Agronegócio

Apesar do sucesso da cana, trabalhador continua na mesma

O açúcar e o álcool combustível estão valorizados no mercado internacional, o que aumenta a procura pela cana brasileira. Porém, condições que levaram 13 pessoas à morte por excesso de trabalho não devem mudar tão cedo
Por Beatriz Camargo
 19/05/2006
 
No interior de São Paulo, Lourival Máximo da Fonseca, 27, corta 18 toneladas de cana queimada ou 8 de cana crua por dia (foto: Leonardo Sakamoto)

Em dois anos, a produção sucroalcooleira dobrou no Estado de São Paulo. Segundo a Datagro, empresa que presta consultoria ao setor canavieiro, há cerca de 75 projetos de novas usinas em todo o país. Algumas já devem começar a funcionar no ano que vem. O Mato Grosso, por exemplo, importa cada vez mais mão-de-obra, ao lado de Minas Gerais, que tem 11 dos 75 novos empreendimentos.

O avanço é impulsionado pela crescente valorização da cana no mercado internacional. A promessa de crescimento, entretanto, aumenta a disputa entre as usinas por um filão do mercado e a lógica é baixar os custos para conseguir um preço competitivo. Sindicalistas da categoria temem pelo futuro dos cortadores de cana, que se dedicam àquele que é considerado um dos mais insalubres ofícios no meio rural.

Muitos fatores favorecem a venda de açúcar e álcool, ampliando a área plantada – fala-se até em um "novo ciclo da cana". O açúcar brasileiro conseguiu penetrar na Europa com um preço competitivo se comparado ao açúcar de beterraba produzido lá. Nos Estados Unidos, alguns estados já cogitam a idéia de importar etanol do Brasil para misturar à gasolina, reduzindo a dependência de petróleo e barateando o combustível. Hoje, o etanol utilizado por eles vem do milho, com custo maior do que o álcool da cana. Isso sem contar que, no próprio mercado interno brasileiro, o aumento no número de carros tipo flex circulando pelas ruas também fez crescer a busca por álcool combustível.

Apesar de grandes plantadores, industriais, bancos, tradings e investidores internacionais estarem a um passo do paraíso, boa parte dos trabalhadores rurais do setor continuam vivendo no inferno. Para a professora Maria Aparecida Moraes, do departamento de sociologia da Unesp de Araraquara (SP), é a exploração que garante a expansão do cultivo de cana-de-açúcar. "O aumento da produção, com a entrada inclusive de capital estrangeiro, caminha lado a lado com os salários baixos." Um grande contingente de desempregados migra do Nordeste e do Norte de Minas Gerais, jogando para baixo o preço da mão-de-obra.

Historicamente, muitas conquistas dos trabalhadores rurais da região Norte do Estado de São Paulo, ocorreram após pressão de sindicatos e movimentos sociais. Porém, não são todos os que atuam em defesa dos seus associados. Hoje, a pesquisadora da Unesp considera que a atuação dos sindicatos em geral é muito fraca. "Muitas vezes, há omissão por parte deles diante de fatos graves."

Nesta semana, por exemplo, a Usina Alta Mogiana, de São Joaquim da Barra (SP), e quatro sindicatos de trabalhadores rurais (municípios de São Joaquim da Barra, São José da Bela Vista, Guará e Ipuã) foram alvo de uma ação civil pública do Ministério Público do Trabalho por terem fechado acordos coletivos que eliminavam direitos trabalhistas. Segundo Renata Cristina Petrocino, da Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região (Campinas), "além de impedir o descanso, o texto ainda impede o empregado de receber as horas extras correspondentes a este período trabalhado, que lhe são garantidas pela CLT [Consolidação das Leis do Trabalho], explorando ainda mais o já exaurido trabalhador".

A União dos Canavieiros do Estado de São Paulo (Unica) – entidade que congrega os maiores empresários do setor sucroalcooleiro nacional – discorda da avaliação de que a diminuição de custos deva-se à exploração dos trabalhadores. Para eles, essa redução ocorre principalmente pela modernização tecnológica. "Há investimento em melhorias na área industrial, especialmente no que diz respeito à eficiência e redução de perdas", declarou a entidade por meio de sua assessoria de imprensa.

Hoje, o problema mais freqüentemente encontrado pelos órgãos de fiscalização do trabalho é a irregularidade na infra-estrutura oferecida ao empregado rural, que está explicitada em uma norma regulamentadora editada em março de 2005. Nem todas as usinas estão cumprindo o que prescreve a legislação. Roberto Figueiredo, chefe da fiscalização rural da Delegacia Regional do Trabalho de São Paulo (DRT/SP), lembra que em sua última fiscalização os alojamentos apresentavam falta de higiene e eram insalubres. " Em um deles, encontramos 40 pessoas em um lugar minúsculo e em condições péssimas."

Outro grande problema apontado por Figueiredo é a terceirização da contratação. "Empresas laranjas das usinas trazem, legal ou ilegalmente, mão-de-obra de outros estados e depois colocam esses trabalhadores para trabalhar no corte." E embora muitas usinas tentem mascarar seu vínculo trabalhista, ele aparece no momento da fiscalização. "Fica claro: quem reforma os alojamentos, coloca os trabalhadores em hotel e paga tudo são as usinas." A Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (Feraesp) também considera que a terceirização é uma das principais causas da precarização das condições de trabalho. Sobre isso, foi firmado um acordo com a Unica, que se comprometeu a buscar contratos diretos com o empregado.

Porém, em outras regiões, o diálogo é menos aberto. Aristides dos Santos, presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco (Fetape), conta que as condições trabalhistas ainda têm muito que melhorar no estado, mas aponta o desemprego como mal maior. A Zona da Mata pernambucana – que já teve um passado de engenhos gloriosos – tem índices de cultivo de cana estabilizados há cerca de cinco anos, segundo a Fetape. Além disso, quando há crescimento, não são abertos postos de trabalho em número suficiente para absorver o contingente de desempregados.

Muitos trabalhadores, em busca de melhores oportunidades, estão migrando para o Mato Grosso. "O pessoal sai da sua área e acaba caindo na mão de "gato" [contratador de mão-de-obra a serviço do fazendeiro], muitos viram escravos. Tentamos avisar quando ficamos sabendo, mas às vezes o "gato" já tem esquema até com a polícia", lamenta Santos.

A maior libertação de escravos da história recente do país aconteceu na Destilaria Gameleira, localizada no município de Confresa – região Nordeste do Estado Mato Grosso. A propriedade é da família Queiroz Monteiro, de tradicionais e influentes empresários pernambucanos, cujo filho mais ilustre é o presidente da Confederaç&atild
e;o Nacional da Indústria (CNI) e deputado federal pelo PTB, Armando Queiroz Monteiro Neto. Em junho de 2005, uma ação de um grupo móvel de fiscalização coordenado pelo Ministério do Trabalho e Emprego retirou 1003 trabalhadores da usina. Escravos já haviam sido encontrados na Gameleira em outras ocasiões, a ponto de ela ter sido inserida, na época, na "lista suja" do trabalho escravo do governo federal.

As mesmas condições degradantes de trabalho têm sido observadas no vizinho Mato Grosso do Sul. A cana avança em direção ao Pantanal, colocando em risco também o delicado ecossistema e as populações tradicionais.

Pagamento por produção
Uma das mais importantes questões que devem ser resolvidas para melhorar a qualidade de vida dos cortadores de cana é a definição entre remuneração fixa ou pagamento por produção (no segundo caso, o salário é proporcional ao volume de cana cortada). Nos últimos dois anos, houve pelo menos 13 mortes de cortadores de cana-de-açúcar no interior de São Paulo, direta ou indiretamente causadas pelo excesso de trabalho. O Ministério Público do Trabalho (MPT) acredita que só a mudança no sistema de ganho pode evitar novas mortes e quer proibir o pagamento por produção a partir da safra de 2007. A medida enfrenta resistência tanto por parte dos empregadores como dos empregados.

Embora admita que a proposta do MPT é uma opção para evitar as mortes por exaustão no trabalho, Miguel Ferreira, diretor da Feraesp, acredita que a categoria seria contra a mudança. Na única assembléia já realizada sobre o assunto, no início de abril, em Jaú (SP), houve recusa à proposta. Para as outras cidades, a previsão é de que o resultado seja o mesmo.

Atualmente, o piso salarial de um cortador de cana, na maioria dos municípios do Estado de São Paulo, é de R$ 410,00. Algumas já conseguiram R$ 418,00, outras ainda trabalham com uma base de R$ 370,00. Em Pernambuco, a média fica em torno de R$ 355,00. Mas esses valores servem apenas para regularizar licenças, porque o que determina quanto o trabalhador vai ganhar no fim do mês é o preço das toneladas cortadas. Com uma média de produtividade que varia entre nove e 15 toneladas/dia, dependendo da região (São Paulo, por exemplo, tem os maiores índices), os trabalhadores chegam a dobrar o piso.

"É muito difícil mudar, porque as empresas vão produzir menos com isso. Acho que vai chegar um momento em que o salário-base será maior, aí podemos começar a pensar em mudar o sistema", diz Aristides, da Fetape. Para o diretor da Feraesp, o piso teria que ser de aproximadamente R$ 1.200,00 para que o sistema compensasse aos trabalhadores. "Mas não sabemos como a empresa poderia organizar isso. Está todo mundo perdido nessa questão", admite. Ele está estudando uma proposta para levar à Procuradoria Regional do Trabalho, "para pensar uma transição, e não apenas realizar uma mudança brusca de um ano para outro".

Apesar da urgência, o fim do pagamento por produção não consta da pauta de negociações em andamento entre os sindicatos patronais e de trabalhadores. A Unica, que também se beneficia dessa situação, sinaliza apenas que "o pagamento por produção já é uma prática de muitos anos, não só no setor sucroalcooleira, como também em outras atividades agrícolas, industriais, comerciais e serviços".

Ferreira defende que, paralelamente, outras medidas podem ser tomadas para amenizar a superexploração no campo. "Ao longo dos anos, as usinas investiram em tecnologia e passaram a adotar outras qualidades [tipos] de cana-de-açúcar. Mas os trabalhadores não participaram dessa discussão." Ele reivindica mudanças no sistema de tonelada, para que a qualidade do serviço passe a ser considerada. Hoje, existem variedades de cana mais leves, que concentram mais sacarose: melhor para a empresa (mais açúcar ou álcool por tonelada colhida) e pior para o trabalhador, que tem que cortar mais cana para ganhar a mesma quantia. Além disso, as diversas canas exigem diferentes técnicas no corte, o que pode machucar um trabalhador não acostumado.

Homem x máquina
Junto com o aumento do cultivo, a mecanização também cresce, sobretudo no Estado de São Paulo, onde a inserção de tecnologia na produção é mais intensa e mais antiga do que em outras regiões do país. De acordo com a consultora Datagro, embora o corte manual ainda seja mais eficiente, o custo de produção é menor em áreas onde a mecanização é viável. Contudo, nem todas as áreas são mecanizáveis, pois as máquinas não operam em terrenos inclinados. "O custo-benefício depende da produtividade do hectare da área plantada, das condições do terreno e do dinheiro que o usineiro tem para investir", explica0 Ariovaldo Umbelino, professor do departamento de geografia da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, a tendência em longo prazo é a substituição de homens por máquinas, mas por enquanto ela não é totalmente possível.

No interior paulista, porém, a mecanização é mais acelerada, impulsionada pela lei ambiental da cana, de 2002. Ela decreta a eliminação da queimada da palha da cana-de-açúcar até 2021, nas áreas mecanizáveis, e 2031 em terrenos não-mecanizáveis. Ao cortar a cana crua em vez de queimada, a produtividade do trabalhador cai substancialmente (pois a palha atrapalha, pode machucar os olhos e a pele do trabalhador e esconder animais peçonhentos, como cobras) e a máquina passa a ser menos dispendiosa. Para Miguel Ferreira, da Fearesp, o quadro de oferta de empregos deve se manter estável ao menos no estado, porque novas indústrias são quase 100% mecanizadas.

Roberto Figueiredo, da DRT/SP, considera que a expansão do cultivo e a conseqüente falta de mão-de-obra incentivam o aliciamento em outros estados. "Tem gente que está trazendo conforme determina a lei e instala o cortador de maneira adequada. Mas a grande maioria traz trabalhadores de forma ilegal, a figura do 'gato' ainda existe." Apesar disso, Figueiredo é otimista: "Pode ser que valorize o empregado rural e melhore suas condições de trabalho, ou seja, quem quiser cortador de cana vai ter que pagar mais".

Santos, da Fetape, credita as condições ruins no corte de cana à baixa valorização do trabalhador rural. Ele julga que a situação pode piorar. "Com o aumento da competição no mercado internacional, as empresas querem aumentar a produção". O que normalmente é feito a todo o custo e com custos reduzidos.

Dos 75 novos empreendimentos no setor, 41 serão construídos no estado de São Paulo, atual líder em plantação de cana-de-açúcar no país e estado que mais cresce no ramo. O professor Ariovaldo considera que, repetin
do o fenômeno do Proalcool, na década de 1970, a expansão se dá sempre onde já existe produção. Estados que não cultivam cana não absorveriam esse crescimento. "São Paulo vai virar um imenso canavial", sentencia.

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM