Artigo Patrícia Audi
Em seu relatório uma aliança global contra o trabalho forçado, divulgado em maio do ano passado em Brasília, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) reconheceu os grandes avanços obtidos pelo país no combate ao trabalho escravo. De fato, o Brasil aparece como uma referência mundial, onde a combinação de mobilização de atores sociais engajados no combate a esse crime e políticas públicas adequadas conseguiu resultados positivos. Durante mais de dez anos de atuação do grupo móvel de fiscalização, aproximadamente 20 mil brasileiros foram libertados. O 13 de Maio permite novas reflexões sobre a escravidão contemporânea.
Nesse sentido, não podemos deixar de destacar que houve avanços: as ações civis públicas confirmadas pela Justiça do Trabalho obrigam o pagamento de valores consideráveis por esses falsos empresários que se utilizam da vulnerabilidade de pessoas humildes para explorá-los de maneira inaceitável no Brasil do século XXI. O "Pacto Nacional contra o Trabalho Escravo", assinado por mais de 70 empresas nacionais e multinacionais, que se comprometeram a não adquirir produtos oriundos dessa cadeia escravagista também representa um importante constrangimento econômico-financeiro às empresas identificadas pela "lista suja", divulgada a cada seis meses pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
Apesar da posição de vanguarda do país na repressão a esta grave violação dos
direitos humanos, ainda há muito por fazer para que a prática do trabalho escravo seja erradicada do território brasileiro. Como a própria OIT destaca em seu relatório, a impunidade daqueles que insistem em manter trabalhadores sem liberdade e em condições absolutas de degradação humana contribui fortemente para que o objetivo de extinguir esta chaga não seja alcançado.
O Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, lançado pelo presidente
Lula em 11 de março de 2003, precisa ser integralmente implementado. A completa execução de uma de suas metas, por exemplo, poderia se tornar um marco nessa luta.
Diz o texto da meta 52: "Concretizar a solução amistosa proposta pelo governo
brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA para o pagamento de indenização da vítima de trabalho escravo José Pereira, da Fazenda Espírito Santo S/A." O caso: em setembro de 1989, com 17 anos, Zé Pereira tentou fugir da fazenda onde vivia sem liberdade, sofria maus-tratos e era constantemente ameaçado. Foi recapturado e baleado na cabeça. Seu companheiro de fuga morreu na hora. Ele só sobreviveu porque se fingiu de morto. O caso foi denunciado à Organização dos Estados Americanos (OEA) pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Pela primeira vez em sua história, o Brasil reconheceu perante uma corte internacional que houve falhas na apuração dos fatos e firmou um acordo garantindo que cumpriria uma série de compromissos estabelecidos no acordo.
Há duas semanas, o relatório anual da Comissão de Direitos Humanos da OEA à Corte Interamericana de Direitos Humanos descreveu o acompanhamento do caso: o acordo foi totalmente cumprido em relação ao reconhecimento da responsabilidade pelo Estado e à reparação pecuniária (José Pereira recebeu em 2004 uma indenização no valor de R$ 52 mil). Em relação ao julgamento e punição dos responsáveis, o relatório aponta que não houve qualquer esforço do Estado para o cumprimento dos mandatos de prisão. Entretanto, entre os vários pontos identificados como não cumpridos, dois comprometem de maneira substantiva a possibilidade de erradicação do trabalho escravo no Brasil. As primeiras medidas que deveriam ter sido tomadas dizem respeito à adoção de modificações legislativas que garantam o fim da impunidade. Entre elas,
uma das metas do plano, a já conhecida PEC 438 que prevê a expropriação de terras onde forem encontrados trabalhadores em regime de escravidão. A proposta, já aprovada em primeiro turno, ainda se arrasta na Câmara dos Deputados onde inúmeros acordos políticos foram rompidos, sob forte resistência da bancada ruralista.
O segundo aponta um desinteresse do Estado em defender a competência da Justiça Federal para responsabilizar os criminosos, julgá-los e, dessa forma, aplicar as sanções previstas no Código Penal. Um recurso extraordinário que aguarda decisão há mais de um ano no Supremo Tribunal Federal poderia resolver a questão. Enquanto isso, denúncias deixam de ser apresentadas e os criminosos permanecem livres e impunes. Especialistas da própria OIT, em seu relatório global, mostraram que a federalização deste tipo de crime seria um grande passo para a solução do problema.
Patrícia Audi é coordenadora do Projeto de Combate ao Trabalho Escravo da OIT no Brasil