Demonização do “subsídio” ameaça política urbana

Entidades da sociedade civil e movimentos sociais levam questões relacionadas às cidades brasileiras ao Fórum Urbano Mundial, que começa dia 19, no Canadá. Entre elas, o problema do controle neoliberal do investimento público, que prejudica as políticas urbanas, e os entraves para construir moradias populares
Fernanda Sucupira
 14/06/2006

Os impactos negativos das políticas neoliberais sobre as cidades brasileiras, em áreas como habitação, infra-estrutura e serviços urbanos; as dificuldades de utilização da terra urbana para moradia de interesse social; o papel fundamental de movimentos sociais e entidades da sociedade civil em relação aos problemas urbanos. Essas são algumas das principais questões que serão levadas pela delegação brasileira ao terceiro Fórum Urbano Mundial, que vai ocorrer de 19 a 23 de junho, em Vancouver, no Canadá. O encontro é organizado pelas Nações Unidas por conta da crescente urbanização mundial, especialmente nos países em desenvolvimento. Atualmente, metade da população mundial vive em cidades e estima-se que em cinqüenta anos esse índice chegue a dois terços do total.

O documento elaborado por diversos movimentos populares, entidades redes e fóruns da sociedade civil, universidades e especialistas no assunto denuncia que o controle de gastos por parte do setor público e a política de privatização dos serviços, ambos defendidos pelos neoliberais, têm sido bastante nocivos às cidades brasileiras. “A globalização destruiu, com uma trava essencialmente financeira, nossa capacidade de fazer políticas públicas, de planejar e de ter gestões eficazes. Precisamos reafirmar o papel do Estado e fazer com que o subsídio, palavra maldita para os neoliberais, volte a figurar nas nossas políticas públicas”, afirma Ermínia Maricato, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e ex-secretária-executiva no Ministério das Cidades, durante a gestão de Olívio Dutra na pasta.

Uma decisão recente do Conselho Monetário Nacional ilustra essa interferência prejudicial às políticas urbanas inclusivas. O órgão determinou que os recursos vindos de empréstimos só poderiam ser utilizados para serviços públicos com tarifa plena, tirando dos municípios a liberdade de fornecer subsídios. “Isso é inconstitucional porque fere o pacto federativo”, argumenta Ermínia.

Para Marcos Montenegro, da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades, diferentemente do que pregam os neoliberais, o endividamento do Estado é algo positivo porque significa que está ocorrendo investimento. “Sem crédito e, portanto, sem dívida, o desenvolvimento não aparece. O problema não é o endividamento nem o tamanho da dívida, mas o que é feito com o dinheiro e como ela está sendo contratada, ou seja, os juros e o tempo estipulado para pagar o financiamento. O setor público nunca pagou tantos juros da dívida pública quanto paga hoje e para enfrentar isso não tem superávit primário que dê conta”, diz.

Ao mesmo tempo, contrariando a cartilha neoliberal, há um aumento da carga tributária no país. Segundo Montenegro, as companhias de saneamento, por exemplo, pagam mais impostos do que nunca, o que tem um impacto significativo nas tarifas cobradas e, conseqüentemente, na capacidade de inclusão social dos serviços públicos. Ele narra ainda a árdua batalha dentro do governo federal para conseguir financiamento para o saneamento, com recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Esse processo sempre tumultuado gera incertezas sobre as ações das secretarias e prejudica a qualidade do investimento público, já que não é possível planejar as ações.

Montenegro afirma que, no ano passado, apenas R$ 75 bilhões do FGTS foram destinados a empréstimos nas áreas de habitação, saneamento e infraestrutura, enquanto outros R$ 49 bilhões foram aplicados em títulos da dívida pública. “Isso comprova a tese de que existe dinheiro sobrando, mas em vez de investir em habitação e financiamento, o Fundo começa a dar lucro. Só em 2005 foram 19 bilhões de reais”, conta.

MORADIA SOCIAL
Em relação ao grave problema de moradia nas cidades brasileiras, também seria necessário um fluxo permanente e contínuo de recursos para se conseguir uma política habitacional consistente, na opinião do professor da FAU-USP, Nabil Bonduki, ex-vereador petista durante a gestão da prefeita Marta Suplicy (PT) e relator do projeto de lei do Plano Diretor na cidade de São Paulo. “Mas a legislação brasileira restringe a vinculação de receita. Educação e saúde só se estruturaram porque tinham esse recurso constitucional. Não dá para num ano ter e em outro não ter ou ter de um jeito diferente porque, assim, fica a lógica de mercado na habitação”, avalia Bonduki.

Outra questão que será discutida pelos brasileiros no Fórum Urbano Mundial são as restrições ambientais, que dificultam a regularização e urbanização de favelas e a construção de moradia popular em Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) vazias ou sub-utilizadas, e, segundo os debatedores, não levam em conta a realidade dos grandes centros urbanos. A utilização dessas áreas depende de financiamento público, já que o mercado não atende a faixa de zero a três salários mínimos, em que está a maior parte da demanda. Segundo Rosana Denaldi, secretária de Desenvolvimento Urbano e Habitação da prefeitura de Santo André, que está passando pela experiência de aplicar o Plano Diretor da cidade, é necessário superar diversos entraves legais – como a burocracia e a falta de autonomia municipal – e as restrições a ocupações, como áreas contaminadas, inadequadas, com problemas fundiários ou de preservação ambiental.

“A Caixa Econômica Federal e o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] pedem licenciamento ambiental e é difícil depender de órgãos estaduais porque existe uma morosidade nesse processo e uma visão setorial, pois há uma falta de articulação da legislação urbana com a ambiental. Precisamos juntar esses dois mundos”, afirma a secretária de Santo André, referindo-se aos eternos conflitos entre ambientalistas e urbanistas.

Os freqüentes despejos da população de baixa renda nas grandes cidades brasileiras é um problema que também será levado a Vancouver. “Precisa ser discutido no Fórum como garantir a função social da propriedade”, afirma Raimundo Bonfim, da direção nacional da Central de Movimentos Populares (CMP).

AVANÇOS
Além dos problemas enfrentados em relação à política urbana, serão levados ao Fórum Urbano Mundial os avanços obtidos pela sociedade civil brasileira nessa área. Um deles diz respeito à aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, lei que institui instrumentos considerados fundamentais para a realização de uma reforma urbana e para promover a inclusão social e territorial nas cidades brasileiras. No entanto, o
estatuto ainda precisa ser implementado para que essas inovações se tornem realidade. Recebe destaque também a criação do Ministério das Cidades em 2003 e do Conselho das Cidades em 2004, além da realização das Conferências Nacionais das Cidades.

Outra conquista recente de movimentos sociais e entidades da sociedade civil no Brasil foi a aprovação do projeto de lei que criou o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), para articular as políticas da área de moradia nas três esferas da federação, e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), que reserva recursos para habitações voltadas à população de baixa renda. A lei, resultado de um projeto de iniciativa popular que tramitou no Congresso Nacional durante 13 anos, foi sancionada pelo presidente Lula em junho de 2005, mas essa vitória histórica da luta pela moradia popular não se concretizou totalmente até agora.

“Quando a gente sai do país, percebe que existe um respeito pela participação social brasileira, pelos movimentos populares. Temos no Brasil uma rede, que poderia ser muito mais forte, mas que reúne não só lideranças populares como também universidades, profissionais e ONGs. Conseguimos construir um patrimônio no país e a idéia é levar isso para frente, não permitir que seja desmontado”, afirma Ermínia Maricato.

Um exemplo de tal força da sociedade civil no país, segundo ela, é o movimento de resistência, que se formou dentro do aparelho de Estado no Brasil, de técnicos contra a privatização do saneamento, já que o mercado brasileiro é considerado pelas multinacionais dessa área o mais importante dos que ainda não foram dominados pela iniciativa privada. Eles formam o que Ermínia chama de “Partido do Saneamento”. “Há uma queda de braço entre ativistas do neoliberalismo e defensores do interesse público. Esses últimos conseguiram a liberação de recursos para a área de saneamento e dar uma orientação para a utilização dele que não é a do clientelismo nem do atraso, mas a partir de critérios claros. Na resistência à privatização do saneamento, o movimento social tem um papel fundamental”, avalia a professora da FAU-USP.

Apesar dessas conquistas e da organização popular no país, o presidente da Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam), Wander Geraldo, considera que a sociedade brasileira ainda é muito despolitizada. “O movimento popular organizado representa uma porcentagem muito pequena da população, que no geral ainda tem um nível de politização muito aquém de outros países. E a influência de nossas entidades também está muito aquém do desejado. Temos ainda um caminho longo a trilhar”, conclui.

Fernanda Sucupira é membro da ONG Repórter Brasil

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