Telefonemas anônimos, motoqueiros rondando a casa, recados passados por terceiros e conselhos para "deixar de se meter". Desde março deste ano, é nesse clima em que vivem os membros do Centro de Direitos Humanos (CDH) de Araguaína que atuam no núcleo de Ananás, localizada no Bico do Papagaio (TO) – local marcado por conflitos agrários. Fazendeiros da região, insatisfeitos com o trabalho de conscientização e denúncias contra o trabalho escravo realizado pela instituição, fazem uso de ameaças para sufocar a atuação do núcleo.
Nesta quarta-feira (24), em reunião ordinária da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), realizada no Ministério da Justiça, em Brasília, a comissão solicitou que o governo federal tomasse medidas urgentes a respeito. A Conatrae é um órgão colegiado que reúne instituições públicas e sociedade civil que atuam na erradicação do trabalho escravo. Na reunião estavam presentes o ministro chefe da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH), Paulo Vanucchi, e representantes de ministérios e órgãos federais, entre eles o Ministério Público Federal e a Pólícia Federal.
O início das intimidações aos membros do CDH coincide com a libertação de 201 trabalhadores escravos da fazenda Castanhal, em Ananás, de propriedade de Joaquim Farias Daflon. Dono de cerca de 10 mil cabeças de gado, Daflon já havia sido flagrado utilizando esse tipo de mão-de-obra em duas ocasiões anteriores. Na mesma fazenda, foram libertadas 72 pessoas em maio de 2003 e 23 em novembro de 2001. Ele está relacionado na "lista suja" do trabalho escravo, cadastro governamental que divulga os que comprovadamente foram flagrados cometendo esse crime. Após tomar conhecimento da última libertação, a rede de supermercados Wal-Mart, signatária do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, organizado pelo instituto Ethos e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), suspendeu qualquer negócio comercial com o Frigorífico Frinorte, comprador da fazenda e fornecedor da empresa, até que o fato seja esclarecido pelo frigorífico e pelo governo federal.
Segundo a articuladora do CDH de Araguaína, a freira Maria Geanete Rodrigues da Silva, as intimidações partem também das autoridades. "Eles [do núcleo de Ananás] fazem oficinas, seminários, atos públicos. Isso tem incomodado o poder público", afirma. Há reclamações contra a atitude intimidatória de prefeitos da região.
Ananás lidera as denúncias da Comissão Pastoral da Terra de fazendas que utilizam mão-de-obra escrava. Desde 1985, a instituição levou ao Ministério do Trabalho e Emprego 16 casos. Além disso, seis propriedades que aparecem na "lista suja" são do município. A vizinha Araguaína é a segunda colocada em denúncias no Estado, com 11 casos.
Clima de tensão
Criado para defender e conscientizar moradores da região sobre seus direitos, o núcleo de Ananás nasceu da reação contra ameaças de grande produtores a trabalhadores rurais. Quando, em 2002, foi denunciado um criminoso esquema de aliciamento envolvendo grandes fazendeiros da região, ativistas tiveram que recorrer ao programa federal de proteção a testemunhas, no qual permanecem até hoje. Na ocasião, até um Procurador da República precisou ser transferido para outro Estado devido às ameaças de morte que sofreu. Cientes de que algo precisava ser feito, moradores do município criaram o núcleo de direitos humanos.
De acordo com um de seus membros (que, por questões de segurança, não pode ser identificado), a região vive cronicamente sob clima de tensão. "Fazendeiros colocam medo nos trabalhadores dizendo que, se forem denunciados, vão mandar matar, não vão mais dar mais serviço."
Ao mesmo tempo em que o CDH sofre ameaças, um casal do município vizinho de Riachinho foi obrigado a fugir da região. Depois de serem retirados da fazenda "Vou Vivendo" pela fiscalização do trabalho, eles exigiram seus direitos trabalhistas e foram ameaçados pessoalmente pelo dono da propriedade.
Impunidade
A julgar pelo histórico de impunidade na região, sobram motivos para os ameaçados se sentirem inseguros. Acusado de ser o autor de repetidas ameaças de morte proferidas contra um trabalhador de Ananás, contra agentes da CPT do Tocantins e contra o então Procurador da República em Palmas (TO), o fazendeiro Aldemir Lima Nunes, conhecido como "Branquinho", foi preso em Marabá (PA) em setembro de 2003. Um mês e meio depois, fugiu da penitenciária da cidade pela porta da frente, à luz do dia. Recapturado em janeiro de 2004, teve sua prisão preventiva revogada um mês depois pelo juiz federal substituto de Marabá, Francisco de Assis Garces Castro Júnior.
Branquinho também responde a processo por homicídios, crimes contra a ordem tributária, formação de quadrilha, aliciamento e redução de trabalhadores à condição análoga à de escravo. Apesar do Ministério Público Federal ter conseguido reativar a ordem de prisão do fazendeiro, ele permanece em liberdade até hoje, pois o mandato de prisão nunca foi cumprido.
O cotidiano de viver sob ameaças e assassinatos é antigo. O caso que mais marcou a memória dos moradores da região foi a morte do padre Josimo, em maio de 1986, ocorrida nas escadas do prédio da Diocese de Imperatriz (MA), onde funcionava o escritório da Comissão Pastoral da Terra, à qual era ligado. Das seis pessoas indiciadas como mandantes do crime, apenas duas estão presas, sendo que uma delas permaneceu 15 anos foragida. Do restante, dois foram inocentados, um já faleceu e outro ainda é procurado pela justiça.
Vinte anos após o assassinato de Josimo, o atual procurador do município de Araguaína, João Batista de Castro Neto, foi denunciado neste ano pelo Ministério Público do Estado do Maranhão como mais um entre os possíveis mandantes no crime.
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