Recife – Quem primeiro denunciou a existência de um lobby envolvendo as questões do projeto de transposição do rio São Francisco foi João Abner Guimarães Jr., especialista em recursos hídricos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Segundo ele, a falta de isenção do governo federal em relação à transposição do São Francisco revelou a existência de uma decisão política tomada nessa direção, a qual facilitou a atuação de um poderoso esquema infiltrado na máquina do Estado defendendo a manutenção da velha política de grandes obras hidráulicas para o Nordeste, a verdadeira "indústria da seca" na região. Para Abner, a proposta absurda de se transpor as águas do Velho Chico, conforme idealizada pelo governo federal, transformou o projeto, anteriormente já considerado inviável, num dos maiores “elefantes brancos” da história do Brasil. Principalmente quando se constata que os estados receptores possuem reservas hídricas mais do que suficientes para abastecer as demandas de consumo de suas populações.
Posteriormente às análises de João Abner, o jornalista da USP Marco Antônio Coelho, ao escrever o livro “Os Descaminhos do São Francisco”, além de confirmar a existência do lobby, nominou seus personagens, detalhando suas formas de atuação. Segundo consta na obra de Coelho, o lobby se desdobra em três frentes, com pessoal qualificado para o exercício de funções bem definidas. Segundo ele, em primeiro lugar, se estabelece uma assessoria técnica para redigir estudos, pareceres e discursos, e também participar de reuniões e encontros técnicos sobre o tema. Tais assessores já vêm atuando há muitos anos, com o apoio do Ministério da Integração Nacional que contrata empresas de consultoria para realizar ou intermediar estudos, como é o caso da Fundação de Ciência, Aplicações e Tecnologia Espaciais, a Funcate. Entre as empresas que elaboram pareceres, quase sempre estão a VBA Consultores e os consórcios internacionais Engecorps-Harza e Jaako Pöyry-Tahal.
Em segundo lugar, o lobby conta com pessoas dedicadas ao “corpo-a-corpo” nos bastidores da administração federal e no Congresso Nacional. Nesse aspecto, desempenharam funções relevantes alguns políticos que se comprometeram com a realização do projeto, como foi o caso de Aluízio Alves (ex-ministro recentemente falecido), Fernando Bezerra, senador pelo Rio Grande do Norte e Marcondes Gadelha, deputado federal pela Paraíba.
Em terceiro lugar, nas fileiras do lobby existem pessoas que militam nos meios de comunicação, colocando artigos na imprensa, sugerindo pautas e aliciando jornalistas para trabalharem em favor do projeto da transposição.
Ações concretas do lobby foram postas em prática desde a época de Mário Andreazza, em 1983, quando este disputava a sua indicação como candidato à Presidência da República. Andreazza defendia um projeto que sugeria desviar 15% da vazão do São Francisco para o Jaguaribe. Com a sua derrota para Paulo Maluf, na convenção da Arena, o projeto não prosperou. Dez anos depois, em 1993, no governo de Itamar Franco, Aluízio Alves, então ministro da Integração Nacional reabriu a discussão propondo a construção de um canal em Cabrobó (PE), para retirar do rio São Francisco 150 m³/s, com o propósito de beneficiar áreas do Ceará e Rio Grande do Norte. Essa versão do projeto foi aniquilada por um parecer do Tribunal de Contas da União mostrando que o mesmo não fazia parte do planejamento da administração federal e era ignorado pelo Ministério da Agricultura.
Nova ofensiva do lobby se deu no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, com os paraibanos Fernando Catão e Cícero Lucena, quando ocuparam sucessivamente a Secretaria Especial de Políticas Regionais. Eles redesenharam o projeto de Aluízio Alves e nele incluíram mais um eixo transpositório – o Leste – para beneficiar áreas da Paraíba. Contudo, como estava prevista a sua realização num prazo de 25 a 30 anos e seu custo seria de 20 bilhões de reais, esse plano mirabolante foi engavetado.
Outro capítulo desse seriado, segundo consta na obra de Coelho, aconteceu em 2000, portanto no início do segundo mandato de FHC, através de proposta defendida pelo ex-ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra, e apresentada formalmente pelo titular da pasta, o senador Ney Suassuna. Em 2002, mesmo tratando-se de um projeto de menores dimensões, pois se previa a retirada de 99 m³/s do rio, o ministro do Meio Ambiente, José Carlos Carvalho, convenceu o presidente FHC a mandar arquivar o projeto por considerá-lo um equívoco monumental.
Na era Lula, Coelho menciona a controvertida proposta do governo federal, que veio a se chocar de frente com o pensamento dos especialistas do Partido dos Trabalhadores – que entendiam, de princípio, “ser inviável o apoio ao projeto do governo federal de transposição das águas do rio São Francisco para o Semi-árido do Nordeste Setentrional” – e dos ambientalistas, que sempre se mostraram contrários à transposição das águas do Velho Chico.
Sob a responsabilidade do então ministro Ciro Gomes e diante da existência de novos fatos marcantes da vida nacional, a condução do projeto se deu em um quadro político diferente daquele que prevalecia no governo FHC. Referimo-nos à ampliação da consciência nacional a respeito das questões ambientais, a aprovação e aplicação de alguns textos legais que instituíram a Política Nacional de Recursos Hídricos, o desenvolvimento de inúmeras atividades empresariais que utilizam o agronegócio com fins desenvolvimentistas, a multiplicação de iniciativas sociais em defesa da vida do rio São Francisco e a organização do Comitê da sua bacia hidrográfica.
Em razão desse aparato de fatores, o lobby viu-se diante de uma situação que o obrigou a fazer algumas mudanças em sua política de atuação, com o propósito de tentar diminuir as pressões impostas ao projeto defendido por Ciro Gomes, e sua principal concessão recaiu na tese da revitalização da bacia do São Francisco. Esse adendo, segundo Coelho, foi introduzido no corpo do projeto como mero penduricalho, associado a uma enorme desproporção orçamentária quando comparado ao projeto inicial. Enquanto para o projeto de transposição destinou-se cerca de um bilhão de reais, para o projeto da revitalização apenas 100 milhões. Dez vezes menos.
O fato concreto é que, desde a era Andreazza, o governo tenta corrigir os erros e abusos evidentes no projeto, afirmando estar levando em conta “críticas pertinentes”, quando, na realidade, a concepção e os fundamentos do projeto nunca foram alterados: continuou-se a sua defesa com o traçado original dos canais (eixo Norte e
agora o eixo Leste), permaneceu o uso múltiplo das águas do rio, em sua maior parte para o agronegócio, não se levou em consideração a realidade hídrica do Nordeste – principalmente o potencial instalado nas principais represas da região – e o custo faraônico da obra.
Por fim, é notória nesse relato, a prevalência da vontade política sobre as possibilidades técnicas de se realizarem as ações desenvolvimentistas da região (fato com o qual não concordamos). Cremos que ainda há tempo de se conduzir uma política de abastecimento do povo nordestino que leve em conta, principalmente, a capacidade técnica e a realidade hídrica existentes.
João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.