Artigo – Transposição do São Francisco: um projeto desnecessário

Projeto apresentado pelo governo federal desconsidera potencial hídrico da região, que poderia ser melhor distribuído, e ignora volume de água do Velho Chico utilizado na geração de energia elétrica
Por João Suassuna
 29/06/2006
Pescador lança rede de tarrafa na foz do São Francisco (Foto: Leonardo Sakamoto)

Recife – Em maio deste ano, publicamos o artigo Caneco de ouro, onde falamos sobre as potencialidades hídricas do Semi-árido brasileiro para o abastecimento da população. Lá demonstramos que o projeto de transposição do rio São Francisco, da forma como foi apresentado pelo governo federal, era desnecessário. Explicamos que a água no Semi-árido existe, e até de forma abundante. Falta, apenas, uma política adequada de distribuição desse recurso natural.

No texto, comparamos o grande potencial volumétrico existente nos estados que seriam beneficiados pela transposição (estimado em cerca de 37 bilhões de m³) ao volume pretendido pelo projeto, de cerca de 400 milhões de m³/ano. Concluímos que esse volume representa apenas cerca de 1% desse potencial. Também comparamos os 400 milhões de m³/ano ao potencial volumétrico, de cerca de 11,48 bilhões de m³, da rede dos principais açudes do Nordeste setentrional que será abastecida pelo projeto de transposição, concluindo que esse volume equivale a aproximadamente 3,5% desse potencial.

O artigo mostrou, ainda, que a transposição teria um custo/benefício desprezível, se considerado o número reduzido de pessoas a serem beneficiadas. Além disso, o projeto é desnecessário, por que desconsidera a existência do expressivo volume d'água local, que poderia atender às necessidades de toda população. O que seria mais viável tratando técnica e economicamente a questão: estabelecer uma política coerente de uso das águas que já existem, ou transpor as águas do São Francisco de cerca de 500km do local do consumo? Na nossa ótica, a primeira alternativa é mais sensata.

Em nossos estudos, mantivemos contato com o Coordenador Nacional da Comissão Pastoral da Terra – CPT, Roberto Malvezzi, o "Gogó", que estava interessado em estudar o regime de enchimento da represa de Sobradinho, responsável pela regularização da vazão média do Velho Chico. Ele se preparava para um debate com o ex-ministro da Integração, Ciro Gomes, sobre o projeto de transposição.

Diante das informações que lhe prestamos, Gogó fez uma observação muito interessante sobre os volumes do rio São Francisco que já estão sendo repassados ao Nordeste setentrional – aqueles volumes utilizados pelas usinas geradoras no complexo da Chesf e transferidos aos seus usuários em forma de energia elétrica. Segundo suas ponderações, a Chesf é usuária de uma vazão outorgada, no São Francisco, da ordem de 1.500 m³/s, suficiente para gerar grande parte da energia elétrica nordestina. Cerca um terço disso é utilizado na geração de energia para a região setentrional. Esses 500 m³/s, segundo Gogó, equivalem ao fornecimento médio de 750 m³/pessoa/ano, considerando o contingente populacional da região semi-árida. O volume expressivo, se comparado ao discurso de que a região está desabastecida e, portanto, necessitada das águas do rio São Francisco para a promoção de desenvolvimento.

Com esses números, Gogó mostrou que, apesar de o rio dar sinais de debilidade hídrica, já se transferem volumes significativos para a população setentrional do Nordeste, embora seja na forma de energia elétrica. O coordenador da CPT ressalta, por outro lado, que o único raciocínio das autoridades encarregadas do projeto se materializa no aproveitamento das águas do rio São Francisco que, segundo elas, estão se "perdendo" para o mar.

É hora de se fazer uma análise correta e tomar medidas com bom senso, incluindo aí o uso das águas que já existem na região. Porém, essa atitude é difícil de ser compreendida e concretizada pela elite dirigente do país, que vê a lâmpada e o interruptor, mas não consegue estabelecer a conexão entres ambos.

A visão de "perda" de água para o mar é por demais simplista e revela total desconhecimento quando do tratamento da coisa pública, principalmente quando se trata do ambiente natural nordestino. As águas dos rios não se "perdem", pura e simplesmente, para o mar. Elas têm a função de possibilitar a existência da vida nos seus estuários, e de promover a manutenção do equilíbrio ecológico tão necessário ao meio ambiente.

João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina

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