Os 7,5 mil detentos do Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília, ganharam a companhia temporária de cerca de 500 pessoas nesta quarta-feira (07). São os militantes do Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST) presos pelo ato público realizado na véspera na Câmara dos Deputados, que terminou em confronto com seguranças e depredações. Os manifestantes haviam passado a madrugada em desconfortáveis assentos no maior ginásio da capital. Depois de serem identificados pela polícia e prestarem depoimento, foram autuados por dano ao patrimônio público, formação de quadrilha e corrupção de menores – houve ainda três autuações por tentativa de homicídio. Durante o dia, a situação do grupo complicou-se com o surgimento de uma fita de vídeo gravada pelos próprios sem-terra. Apreendida pela polícia, ela mostra que a ocupação da Câmara foi planejada em detalhes, quase como uma operação militar, embora não se veja a defesa do uso da violência ao longo dos 80 minutos de filmagens.
A premeditação do ato, a hostilidade contra funcionários da Câmara, a agressividade de manifestantes e os prejuízos de quase R$ 150 mil ao patrimônio público dominaram as repercussões do ato e empurraram as reivindicações dos sem-terra para a clandestinidade. O presidente da Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB-SP), por exemplo, recusou-se a tomar conhecimento delas até que todos o sem-terra fossem para a cadeia. Passada a ressaca, no entanto, é possível observar entre as reivindicações do MLST pleitos legítimos que inexplicavelmente não avançam nem no governo, nem no Congresso.
Das sete reivindicações, duas destacam-se pela singeleza. A votação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001, que prevê a expropriação de fazendas onde houver trabalho escravo. E a atualização dos índices de produtividade usados para incluir uma propriedade rural na lista de terras passíveis de reforma agrária.
Como está hoje, a PEC do trabalho escravo tramita no Congresso há cinco anos. Mas o projeto original foi apresentado pelo senador Ademir Andrade ainda em 1995. Uma boa explicação, ao menos no terreno simbólico, para a paralisia pôde ser vista durante o ato do MLST. Quando os manifestantes adentraram a Câmara, por volta das 15 horas de terça-feira (06), a sessão do plenário estava sendo presidida pelo deputado Inocêncio Oliveira (PL-PE), primeiro-secretário. Por acaso, Inocêncio chegou a ser condenado em segunda instância pela Justiça do Trabalho por manter trabalhadores em regime escravo numa fazenda no Maranhão. Não seria nem preciso sublinhar que a Câmara – mais, a direção da Casa – abriga interesses poderosos contra a idéia. “Há uma resistência ideológica. A bancada ruralista é contra, o PFL é contra e uma parte do PSDB é contra”, diz o líder do Partido Socialista Brasileiro (PSB), deputado Renato Casagrande (ES).
No início do governo Lula, o Planalto empenhou-se pela aprovação da PEC. Já votada no Senado, foi aprovada em primeiro turno na Câmara em agosto de 2004, por 326 votos a 10. De lá para cá, no entanto, o governo fragilizou-se no Congresso, conviveu com CPIs e não teve mais força para enfrentar interesses de aliados pertencentes a partidos conservadores, como PTB, PL e PP. A fragilidade política do governo talvez responda à pergunta: por que repousa há um ano no Planalto a proposta de portaria que atualiza os índices de produtividade usados para definir propriedades que vão para reforma agrária?
Os índices são parâmetros para que se saiba se uma terra é produtiva ou não, e propriedade improdutiva vai à reforma agrária. Os atuais são obra da ditadura militar e têm quase 30 anos. Há duas semanas, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) marchou por Brasília, sem as mesmas conseqüências produzidas pela sua dissidência, o MLST, cobrando a oficialização dos novos índices. Com eles, espera mais assentamentos e impulso à reforma agrária.
“A bancada de deputados do PSol responsabiliza as elites brasileiras e todos os seus governos, inclusive o atual, pela concentração fundiária e pela não realização da reforma agrária, que produziu milhares de sem-terra mortos no campo, razão última de todas as manifestações de movimentos sociais camponeses”, diz nota do partido mais esquerda da cena política brasileira com representação no Congresso.
REPERCUSSÃO
A Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), também distribuiu nota à imprensa com interpretação similar sobre os incidentes protagonizados pelo MLST. “O ato, por mais radical que tenha sido, mostra a insatisfação dos trabalhadores diante de um Congresso que (…) engaveta projetos de interesse dos camponeses e camponesas, como a PEC que expropria áreas onde há a prática do trabalho escravo (…)”.
Num dia de muitas notas sobre o episódio, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) “lamentou” e “repudiou” os “atos violentos cometidos contra a Câmara”. Para a entidade, foi uma agressão à democracia. Politicamente, no entanto, a nota mais importante saiu do PT. O partido puniu Bruno Maranhão, tido como principal líder do MLST. Ele foi afastado da Comissão Executiva Nacional do PT e da Secretaria Nacional de Movimentos Populares. Agora, responderá a uma comissão de ética e pode até ser expulso.
Entre os petistas, já há que defenda a expulsão. “O que aconteceu é inaceitável, é bandidagem. Tem que expulsar esse cara”, afirmou o deputado Carlito Merss (PT-SC), perplexo com o que vira na terça-feira (6). O parlamentar foi expectador privilegiado da invasão da Câmara. Recebia o prefeito de São Bento do Sul (SC), Fernando Mallon (PMDB), quando teve a atenção desviada por gritos e estrondos. Da janela de seu gabinete no primeiro andar do anexo III da Câmara, avistou a confusão na portaria do anexo II, distante cerca de 30 metros.
“Eles desceram do ônibus. A segurança queria identificá-los, como acontece com todo mundo, mas eles não aceitaram e foram para cima, para entrar de qualquer jeito. Vi gente arrancar pedaço de árvore para atacar”, contou Merss. Os sem-terra contestam. Dizem ter sido recebidos à força pela segurança, que além do disso teria sido incompetente. “A gente chegou e encontrou manifestações de gente do judiciário, alunos e agentes de saúde. A segurança não foi capaz de se organizar e não quis deixar a gente entrar”, afirmou Valmir Macedo, 37 anos, auto-intitulado um dos líderes do MLST.
Sob custódia da polícia, Bruno Maranhão defendeu-se da acusação de que a violência foi p
remeditada. Segundo ele, houve um “estouro da boiada”. Pelo que se viu na fita gravada pelos sem-terra, a “boiada” estava orientada sobre o que fazer para chegar ao Salão Verde e ocupar o local, principal alvo e palco do ato, espaço estrategicamente escolhido para simbolizar a pressão dos manifestantes sobre os parlamentares presentes no Plenário. Uma espécie de grupo de elite do MLST recebeu orientações sobre como proceder para desobstruir portas de acesso à Câmara e até a enfrentar seguranças que não seriam “malucos” de atirar, mesmo que armados. A fita vai complicar a situação das 12 pessoas, entre elas Bruno Maranhão, apontadas pela polícia como líderes do ato. Será incluído no inquérito contra o grupo.