Especial: O futuro de São Paulo

Especial São Paulo: Em busca de renovação

As ruas do centro já foram o endereço da vida social paulistana, e, hoje, enfrentam o estigma da violência. Há projetos para mudar a situação, mas que revelam conflitos de interesse quanto ao futuro da região. Para entender melhor esse quadro, a Repórter Brasil traz uma série de cinco reportagens sobre o tema
Por André Campos e Carlos Juliano Barros
 15/07/2006

Dois milhões de pessoas transitam diariamente pelo centro de São Paulo, onde se localiza expressiva parte da memória e do patrimônio histórico da maior cidade da América do Sul. Apesar de ainda concentrar um elevado número de empregos, contar com uma farta rede de transporte coletivo e possuir uma moderna infra-estrutura, a região já não representa o coração financeiro da capital do estado mais rico do Brasil. Se no passado o centro foi endereço dos negócios e do glamour paulistano, hoje enfrenta o estigma do abandono e da violência. A requalificação dessa área tão importante para o município é uma missão que mobiliza o governo, nas esferas federal, estadual e, principalmente, municipal. Reverter o esvaziamento populacional ocorrido nas últimas décadas, atrair investimentos para dar mais oxigênio à economia da região e combater a degradação de espaços públicos e imóveis particulares são alguns dos principais desafios a ser superados. É o que mostrará uma série de reportagens sobre o tema, que começa abaixo.

Projeto Nova Luz quer transformar a Cracolândia em reduto de agências de publicidade e instituições de ensino

Da lanchonete Pitchula, na esquina da Rua dos Gusmões com a Couto de Magalhães, no bairro da Luz, pode-se observar a área que o inconsciente coletivo dos paulistanos considera o principal reduto do tráfico de drogas e de atividades ilícitas no centro de São Paulo: a Cracolândia. Mas o dono desse restaurante de nome popular – nas redondezas da refinada Sala São Paulo, sede da Orquestra Sinfônica do Estado – não partilha dessa opinião. Em dez anos de funcionamento, seu bar foi assaltado apenas uma vez, e "por bobeira", ressalva. Ele garante que a relação com os usuários da droga que batizou aquela região é bastante tranqüila. Também se diz cansado de ouvir idéias para recuperar as imediações.

O terreno da lanchonete situa-se numa área que o governo municipal pretende em breve desapropriar com o objetivo de colocar em andamento uma das mais alardeadas e polêmicas empreitadas de requalificação do centro formuladas nos últimos anos: o Projeto Nova Luz. A idéia é transformar o bairro e o entorno da Rua Santa Ifigênia num pólo do chamado setor terciário avançado, destinado a abrigar instituições de ensino, agências de publicidade e shopping centers. "O projeto tem como intuito atrair investimentos para gerar empregos", define o prefeito Gilberto Kassab. Essa é a grande aposta da gestão iniciada por José Serra para varrer a Cracolândia do mapa. No papel, o primeiro passo é derrubar o quarteirão em que se encontra a Pitchula, que cederá espaço às novas sedes da subprefeitura da Sé e da Companhia de Processamento de Dados do Município (Prodam).

O prefeito Gilberto Kassab (esq.) e o subprefeito da Sé, Andréa Matarazzo (dir.): abertura dos calçadões, reforma de praças e o fim da Cracolândia entre as prioridades para o centro

O Nova Luz é o capítulo mais recente da longa história de tentativas de recuperação do centro da maior metrópole brasileira, missão que desafia governantes há pelo menos 30 anos. Para entender o processo de degradação da região, é preciso viajar à década de 1940, quando a elite paulistana atravessou o vale do Anhangabaú e fez morada nas cercanias das praças Ramos de Azevedo e República, deixando para trás o "triângulo histórico" formado pelas ruas Direita, 15 de Novembro e São Bento. Época de vida cultural agitada: dos quase 150 cinemas que havia na região até a metade do século passado, hoje sobrevivem pouco mais de uma dezena, que dependem de filmes pornográficos para não fechar as portas.

Nos anos 1960, o ritmo de expansão da cidade se acentuou e, acompanhando o setor imobiliário, que passou a atender a demanda dos consumidores de alta renda por habitações mais modernas, bancos e empresas subiram a Rua da Consolação e aportaram na Avenida Paulista. Esse deslocamento em direção ao quadrante sudoeste da cidade seguiu firme e forte nas décadas seguintes, passando pela Avenida Faria Lima e, nos últimos tempos, chegou à Marginal Pinheiros e à Avenida Luiz Carlos Berrini. Porém, mesmo com a mudança das elites para bairros afastados do centro, a infra-estrutura lá existente ainda alimenta a especulação imobiliária e mantém o metro quadrado da região como um dos mais caros da cidade. "Quem quer morar não pode pagar. E quem pode pagar não quer morar", resume Nabil Bonduki, ex-vereador e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).

Nabil Bonduki foi vereador pelo PT e relator do Plano Diretor Estratégico do município: "não se deve privilegiar uma área pequena, como prevê o Projeto Nova Luz."

"O centro foi, então, ocupado por uma série de atividades populares e redes informais, de camelôs a cooperativas de catadores de material reciclável. Há também movimentos sociais que lutam pelo direito à habitação, organizações que trabalham a questão do gênero com prostitutas. O maior problema da região é a forma como o poder público tem lidado com essa multiplicidade de facetas", afirma a urbanista Beatriz Kara, do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LabHab) da FAU-USP.

As políticas de recuperação do centro postas em prática nos últimos anos se concentram principalmente em dez distritos – Bela Vista, Bom Retiro, Brás, Cambuci, Consolação, Liberdade, Pari, República, Santa Cecília e Sé. São áreas de "reestruturação e requalificação", segundo o Plano Diretor Estratégico (PDE), lei aprovada pela Câmara Municipal em 2002 para regular o uso dos espaços físicos da capital. Lá moram atualmente apenas 4% da população do município, de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Somente entre 1992 e 2000, a região perdeu 23% dos seus empregos, e em distritos como Sé e República, símbolos por excel
ência de São Paulo, a taxa de desocupação dos imóveis chega a 18%.

"O centro precisa ser pensado de maneira ampla. Não se deve privilegiar uma área pequena, como prevê o Projeto Nova Luz, por exemplo, por mais relevante que seja", afirma Bonduki. O que é preciso fazer, então? O próprio PDE, do qual o ex-vereador foi relator, fornece as indicações para modificar esse cenário: repovoar a região, dinamizar os setores de comércio e serviços, além de reorganizar o sistema de transporte coletivo e conservar o patrimônio histórico.

Saiba mais sobre o Projeto Nova Luz

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Produzido graças a uma parceria com a revista Problemas Brasileiros

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