Recife – No Brasil é muito comum a realização de megaprojetos sem a participação da opinião pública. Isso ficou bem evidenciado quando foi divulgado, pelo governo federal, o projeto de integração da bacia do rio São Francisco com as bacias do Nordeste setentrional, mais conhecido como de transposição do rio São Francisco. Muitas vezes, as ações de desenvolvimento são comunicadas pelas autoridades quando já estão implantadas e postas em funcionamento.
No caso específico da transposição, contam-se nos dedos as instituições e os grupos de pesquisadores que vêm trabalhando no sentido de alertar as autoridades sobre as arbitrariedades que estão sendo cometidas e as deficiências e falhas do projeto, com o propósito de mostrar que, da forma como foi apresentado à sociedade, ele não é necessário, tendo em vista a existência de caminhos alternativos de convívio com a seca e possibilidades concretas de se proceder ao abastecimento das populações, mediante o uso das águas que já existem na região.
Entre os grupos que resistem à imposição das ações do governo no tocante ao projeto, destacamos aqui o Fórum Permanente de Defesa do Rio São Francisco da Bahia, cujos integrantes são representados, na sua grande maioria, por organizações não governamentais ligadas à defesa do meio-ambiente. Participa desse grupo o Ministério Público Estadual da Bahia, principal responsável pelo embargo judicial ao projeto, ora verificado na esfera federal.
Estão também, entre esses grupos, o Comitê da Bacia Hidrográfica do rio São Francisco, presidido por José Carlos Carvalho, que vem se empenhando para priorizar o uso das águas da transposição para consumo humano e animal, em caso de escassez comprovada, e a Comissão Pastoral da Terra, coordenada nacionalmente por Roberto Malvezzi, o Gogó, que tem se esmerado para divulgar informações sobre as alternativas de convívio do homem nordestino com as secas históricas que ocorrem na região, principalmente na parte semi-árida da bacia hidrográfica do rio São Francisco.
Existem também pesquisadores e técnicos – aqui nos incluímos – que, de forma isolada, têm dado importante contribuição para o esclarecimento da opinião pública sobre o projeto, dando merecido destaque a João Abner Guimarães Jr., doutor em recursos hídricos e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cujas ações têm reforçado o embasamento das teses em defesa da vida do Velho Chico e ajudado na solução do abastecimento das populações residentes no Nordeste setentrional.
Diante da posição assumida pelas autoridades ligadas ao projeto, que normalmente utilizam a máquina governamental para obterem sucesso em suas ações, comparadas a verdadeiro rolo compressor, a atuação desses grupos tem sido constantemente sufocada.
Percebendo esse desequilíbrio onde, de um lado, está a imposição das autoridades na realização do projeto e, de outro, a tênue resistência das instituições ambientalistas, com visível inclinação do fiel da balança para o lado do governo, o bispo de Barra (BA), Dom Luiz Flávio Cappio, entrou em cena com um santo jejum. Ele exigiu das autoridades a suspensão imediata do projeto e o estabelecimento de "Um Plano de Desenvolvimento Sustentável para o Semi-árido", em novas bases de negociações, com vistas ao enfrentamento das secas que normalmente ocorrem na região.
Através de seu ato extremado, o religioso conseguiu interferir nas proposições do governo, mostrando a necessidade e a importância do diálogo, cujas conseqüências foram traduzidas na interrupção imediata das ações do projeto de transposição, na abertura de uma agenda para discussão de alternativas de convívio do nordestino com as secas e na priorização das ações de revitalização da bacia do rio São Francisco. Seria um ato insensato do governo entrar em rota de colisão com a igreja diante do atual cenário da política nacional e o resultado de tudo isso foi a mudança significativa do jogo político. Mudança para melhor, diga-se de passagem. Ponto para o governo Lula.
Não imaginávamos, em hipótese alguma, que em curto espaço de tempo iríamos percorrer diversas regiões do país debatendo o projeto, levando nossas idéias à esfera governamental e, principalmente, interagindo com diversos ministérios. Nesse sentido, fomos convidados a participar de um evento em Brasília – ao pé do poder -, com o objetivo de debater a sustentabilidade da região semi-árida, a transposição e a revitalização do rio São Francisco.
Escalados para fazer uma complementação na conferência de Otamar de Carvalho, conhecido técnico ligado às causas nordestinas, limitamo-nos, pelo tempo que nos foi concedido, a tecer breves comentários sobre o bioma da caatinga, principalmente no que diz respeito ao trabalho de manejo sustentável com fins energéticos; sobre a pecuária de grandes ruminantes e para a produção de carne e laticínios, oriunda dos desertos da Índia e do Paquistão; sobre o melhoramento genético de pequenos ruminantes, através do resgate das raças nordestinas com as homólogas européias, com exemplos nos trabalhos realizados por Manelito Dantas Vilar, na fazenda Carnaúba, em Taperoá PB; sobre a questão das forragens fornecidas aos animais, principalmente através da cultura da palma com seus recentes ganhos em produtividade; sobre as questões hídricas, mediante o aproveitamento das águas existentes na região e sobre a política creditícia diferenciada para o Nordeste, com previsão da quitação dos empréstimos com o que é produzido na propriedade.
Nada disso teria sido possível se o Dom Luiz não tivesse realizado o seu jejum. O Nordeste brasileiro tem uma dívida de honra para com esse religioso, que não mediu esforços para encontrar o caminho mais adequado para a solução dos nossos problemas. Ficamos na torcida para que o caminho do entendimento ora encontrado seja calcado no bom-senso, e que se perpetue ao longo do tempo, principalmente quando o objetivo das discussões seja o nosso desenvolvimento.
João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina