Desde 1995, foram 19 mil trabalhadores libertados da escravidão em ações do governo federal. Indenizações têm sido pagas, processos trabalhistas instaurados, créditos e financiamentos bancários suspensos, acordos comerciais com clientes cancelados. Apesar do combate ao trabalho forçado no Brasil ainda sofrer de limitações políticas, judiciais e financeiras, ele tem causado uma enorme dor de cabeça para quem insiste nessa estupidez.
É claro que o contra-ataque dos ruralistas têm sido à altura – afinal de contas, quem está no poder desde a implantação das capitanias hereditárias não quer largar o osso. Das reações destemperadas da tropa de choque do latifúndio no Congresso Nacional ao dia-a-dia das pequenas comunidades rurais, a Contra-Reforma do agronegócio tem sido feroz.
Ameaças de morte, como as que vem sofrendo o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Araguaína, no Tocantins, por agir na conscientização de trabalhadores a respeito de seus direitos e no combate ao trabalho escravo, são freqüentes. A lista de sindicalistas, religiosos, ativistas e agricultores que falam de aprisionamento e liberdade e estão marcados para morrer é grande. E antiga.
A intimidação de fazendeiros incomodados e seus representantes é tão forte que parte da população de alguns locais da fronteira agrícola amazônica tem medo de pronunciar a palavra “escravo” em público. Temem que conversar sobre o tema em reuniões de formação de trabalhadores ou em encontros populares poderia enfurecer os donos locais do poder. Essa situação já ocorreu na região da rodovia Transamazônica, no Pará, e no Norte do Estado do Mato Grosso, onde a floresta tomba diariamente para a alegria de madereiras, pecuaristas e sojicultores, mas também de indústrias, tradings e multinacionais.
“Pelo amor de Deus, quando você vier, não diga que vai falar sobre trabalho escravo.” Frases como essas foram ouvidas com freqüência por uma missionária que atua no Mato Grosso, em municípios próximos da fronteira com o Pará e o Amazonas. Segundo ela, a situação ficou mais grave no ano passado, conseqüência de ações do governo federal e dos movimentos sociais locais. Isso já aconteceu em municípios como Colíder, Guarantã do Norte, Alta Floresta, Apiacás, Nova Bandeirante, todos no chamado “nortão” matogrossense. Terra de gado de corte e de expansão da soja.
Ela, que também está sob ameaça, diz que há um clima de tensão no ar. “Querem me pegar sozinha.” Vale lembrar que escravos foram libertados da fazenda de um dos acusados de assassinar a irmã Dorothy Stang, em fevereiro de 2005. Ou seja, esse tipo de fazendeiro já tem know-how para isso.
Em outra situação, o projeto “Escravo, nem Pensar!”, que atua na formação de professores e lideranças populares para conscientizarem a população a respeito da escravidão, não conseguiu ser implantado em um município da Transamazônica paraense. “Vocês podem dar o curso mas, por favor, não falem que é sobre trabalho escravo”, disse uma autoridade local, receosa do que poderia acontecer com os que participariam das atividades.
“Escravo” está se tornando em alguns lugares da Amazônia uma palavra maldita, tão condenada quanto conjurar o nome do capeta. Essa censura velada pode levar ao desinteresse de algumas comunidades sobre o tema, ao mesmo tempo que impede a efetividade das campanhas nacionais de erradicação nesses locais. Vale lembrar que o combate ao trabalho escravo é uma das principais políticas de Estado do país, cunha o nome de um conselho interministerial e de um plano assinado pelo próprio presidente da República.
“Trabalho escravo é uma mentira, não existe. O que há é uma tentativa de um governo de esquerda (sic) e de ONGs internacionais, interessadas na Amazônia, de impedir o desenvolvimento econômico do país. Eles trabalham nas minhas terras, mas não são meus empregados, eu não tenho a ver com isso. Não vou pagar salários para vagabundo gastar em cachaça. É melhor que eu guarde o dinheiro dele, se precisar de algo é só me pedir. Ah, mas aquilo não é escravo, mas sim o costume da região. A imprensa inventa uma realidade que não existe. Água tratada, alimentação, alojamento? Para que? Eles não tem isso nem na casa deles.”
Para muitos fazendeiros, aberrações como essas são permitidas na fronteira agrícola. Mas a verdade, não.