou de 30 bilhões para 106 bilhões de dólares, mas o progresso orientado para novas ferramentas de saúde para os pobres permaneceu insignificante. A ciência básica para doenças infecciosas existe e a biomedicina está se desenvolvendo com muita rapidez. Mas sem determinação política, este progresso não pode ser utilizado para desenvolver produtos essenciais”, afirma o documento.
O apelo invoca os governos de países ricos e pobres a exercer liderança política para fazer da saúde global e dos medicamentos um setor estratégico e estabelecer prioridades de P&D de acordo com a necessidade dos pacientes; a oferecer permanente suporte financeiro, para atingir um nível apropriado de pesquisa em saúde para as doenças que afetam populações pobres; e a criar novas regras para estimular a P&D essencial em saúde, com acesso ao conhecimento, compostos químicos e ferramentas de pesquisa protegidos pelos direitos de propriedade intelectual. Pede também que sejam agilizados os processos de aprovação regulatória, de acordo com as necessidades dos pacientes, a gravidade da doença e os tratamentos e vacinas disponíveis, para que os medicamentos essenciais possam ser rapidamente disponibilizados aos pacientes.
A DNDi – da qual fazem parte, entre outros, o Conselho Indiano de Pesquisa Médica, o Ministério da Saúde da Malásia, o Instituto Pasteur da França, a ONG internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) e a Fundação Oswaldo Cruz do Brasil – defende que os governos assumam a responsabilidade pela saúde pública global e busquem novos modelos e mecanismos de financiamento. “Há quem ainda culpe as multinacionais, porém, a grande conclusão é que os governos são responsáveis pela saúde da população, enquanto a indústria privada tem vocação para o lucro”, afirma Michel Lotrowska, representante da DNDi na América Latina, e integrante da ONG Médicos Sem Fronteiras no Brasil.
Segundo ele, os governos precisam estabelecer um sistema de regulação claro, para que haja pesquisa e desenvolvimento para as doenças negligenciadas e também para aquelas que já recebem recursos, como a Aids, mas que não estão adaptadas para as populações negligenciadas. “Os mais conservadores defendem parcerias público-privadas para suprir a falha do mercado. Estamos convencidos de que ela merece muito mais, merece uma reorganização das regras do jogo”, completa. Esse novo modelo pode ser estabelecido, por exemplo, através de um sistema mundial que taxe os próprios medicamentos e crie fundos exclusivos de financiamento de P&D para as doenças prioritárias.
Algumas propostas nesse sentido estão sendo colocadas na mesa. Uma delas partiu dos governos do Brasil e do Quênia e também será apresentada à OMS durante a Assembléia Geral em maio. Ela sugere a criação de um fundo internacional, a ser financiado por países desenvolvidos, para estimular a pesquisa de medicamentos para doenças negligenciadas, com a participação nas pesquisas de instituições científicas e técnicas dos países subdesenvolvidos. Ela também propõe a flexibilização das patentes nos países pobres e a garantia de que não haja retaliação no caso de quebra do direito de propriedade intelectual.
O descompasso entre as necessidades de saúde no mundo e as prioridades de pesquisa e desenvolvimento já é um consenso. A própria OMS reconheceu isso no relatório final da sua Comissão sobre Direitos de Propriedade Intelectual, Inovação e Saúde Pública (CIPIH, em inglês), divulgado em abril. O documento mostra que é imprescindível que os governos estabeleçam prioridades de saúde globais e promovam a inovação para desenvolver e disponibilizar medicamentos, vacinas e diagnósticos altamente necessários, adaptados às necessidades dos pacientes negligenciados nos países em desenvolvimento. O relatório também recomenda a criação de um novo mecanismo global e sustentável para a P&D.
O representante da DNDi na América Latina, no entanto, critica o papel desempenhado pela OMS até agora em relação às doenças negligenciadas. “Ela tem sido omissa na definição de prioridades para saúde pública, em termos de P&D, não fala de forma contundente o que falta. A OMS trabalha de forma passiva, a partir dos medicamentos existentes, diz o que é prioritário. Ela deveria dizer o que precisa e como fazer para ter esses medicamentos, achar mecanismos para incentivar o setor público”, acredita Lotrowska.
Fernanda Sucupira é membro da ONG Repórter Brasil