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Artigo – Deixem as empregadas domésticas falarem em paz

Lançamento de "Pequeno Dicionário da Empregada Doméstica" evidencia a única forma de discriminação que é amplamente aceita em nossa sociedade: o preconceito lingüístico
Por Carlos Juliano Barros
 10/07/2006

Ninguém é obrigado a conhecer alguma coisa de lingüística. E não é preciso ser especialista em semiótica ou coisa que o valha para perceber que existe algo de errado, no mínimo estranho, com a seguinte passagem: “a moça era do norte. De Garanhuns. Nada contra, mas… sabe como é. Nós, brasileiros, sabemos!”. Torço, do fundo do coração, para que esse trecho seja apenas um momento de infelicidade do desembargador aposentado Caio Graccho, que publicou seu "Pequeno Dicionário da Empregada Doméstica" em um jornal destinado aos seus colegas magistrados, como noticiou a colunista Mônica Bergamo na edição de 06 de julho da Folha de S. Paulo.

Espero também que a iniciativa do desembargador de compilar algumas expressões usadas pelas empregadas domésticas e reuni-las em "dicionário", a fim de torná-las supostamente compreensíveis, seja fruto de um desejo irrefutável de contribuir para o desenvolvimento científico desse campo do conhecimento. Mas tenho lá minhas dúvidas. Acho que não foi essa a intenção de Caio Graccho, cujo nome se assemelha e muito ao daquele nobre assassinado por defender a reforma agrária nos tempos do império romano.

O professor da Universidade de São Paulo e da Universidade de Brasília, Marcos Bagno, disse certa vez que o preconceito lingüístico é a única forma de discriminação aberta em nossa sociedade. Ninguém ousa falar mal publicamente de negros, homossexuais ou nordestinos, sob a pena de ser tachado de nazista, mesmo que nutra esse sentimento tão baixo. Afinal de contas, pega mal soar como um fascista. Mas poucos hesitam em afirmar categoricamente que o brasileiro não sabe falar português e até zombar – publicamente, se possível – de quem não domina a norma culta do nosso idioma. Nesse sentido, o livro do desembargador é exemplar.

Mas o que está por trás desse tipo de preconceito? Em primeiro lugar, aparece o total desconhecimento sobre os estudos de lingüística desenvolvidos nas últimas décadas. Infelizmente, por muito tempo ainda seremos reféns da idéia de que o ensino da língua materna deve seguir à risca os ensinamentos contidos nas gramáticas normativas, formuladas por uns poucos iluminados que se julgam no direito de rotular o que é e o que não é português. E pior: como um médico, sentem-se no dever cívico de prescrever receitas para curar esse problema. Há algum tempo já se aboliu a dicotomia certo versus errado, no meio acadêmico, mas atravessaremos gerações até que o sonho de Paulo Freire se reproduza efetivamente nas salas de aula.

Um dos atributos mais bonitos de uma língua é justamente a sua capacidade de variar. Ela difere de região para região, é só pensar no sotaque de um baiano e de um gaúcho. Ela também se modifica ao longo do tempo, basta lembrar daquelas expressões da época da Jovem Guarda consagradas por Roberto Carlos e que hoje saíram de moda. E ela também se adapta às condições sociais dos falantes, como mostram as gírias dos jovens de periferia de São Paulo ou a linguagem das rodinhas das galerias de arte da maior metrópole do país.

E é justamente esse terceiro tipo de variação lingüística – que os lingüistas chamam pelo palavrão de “diastrática” – que mais suscita preconceito. Porque, no final das contas, quando alguém é estigmatizado pela sua maneira de falar, não são apenas a beleza das palavras ou a clareza do discurso que estão em jogo, mas a própria pessoa. Porteiros, pedreiros, faxineiros e todo tipo de gente pobre e sem formação escolar consistente são as principais vítimas.  Mesmo inconscientemente, julgamos um sujeito pela maneira como ele fala. E, via de regra, quem conhece as regras da gramática leva a melhor, seja numa disputa de emprego ou numa conversa de botequim. Assim, somos facilmente induzidos a crer que um cidadão que nasceu, cresceu e nunca saiu do Brasil não sabe falar português! Mas será possível? Alguém teria a coragem de dizer que um alemão nativo não sabe falar alemão? 

Ninguém é obrigado a conhecer nada de lingüística, assim como ninguém tem a obrigação de ser perito em leis. Uma língua não pode ser aprisionada em livros, e nem ditada por quem se julga acima do bem e do mal. A língua é reinventada no dia-a-dia, na boca de jovens e velhos, de ricos e miseráveis, de sulistas e nortistas. Por favor, nobre desembargador Caio Graccho, não prive as empregadas domésticas do direito de falar sem culpa. Elas já foram muito expropriadas.

Conheça alguns vocábulos presentes no "Pequeno Dicionário da Empregada Doméstica"

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