Apenas uma semana depois de a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) em Brasília ter determinado a soltura de um dos acusados pelo assassinato da missionária Dorothy Stang, a libertação do provável responsável pela morte de um outro ambientalista, dessa vez no Rio de Janeiro, aumenta a sensação de impunidade em relação a esse tipo de crime e já começa a assustar os militantes dos movimentos sociais. Assassino confesso do ambientalista Dionísio Júlio Ribeiro Júnior, conhecido como Seu Júlio, o caçador Leonardo de Carvalho Marques foi solto e, segundo testemunhas, já voltou a morar nas proximidades da Reserva Biológica do Tinguá (Nova Iguaçu, Baixada Fluminense), local onde Seu Júlio militava e foi assassinado.
Preso dois dias após o crime, Marques passou mais de um ano na cadeia à espera do julgamento. Mesmo tendo confessado ser o autor do tiro de espingarda que matou Seu Júlio, o caçador foi absolvido por júri popular, pelo placar de 6 a 1, no dia 20 de junho. A decisão, segundo o júri, baseou-se na insuficiência de provas, apesar de a arma do crime ter sido encontrada na casa de Marques. Além disso, a defesa sustentou que o réu havia assinado sua confissão sob tortura, argumento que parece ter sensibilizado os jurados. O veredicto, no entanto, é considerado suspeito pelas organizações socioambientalistas que acompanham o caso. Todos lembram do ano passado quando, ao ter uma crise nervosa no momento em que foi autuado e soube que permaneceria longo tempo na cadeia, Marques chegou a afirmar, na frente de várias testemunhas, que haviam “garantido” a ele “que não ficaria tanto tempo preso”.
Diversas organizações dos movimentos sociais acham que, depois da surpreendente absolvição de Marques, suas afirmações devem ser mais bem investigadas. Por acreditarem que houve irregularidades na condução do processo, estão exigindo sua anulação e a realização de um outro julgamento. A organização Defensores Ambientais do Gericinó-Mendanha-Tinguá (DAMGEMT), fundada após o assassinato de Seu Júlio, organizou no dia 4 de julho, em frente ao Fórum de Nova Iguaçu, uma manifestação de repúdio à libertação de Marques que contou com a participação de diversas outras entidades socioambientalistas da região.
Além da exigência da abertura de um novo processo, as ONGs querem que as investigações saiam da Delegacia da Posse, em Nova Iguaçu, e passe a ser considerada prioridade pela Secretaria Estadual de Segurança Púbica e pela Polícia Federal. Os manifestantes também pediram que observadores internacionais da área de direitos humanos da ONU e da OEA sejam chamados para acompanhar o novo processo.Um abaixo-assinado exigindo novas investigações foi entregue ao presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Sérgio Cavalieri Filho.
Outra preocupação das ONGs é garantir proteção policial aos demais ambientalistas da região do Tinguá que já foram ameaçados de morte. Uma lista com os nomes de 14 ambientalistas ameaçados foi encaminhada ao Tribunal de Justiça e também à Secretaria de Segurança Pública. Essa mesma lista já havia sido entregue, em março do ano passado, ao então secretário Marcelo Itagiba, agora licenciado para concorrer a uma vaga de deputado federal: “Ele recebeu a lista, mas, desde então, não tomou nenhuma providência”, afirma o ambientalista Sérgio Ricardo de Lima, um dos fundadores da DAMGEMT.
Itagiba, aliás, é um dos principais alvos da revolta do movimento socioambientalista por não ter, segundo Sérgio Ricardo, cumprido a promessa de tirar as investigações de Nova Iguaçu e levá-las para a cúpula da secretaria: “Queremos novas investigações e que elas sejam conduzidas em outro lugar. A Delegacia da Posse, apinhada de processos e sem estrutura, não tem condições”, resume o ambientalista. Outra promessa não cumprida, segundo Sérgio Ricardo, é a construção de um posto do Batalhão da Polícia Florestal e do Meio Ambiente dentro da Reserva do Tinguá: “A presença da polícia militar é fundamental, pois a estrutura do Ibama para coibir a ação de caçadores e outros criminosos ambientais na região é pequena e não vai mudar tão cedo. Além disso, os fiscais do Ibama não andam armados, ao contrário dos caçadores, que podem responder a tiros”, diz.
DEPOIS DA PRISÃO, A FESTA
No último fim-de-semana, os moradores das proximidades da Reserva do Tinguá organizaram uma grande confraternização, com forró e comidas típicas das festas juninas. Foi a primeira vez que Leonardo Marques foi visto em público após sair da prisão. Segundo testemunhas, ele parecia feliz, bebendo muito e falando alto na companhia de amigos. Enquanto isso, de acordo com essas mesmas testemunhas, alguns dos 14 nomes que constam na lista de ambientalistas ameaçados entregue às autoridades permaneceram trancados em suas casas, com medo de comparecer à festa e se transformar em alvo da violência dos caçadores “animados” com a soltura de Marques.
“Estamos nos sentindo acuados. Tem gente que se tranca em casa como se estivesse numa jaula”, lamenta Sérgio Ricardo de Lima. Um dos mais experientes ambientalistas do Rio de Janeiro, Sérgio Ricardo vê essa onda de violência contra os militantes do setor como um dos momentos mais tristes que já enfrentou: “A ecologia atualmente desperta interesse social e a participação da população é crescente. No entanto, se a impunidade aos agressores de ambientalistas começar a virar rotina, as pessoas passarão a ficar com medo de defender o meio ambiente”, diz. Ele sabe do que está falando, afinal um levantamento feito pelas próprias organizações apontou uma diminuição de 40% na presença das pessoas nas atividades ambientais realizadas no Tinguá desde a morte de Seu Júlio.
À QUEIMA-ROUPA
Seu Júlio foi assassinado na noite de 22 de fevereiro de 2005, quando caminhava por uma trilha a cerca de 200 metros de uma das entradas da reserva. Ele havia acabado de participar de uma reunião na sede da Associação de Moradores de Tinguá e voltava para casa quando foi perseguido e alvejado, pelas costas, com um tiro de espingarda calibre 28 na cabeça. Quando foi preso, Leonardo Marques afirmou que cometera o crime porque estava enfurecido com o ambientalista que, segundo ele, dias antes havia indicado sua casa para policiais que apreenderam suas armas. Após sua prisão, a polícia admitiu que o assassinato de Seu Júlio poderia ter sido tramado por pessoas ou grupos que se sentiam prejudicados pela sua militância em defesa da reserva que, além da caça ilegal, sofre com a ação dos palmiteiros, com o desmatamento e com a extração ilegal de areia.
Criada em 1989 e espalhada por quase 28 mil hectares que al
cançam os municípios de Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Japeri, Petrópolis, Miguel Pereira e Paty do Alferes, a Reserva Biológica do Tinguá é considerada um paraíso ecológico e foi reconhecida na década passada como patrimônio da humanidade pela Unesco. Além de possuir recursos hídricos que são responsáveis por 80% do abastecimento de água da Baixada Fluminense, a reserva abriga fauna e flora riquíssimas. Em suas matas, situadas a pouco mais de 50 quilômetros da cidade do Rio de Janeiro, são encontrados desde mamíferos de grande porte como a onça-parda e o macaco-prego até animais como o sapo-pulga, considerado o menor anfíbio do planeta.