Violência e desigualdade social: o tamanho do problema

Em dois anos, 500 mil brasileiros deverão estar atrás das grades. Mantendo-se a tendência atual, seria preciso construir um novo presídio a cada 15 dias. Ao mesmo tempo, Brasil possui a segunda maior frota de helicópteros do mundo. Aonde isso vai dar?
Marco Aurélio Weissheimer
 28/05/2006

A explosão de violência que se abateu sobre São Paulo, em maio, e que, com intensidades variadas, faz parte do cotidiano de centenas de cidades brasileiras, por si só é suficiente para mostrar que estamos todos sentados sobre uma bomba-relógio. Não é o caso de falar de uma bomba-relógio prestes a explodir, pois ela vem explodindo e se retro-alimentando sucessivamente. Tampouco parece ser o caso de resumir o problema à ausência de políticas públicas na área da segurança ou à falta de recursos. Há algo mais profundo que parece ter se rompido, deixando a sociedade brasileira flutuando sobre um caldo de cultura de desagregação e de anomia. O crescimento da desigualdade social nas últimas décadas e a escandalosa concentração de renda no país compõem um cenário de profunda violência institucional e não-institucional. O convívio da opulência e do luxo, de um lado, e da miséria, de outro, já fez acender o sinal vermelho há um bom tempo. Mas permanecemos, em boa medida, cegos, surdos e mudos.

É verdade que não basta afirmar a existência da desigualdade social para equacionar o problema da violência. Há diversas faces desse problema que exigem medidas de curto prazo, que não podem esperar pela diminuição consistente dos níveis de desigualdade, o que só ocorrerá no longo prazo. Mas, mesmo os problemas imediatos, como a falência do sistema penitenciário brasileiro, só podem ser entendidos em toda a sua extensão, se considerarmos o que ocorre também fora das prisões. Segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibcecrim), de São Paulo, em dois anos, meio milhão de brasileiros estarão atrás das grades. Hoje esse número é de aproximadamente 340 mil. De acordo com essa tendência, e conforme as normas de organizações internacionais de direitos humanos que sugerem um máximo de 500 pessoas por presídio, seria necessário construir um novo presídio a cada 15 dias.

BRASIL: UMA PRODUTIVA FÁBRICA DE PRESOS

Somente as cadeias de São Paulo recebem, em média, 800 presos por mês. A falta de perspectivas dentro e fora das prisões e a fragilidade dramática das políticas de reintegração fazem com que o índice de reincidência e retorno às prisões seja muito alto. Assim, além do fluxo contínuo de novos encarcerados, as próprias prisões funcionam como alimentadores do fluxo criminal. No Rio de Janeiro, segundo estimativa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, pelo menos 70% da população carcerária tem envolvimento com o tráfico. Não há dados oficiais, mas o índice de reincidência no Rio de Janeiro pode atingir a casa dos 80%. Ou seja, em resumo, temos uma combinação macabra de ausência de recursos para a construção de novos presídios e para o desafogamento dos atuais convivendo com uma fábrica que não cessa de produzir novos detentos.

Uma carta da juíza Sonáli Zluhan, publicada no jornal Zero Hora (coluna do jornalista Paulo Santana, em 27.05.2006), ilustra esse quadro: “Sou juíza em Caxias do Sul, na Vara de Execuções Criminais. Aqui o presídio se chama INDUSTRIAL, no entanto os presos não têm trabalho. As vagas oferecidas são 296 e atualmente a lotação é de 750 presos. Cada cela para quatro pessoas tem mais de 12. O albergue, que abriga os presos do regime aberto e semi-aberto, com serviço externo, com 95 lugares, tem mais de 200. Eles têm dormido sentados, na laje (em Caxias faz muito frio) ou em cima das mesas e no chão. Não existem colchões para todos, apesar de já terem sido solicitados para a Susepe (Superintendência de Serviços Penitenciários do RS), mais de uma vez. Somente após eu haver interditado o presídio por duas vezes é que se iniciou a obra do novo presídio, com 450 vagas. E, apesar de a obra já haver começado há mais de ano, não tem previsão para terminar”.

GUERRA CIVIL: EXAGERO?

A juíza Zluhan prossegue seu relato: “Os presos não têm qualquer assistência médica ou odontológica, dependemos do serviço de voluntários que, esporadicamente, aparece. Temos presos com Aids, tuberculosos, com câncer, e estes recebem remédios graças à Pastoral Carcerária, que arrecada fundos para medicamentos”. Essa é a realidade comum à esmagadora maioria dos presídios brasileiros. E o que a sociedade tem a ver com isso? Tudo, obviamente. Mais do que pode parecer à primeira vista. Por ocasião da recente onda de violência em São Paulo, multiplicaram-se sentimentos favoráveis à pena de morte, à execução de criminosos sem qualquer tipo de procedimento legal e ao abandono da população carcerária a sua própria sorte. Em um certo sentido, esses sentimentos já viraram realidade, pois convivemos diariamente com todas essas práticas.

Em seu livro “Guerra Civil – Estado e Trauma” (Geração Editorial), Luís Mir, escreve: “O Estado brasileiro optou pela guerra civil, uma guerra dolorosa que empilha cadáveres com frieza nazista e fúria primitiva. As vítimas desta guerra são os pobres, que vivem em permanente estado de tensão e terror. As mortes desta guerra chegam a 150 mil por ano e elas custam, para o Estado, metade do que o país gasta com saúde”. O problema é que a quase totalidade dessas mortes não tem qualquer repercussão na mídia. Ninguém fica sabendo nada sobre elas. O nome das vítimas, o que faziam, o que suas famílias (aqueles que ainda tinham) sentiram e sofreram, quais foram os projetos de vida interrompidos: todas essas informações cairão para sempre no esquecimento; todas essas histórias de vida, é como se nunca tivessem existido.

ALGUNS NÚMEROS INCÔMODOS

Se não for por outra razão, pode-se argumentar, em relação a esses sentimentos e posições a favor da pena de morte e do extermínio, que, do ponto de vista de sua eficácia, eles são absolutamente insuficientes e pífios. Seus defensores pregam tais práticas como solução para o problema da criminalidade. Mas estariam dispostos a assumir as conseqüências de tais posições? Estariam dispostos a apoiar uma matança generalizada de todos os criminosos e presidiários do país? E de todos os futuros violadores da lei? Em que isso resultaria mesmo para a sociedade? A defesa dessas teses equivale a declarar uma guerra contra milhares de pessoas, a esmagadora maioria delas oriunda dos extratos mais pobres da população. Afinal de contas, quem superlota os presídios brasileiros? E quem declararia essa guerra? O Estado brasileiro? Este Estado que tem uma dívida histórica para com seu povo e para com o que estabelece a Constituição do país? Lembremos alguns dados básicos sobre essa realidade.

No Brasil, os 10% mais ricos da população são donos de 46% do tot
al da renda nacional, enquanto os 50% mais pobres – ou seja, 87 milhões de pessoas – ficam com apenas 13,3%. Somos 14,6 milhões de analfabetos, e pelo menos 30 milhões de analfabetos funcionais. Da população de 7 a 14 anos que freqüenta a escola, menos de 70% concluem o ensino fundamental. Na faixa de 18 a 25 anos, apenas 22% terminam o ensino médio. Os negros são 47,3% da população brasileira, mas correspondem a 66% do total de pobres. O rendimento das mulheres é 60% do rendimento dos homens no mesmo posto de trabalho. No Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), enquanto o Distrito Federal apresentou um PIB per capita de R$ 16.920 em 2003, o Estado do Maranhão ficou com apenas R$ 2.354 anuais por pessoa. Esses números são mais do que suficientes para indicar o gigantesco desafio que o país enfrenta para dar conta dos problemas da violência, da segregação e da desigualdade social.

HELICÓPTEROS: CÉU DE BRIGADEIRO?

A tendência histórica de concentração de renda e de propriedade no Brasil é um dos principais obstáculos a serem enfrentados. Países com renda per capita similar à brasileira têm 10% de pobres em sua população, enquanto nós estamos na casa dos 30%. Segundo dados oficiais, cerca de 55 milhões de brasileiros vivem em situação de pobreza. Destes, cerca de 22 milhões em um quadro de indigência. Ao mesmo tempo em que milhões de brasileiros enfrentam diariamente o drama da fome, o Brasil possui a segunda maior frota de aviões e helicópteros particulares do mundo. E São Paulo, que ganhou indesejáveis manchetes mundiais no mês de maio por causa da violência, abriga a segunda maior frota de helicópteros do mundo, perdendo apenas para Nova York. Segundo dados da Associação Brasileira de Helicópteros, a frota paulistana já tem mais de 330 aparelhos.

A causa da violência não é, obviamente, esse honroso lugar no ranking da frota de helicópteros. Esse índice é, na verdade, um sintoma. Um sintoma de uma doença que afeta a sociedade brasileira como um todo. É mais cômodo fazer de conta de que isso é um problema do governo de plantão e colocar-se na posição de vítimas a defender a pena de morte contra os “homens de má vida” que não souberam aproveitar as oportunidades quando estas apareceram. Mas, na verdade, o comodismo aqui é apenas aparente. O resultado destas disparidades atravessa nossas vidas diariamente, quando saímos às ruas, quando vamos à padaria, ao banco ou ao supermercado. Mais do que atravessa, ele nos afronta, nos enfrenta e nos ameaça. Diante dessa ameaça, a maioria tende a reagir exigindo que o Estado elimine quem lhes ameaça. Mas talvez a questão não seja “quem” ameace, mas sim o “que” ameaça. Os números sobre a realidade do sistema carcerário brasileiro são suficientes para mostrar que não há nenhuma solução mágica no horizonte.

O POVO DO ABISMO. LEMBRANDO JACK LONDON

Os presos continuam sendo “fabricados” diariamente em um escala que o Estado não tem capacidade financeira para dar conta. O que fazer, então? A solução é passar fogo na bandidagem, bradam muitos brasileiros. É mesmo? E de que bandidos estamos falando? Aqueles que moram na periferia, que acabam engrossando as fileiras do tráfico? E os que, por uma sorte na vida, andam de helicóptero e infringem a lei, também devem ser executados com um tiro na cabeça? E os policiais que, por uma série de razões, acabam se envolvendo com o crime, também merecem o mesmo destino? E os governantes que são cúmplices ou omissos diante desse quadro também devem ser executados? E que tal os eleitores desses governantes também merecerem responsabilização? Quem vai dar o primeiro tiro?

No início do século XX, o escritor norte-americano Jack London escreveu uma série de artigos sobre os miseráveis e desempregados que habitavam o East End londrino. Esses artigos resultaram em um livro, intitulado “O povo do abismo”, publicado no Brasil pela Fundação Perseu Abramo. Na abertura da edição brasileira, algumas dezenas de palavras de London nos lançam uma advertência. A prudência recomenda, ao menos, sua leitura:

“Os rejeitados e os inúteis! Os miseráveis, os humilhados, os esquecidos, todos morrendo no matadouro social. Os frutos da prostituição – prostituição de homens e mulheres e crianças, de carne e osso, e fulgor de espírito; enfim, os frutos da prostituição do trabalho. Se isso é o melhor que a civilização pode fazer pelos humanos, então nos dêem a selvageria nua e crua. Bem melhor ser um povo das vastidões e do deserto, das tocas e cavernas, do que ser um povo da máquina e do Abismo”.

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