Combate à violência

Portas abertas

Jovens das periferias brasileiras são as principais vítimas da violência. Para mudar esse quadro, uma iniciativa vem se alastrando pelo país: a abertura das escolas públicas aos sábados e domingos, com atividades esportivas, culturais e de lazer
Texto e fotos de André Campos
 03/06/2006

Internacionalmente conhecido como terra de gente alegre, cordial e festiva, o Brasil esconde, por trás da máscara de carnaval, uma face muito menos amigável: a de uma sociedade que, nas últimas décadas, caminhou gradativamente para tornar-se uma das mais violentas do mundo. Segundo dados do Ministério da Saúde, somente entre 1980 e 2003 – período em que se registraram quase 750 mil homicídios no país – o risco de uma pessoa morrer assassinada teve um crescimento de 246%. Possuímos hoje a quarta maior taxa de homicídios num ranking que envolve outros 67 países onde existem levantamentos semelhantes. Perdemos apenas para Colômbia, El Salvador e Rússia.

Julio Jacobo, da Unesco, coordenou diversas pesquisas com jovens das periferias: "Quando perguntamos a eles o que faziam nos fins de semana, a resposta foi quase sempre a mesma: nada." (Foto: divulgação/Unesco do Brasil)

No final da década de 1990, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) iniciou uma série de estudos que colocaram uma lupa sobre essa realidade. Entre as informações sistematizadas, destacam-se:

• Os jovens representam a parcela social mais exposta à violência; são os que mais morrem e matam. Entre 1980 e 2002, aliás, o crescimento da taxa de homicídios deveu-se quase que exclusivamente ao aumento dos índices registrados entre pessoas de 15 a 24 anos. Nessa faixa etária, foi de 30 para 54,5 o número de vítimas anuais para cada 100 mil habitantes. No restante da população, essa proporção permaneceu praticamente estável – passando de 21,3 para 21,7.

• Os maiores índices de violência ligados à juventude concentram-se nas periferias das grandes cidades e, principalmente, nos finais de semana. Durante esse período, os assassinatos aumentam cerca de dois terços em relação aos dias úteis.

A esses dados somam-se outros, como, por exemplo, um perfil das vítimas de violência urbana operadas no Hospital da Restauração, a maior unidade de saúde pública do Recife, realizado em 2002. Em 82% dos casos, os agressores eram parentes, amigos, vizinhos ou conhecidos dos agredidos. Para o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, coordenador de diversas pesquisas da Unesco sobre juventude, estudos como esse mostram que, ao contrário do que prega o senso comum, a violência no Brasil não é predominantemente um produto da bandidagem, mas sim, em grande medida, resultado da banalização do hábito de resolver conflitos pela violência. "Crimes desse tipo são culturais", diz ele. "E transformar uma cultura é papel da educação."

Manhã de domingo no Jardim Cupecê, zona sul da capital paulista: escolas são, muitas vezes, os únicos equipamentos públicos existentes em bairros periféricos

Com essa premissa em vista, a Unesco lançou, em meados de 2000, o Programa Abrindo Espaços: Educação e Cultura para a Paz. A idéia é aparentemente simples: a abertura, nos finais de semana, das escolas públicas – não raro o único espaço público presente em diversas comunidades – para atividades de esporte, arte, cultura e lazer. A notória falta de opções culturais e de diversão nas periferias dos grandes centros urbanos foi um dos fatores que levaram à consolidação da proposta. "Quando perguntamos a esses jovens o que faziam nos fins de semana, a resposta foi quase sempre a mesma: nada", revela Julio Jacobo.

A princípio, foram dois projetos piloto – no Rio de Janeiro e em Pernambuco -, responsáveis pela abertura de 141 escolas. Quase seis anos depois, iniciativas baseadas no Programa Abrindo Espaços já chegaram a 13 estados brasileiros, por meio de parcerias estabelecidas com as três esferas do Poder Executivo e com administrações de uma ampla gama de partidos. Segundo dados da Unesco, do Ministério da Educação (MEC) e de secretarias estaduais e municipais de Educação, tais projetos abarcam atualmente cerca de 7.850 escolas, que recebem, pelo menos, 12,8 milhões de participantes por mês. São números que colocam o Abrindo Espaços e seus parceiros como integrantes de uma das maiores iniciativas de educação e inclusão social em andamento no Brasil.

Segundo Marlova Noleto, coordenadora da área de Desenvolvimento Social e Projetos Transdisciplinares da Unesco, o Programa Abrindo Espaços ganhou mais importância por ter surgido num período em que praticamente não existiam políticas públicas para os jovens brasileiros. "Nosso objetivo é que a proposta se universalize em todos os estados do Brasil", conta ela.

Escola paulista pichada em seu interior: segundo a Secretaria Estadual de Educação, abertura nos fins de semana contribuiu para diminuição de 30% em ocorrências do tipo

Em outubro de 2004, o governo federal comprou a idéia do Abrindo Espaços e lançou o Programa Escola Aberta, que abrange cerca de 1,3 mil escolas, em oito estados brasileiros. "É um projeto barato. Cada usuário custa entre R$ 0,40 e R$ 6, dependendo da atividade de que participa", ressalta Natália Duarte, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secad-MEC) e coordenadora do programa.

Novas parcerias para a expansão do Escola Aberta já a partir deste ano estão sendo discutidas. Uma delas, com a Petrobras, inclui 7,4 mil novas escolas e, caso implantada, estenderá o programa para todas as capitais brasileiras e praticamente dobrará o número de unidades escolares hoje vinculadas a projetos do gênero no país.

Como funciona
Futebol, capoeira, aulas de inglês, oficinas de teatro – esses são apenas alguns exemplos das atividades que ocorrem dentro das escolas participantes. Além de criar espaços de atuação para os jovens, o projeto busca contribuir para uma mudança na cultura nacional de se resolver conflitos pela violência. Para tanto, é necessário que as pessoas envolvidas – o mestre de capoeira, o professor de informática, etc. – estejam capacitadas para lidar com desavenças.

De acordo com a filosofia do Abrindo Espaços, não deve haver uma definição rígida quanto ao que será feito em cada escola. É preciso levar em conta os anseios dos jovens e dos moradores de cada bairro na hora de formular a programaç&at
ilde;o e, além disso, organizar atividades voltadas não só para a juventude, mas para todas as idades. Com isso pretende-se que a escola se torne um amplo centro social da comunidade, fortalecendo os laços entre seus membros.

Oficina de informática na Escola Estadual Profa. Eulália Silva, em São Paulo. Objetivo é trazer não só os jovens, mas toda a comunidade para dentro da escola

A participação de voluntários é um dos principais pilares para a viabilização do programa. Gente como, por exemplo, um mecânico, pai de aluno disposto a montar uma oficina sobre conserto de carros, ou um professor que saiba tocar violão e decida ensinar noções do instrumento. Em Pernambuco, para se ter uma idéia, são mais de 3 mil voluntários atuando no Projeto Escola Aberta – nome da iniciativa baseada no Abrindo Espaços mantida pelo governo daquele estado. Segundo a sua coordenação, isso faz dele a maior iniciativa com participação de voluntariado em Pernambuco.

Em outras regiões, há também projetos em que universitários recebem bolsas de estudo para desenvolver oficinas e outras atividades dentro das escolas nos fins de semana. Um exemplo é o Programa Escola da Família, criado pelo governo do estado de São Paulo em parceria com a Unesco. Atualmente, ele abarca cerca de 40 mil alunos do ensino superior. O governo estadual paga metade da mensalidade desses estudantes, enquanto as faculdades conveniadas cobrem o restante.

Parcerias locais com organizações da sociedade civil e empresas públicas e privadas também desempenham um papel importante na execução de várias iniciativas vinculadas a projetos parceiros do Abrindo Espaços. O Programa Comunidade Digital, desenvolvido pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial de Mato Grosso do Sul (Senac-MS), é um exemplo disso. Por meio dele, cerca de 800 pessoas por ano recebem cursos de informática ministrados em 19 escolas de Campo Grande. "É uma oportunidade para o Senac chegar a diversas comunidades onde antes não estava, utilizando os laboratórios de informática das escolas, que ficavam ociosos nos fins de semana", afirma Ana Carina Mello, da Divisão de Educação Profissional do Senac-MS e coordenadora do projeto.

Diminuição da violência
Uma das explicações para a rápida expansão de iniciativas baseadas no Abrindo Espaços são os resultados positivos que pesquisas apontam nos locais onde elas foram implementadas. Em Pernambuco e no Rio de Janeiro, por exemplo, a Unesco realizou um estudo comparativo entre escolas participantes e não-participantes do programa, dois anos após seu lançamento. Os resultados indicaram, dentro das próprias escolas, uma diminuição significativa da violência naquelas que abriam aos sábados e domingos – o registro de ocorrências como brigas, vandalismo, indisciplina e porte de armas apresentou índices cerca de 15% menores. Isso apesar de, segundo a Unesco, elas terem sido escolhidas para integrar o programa justamente por apresentar maior situação de risco. Verificou-se ainda que, a cada ano de atuação do Abrindo Espaços, os registros de episódios violentos nas unidades inseridas diminuíram, em média, 30% em relação ao período anterior.

E como isso acontece? Em primeiro lugar, não é difícil imaginar o efeito psicológico de abrir a escola para garotos que antes pulavam o muro às escondidas para jogar futebol na quadra – e que agora podem entrar pelo portão da frente. "Quando a pessoa sente que o espaço pertence a ela, naturalmente vai querer preservá-lo", afirma Tânia Escaler, diretora da Escola Estadual Professora Eulália Silva, no Jardim Santa Margarida, bairro periférico da zona sul da cidade de São Paulo. A partir de agosto de 2003, quando o governo estadual criou o Programa Escola da Família, ela começou a abrir aos sábados e domingos com diversas atividades. Lá não há pichações nos muros nem rabiscos nos banheiros – que foram, aliás, pintados pelos próprios alunos.

"Desde que a escola abriu, não houve nenhuma briga aqui", diz Luis Carlos Santos, de 16 anos, estudante da oitava série na escola. Ele é participante do Programa SuperAção Jovem, um projeto implementado no âmbito do Escola da Família que propõe a convocação dos jovens para resolver problemas que afetam sua vida, a escola ou a comunidade em que estão inseridos.

O Escola da Família é, de longe, a maior iniciativa baseada no Programa Abrindo Espaços em desenvolvimento no país, sendo responsável pela abertura de 5.306 unidades escolares, em vários municípios do estado. Em 2006, a previsão é que R$ 211 milhões sejam aplicados no programa. Um investimento em prevenção da violência que representa menos da metade dos R$ 485 milhões que São Paulo pretende gastar neste ano com a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem) – braço do governo do estado para a recuperação de jovens infratores. Defensores do Escola da Família destacam que ele também apresenta a vantagem de possibilitar economia em reformas e manutenção. Somente no ano passado, a verba destinada a esse tipo de despesa nas escolas estaduais foi de aproximadamente R$ 172 milhões.

Pesquisas da Secretaria da Educação do estado de São Paulo indicam que houve uma significativa redução da violência escolar a partir da implantação do Escola da Família. A comparação entre dados de setembro de 2002 e março de 2003 – antes do início do programa – com os respectivos meses de 2004 e 2005 permite verificar uma queda de 81,3% nas ocorrências que envolvem porte de drogas, 46,5% nos casos de agressões físicas e 34,6% nas depredações. Para além dos muros escolares, uma análise complementar indica ainda diminuição de 36% nas ocorrências policiais registradas nas imediações das escolas.

Lenice Souza, voluntária do Programa Escola da Família: abertura possibilita novos espaços de contato entre pais e membros das escolas

A possibilidade de maior acompanhamento da vida acadêmica dos filhos, por meio de novos espaços de contato entre pais e membros da escola, é um dos benefícios da abertura dos estabelecimentos que educadores dizem estar associados a essa melhoria nos índices de violência. São situações como a de Lenice Souza, mãe de dois alunos na escola Eulália Silva, que, nos fins de semana, atua como voluntária do Escola da Família, dando cursos de panificação e culinária para a comunidade. "Se eles est&ati
lde;o enfrentando alguma dificuldade, venho aqui e não tenho problema em conversar com a direção e os professores", diz. Seus filhos são participantes habituais das oficinas ministradas aos sábados e domingos. "O círculo de amizade deles cresceu, pois interagem com outras crianças, de outras idades."

Além disso, a abertura das escolas também traz benefícios às atividades pedagógicas, ao permitir uma maior aproximação entre professores e estudantes, numa situação bem mais descontraída que a habitual. Segundo os defensores da proposta, isso aumenta o respeito mútuo e cria as bases para uma relação professor-aluno mais propícia ao aprendizado. "Eu, particularmente, já me sinto mais à vontade para conversar com os alunos em sala de aula, e mesmo para chamar a atenção quando preciso", diz Marilda de Souza, professora da Eulália Silva que, nos finais de semana, atua no Escola da Família. "Primeiro conquistamos para depois impor limites."

Justamente por isso, a integração do Escola da Família com as atividades dos dias de semana, através da ampla participação de diretores e professores aos sábados e domingos, é hoje um dos principais objetivos da Secretaria da Educação do estado de São Paulo. "O espaço do programa é um instrumento a ser utilizado pelo professor no seu projeto pedagógico", afirma Helena Sobreira, assessora jurídica do projeto.

Ainda há, no entanto, diversas escolas em que esse objetivo permanece distante, devido à falta de envolvimento com o programa entre os profissionais que atuam no cotidiano do estabelecimento. Isso se associa, em grande medida, a problemas estruturais do sistema público de ensino, como os baixos salários, que, não raro, obrigam os professores a ter jornada dupla ou tripla de trabalho. "No ano passado houve uma intensa participação de professores. A diretora e eu fizemos uma grande campanha para isso", afirma Osmar Gonçalves, vice-diretor da Escola Estadual Prudente de Morais, localizada na região central da cidade de São Paulo. "Mas, neste ano, não sei se vai funcionar. Disseram que quem participasse do Escola da Família receberia um bônus – que funciona como uma espécie de 14º salário para os professores da rede pública – maior. E o bônus de todo mundo veio lá embaixo."

"É mais fácil comprar arma do que pão"
Não é tarefa simples desvendar o que levou ao enorme crescimento da violência associada à juventude no Brasil. Para Julio Jacobo Waiselfisz, no entanto, há uma série de fatores que ajudam a compreender melhor esse fenômeno. "O desemprego e a cultura do consumismo são dois deles", afirma. "Há 20 ou 30 anos, o jovem tinha segurança de que conseguiria um trabalho ao terminar a escola. E hoje percebe que, se está difícil para quem tem alguma experiência, imagine para ele, que normalmente não tem nenhuma."

Estatísticas mostram bem essa realidade. Em 2004, segundo estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), os jovens correspondiam a quase metade dos desempregados (46,4%) nas principais regiões metropolitanas do país. Isso apesar de serem apenas um quarto (25,7%) dos trabalhadores.

Jacobo destaca ainda que isso ocorre num momento em que é cada vez maior a importância dada ao êxito econômico na valorização social do indivíduo. Além disso, diz ele, há uma crise em instituições que, de certa forma, sempre sustentaram a juventude – como a escola, a Igreja, a família e a política. "Em Brasília, foi feita uma pesquisa em que se constatou uma nostalgia do jovem em relação à época de juventude de seus pais", conta Jacobo. "Dizem eles que, naquele período, havia pelo que lutar."

Para a socióloga Miriam Abramovay, há hoje uma grande frustração social no jovem brasileiro, em diferentes níveis. Ela lembra ainda que a essa realidade associa-se uma incrível facilidade em conseguir armamento. "Eles próprios dizem isso; afirmam que é mais fácil comprar uma arma do que pão." Em 2002, mais de 75% dos homicídios juvenis foram ocasionados por armas de fogo. Além disso, os homens representam a grande maioria dos jovens assassinados (93,8% em 2002).

"Vivemos numa cultura machista, em que a arma é sinal de poder. Muitos meninos dizem, inclusive, que as mulheres gostam daqueles que possuem uma", afirma a socióloga, que já realizou diversas pesquisas sobre violência nas escolas. "Numa situação de desentendimento, muitas vezes envolvendo o uso de bebidas ou drogas, o limite entre possuir uma arma como instrumento de poder e efetivamente usá-la torna-se muito tênue."

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