Política agrícola

“Há favelas gigantescas geradas por essa monocultura que está aí”

Conhecido internacionalmente por sua história de luta pela terra, o líder camponês Manoel da Conceição, em entrevista à Repórter Brasil, diz que a expansão da monocultura da soja e do eucalipto está expulsando os jovens do campo no Maranhão
Por Iberê Thenório
 04/07/2006
Com 70 anos, Manoel é personagem importante na implantação da economia solidária no Maranhão

Depois de ser expulso de suas terras na década de 1950 e perdido uma perna ao ser alvejado a tiros pela polícia nos anos 60, de ter dirigido a Ação Popular, ser torturado nos porões da ditadura e exilado na Suíça nos 70, de ter ajudado a fundar o PT na década de 1980 e o Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST) na de 1990, o agricultor maranhense Manoel da Conceição, 70, ainda encontra forças para liderar a construção de uma fábrica de beneficiamento de castanha de caju, em Imperatriz, para os pequenos produtores maranhenses.

Sua história se confunde com a da luta pela terra no Brasil. Foi fundador de várias associações de trabalhadores rurais e, antes do golpe de 1964, participou das ligas camponesas, consideradas embriões do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em 1980, criou o Centro de Treinamento Rural (Centru) no Recife, estendido mais tarde à Imperatriz, onde vive hoje. Por fim, ele é presidente da Central de Cooperativas Agroextrativistas do Maranhão.

Quebradeira de coco no Maranhão: camponeses lutam para proteger os babaçuais da região (Foto: André Campos/Repórter Brasil)

Em entrevista à Repórter Brasil, Manoel reclama da alta concentração de renda gerada pela monocultura da soja e do eucalipto no Sul do estado. E aponta a economia solidária como saída para as famílias pobres da região, que estão migrando para as periferias das grandes cidades. Membro do diretório nacional do Partido dos Trabalhadores, ele avalia que nos últimos anos as políticas de crédito e de transferência de renda melhoraram a vida do pequeno agricultor. Mas se esses recursos tivessem sido destinados à produção camponesa os resultados teriam sido melhores.

O Bico do Papagaio, desde os anos 50, foi palco de violentos conflitos na luta pela terra. Milhares de posseiros foram expulsos de seus sítios por empresas e fazendeiros, apoiados pelo capital nacional e internacional e com a benção dos governos federais. Passado meio século do início da abertura da rodovia Belém-Brasília (o primeiro grande vetor de ocupação da Amazônia Ocidental), o que mudou na situação do camponês da região?
Manoel da Conceição – Muita coisa mudou, mas não foi no sentido da melhoria da população do campo, e mesmo da cidade. Antigamente, nós éramos pobres, mas não nos faltavam as coisas que faltam hoje. A pobreza aumentou. Antigamente, havia a floresta e muita produção nativa. Tudo isso foi para o beleléu. Hoje o que tem muito é capim, gado e eucalipto. Mas aquela produção voltada para o alimento do povo a cada ano vai ficando menor. Arroz, milho, feijão, verduras, peixe, vai tudo diminuindo. Antigamente, o povo podia criar seu porco, seu bode, sua galinha. Hoje galinha é coisa de granja, de rico. Bode e porco, também. Plantação de arroz não tem. Feijão, muito pouco. É quase tudo comprado, vindo de fora, de outros estados, e até de fora do país. Não há mais emprego para quem não tem mão-de-obra especializada. O povo, que não pôde receber uma educação científica e tecnológica, fica sem trabalho. Também houve muita migração de trabalhadores rurais para as periferias urbanas. Isso aumentou muito a violência. Enquanto isso, tem muita riqueza concentrada na oligarquia rural e urbana. A riqueza aumentou, mas sua distribuição foi concentrada. Ela foi centralizada na mão de poucos.

O grande proprietário rural continua sendo privilegiado pelo governo em comparação ao pequeno proprietário, o posseiro e o extrativista?
MC –
Eles ainda são os maiores beneficiados porque são eles que têm a produção. Eles conseguem uma aliança com o governo porque têm a produção sob controle. O grande proprietário hoje, em sua maioria esmagadora, produz no agronegócio, que é baseado muito mais na exportação do que na necessidade de alimentação interna. O grande negócio pensa no gado para exportar, no frango para exportar, no eucalipto para fazer carvão para o [ferro]gusa. A produção voltada para os pobres é desestimulada porque exige investimentos, mais recursos, mais assistência técnica. Quem não tem isso está fora do padrão, está fora do mercado. Nós estamos tentando desenvolver o que chamamos de economia solidária, que são as iniciativas populares, associações, cooperativas, sindicatos, mas é muito difícil suprir a demanda por trabalho e por renda, porque tudo exige investimento, e não é fácil. É claro que, com o governo Lula, melhorou um pouco, mas também não está bom. A gente quer muito mais do que até hoje chegou para nós.

A reforma agrária feita hoje dá conta de reverter esse quadro, significa uma verdadeira mudança social?
MC –
Em partes. Tem alguns que têm tido sucesso, individualmente, com sua família, mas é muito pouco perto do necessário. Nós temos uma dificuldade que não pode ser superada a curto prazo. Não é em quatro anos de governo que se resolve. O Fome Zero ajudou, o Bolsa-Família também ajudou muito. Mas se esses recursos tivessem sido investidos para ajudar a criar novas riquezas para a agricultura, eu acho que ajudaria muito mais.

Há um discurso hoje de que é possível fazer a reforma agrária aos poucos, sem extinguir o latifúndio. Isso é possível?
MC –
Não. Até hoje as terras conquistadas pelos trabalhadores rurais sem-terra foram na base da força. As ocupações foram avançando, e o governo foi fazendo [a reforma agrária], mas sempre com essa pressão. Se a gente não força, a reforma agrária não sai. Como o governo Fernando Henrique Cardoso deixou uma herança que eu chamo de "praga" – que é a herança de que a terra ocupada não poderá ser desapropriada – a reforma agrária fica bloqueada. Quando se ocupa, em vez de o governo desapropriar, expulsa os ocupantes. Isso é um entrave muito grande. O Congresso, que deveria resolver essa questão, não é compromissado com os pobres, e a reforma agrária fica comprometida.

Mesmo que o governo federal quisesse fazer uma reforma agrária, os políticos locais permitiriam que ela acontecesse?
MC –
As prefeituras locais,
câmaras de vereadores, o juizado, grande parte deles são donos de terras, proprietários. Aí, qualquer lei que venha de cima para baixo não é aceita. O que saiu até hoje de reforma agrária não foi por vontade política dos parlamentares, prefeitos ou dos governos estaduais. Foi uma coisa forçada pelo trabalhador.

O governo Lula trouxe um alento ao homem do campo? Houve mudanças significativas em relação aos governos anteriores?
MC –
O Lula aumentou o crédito para os pequenos produtores… Houve muita mudança, mas ela ainda é insuficiente perto do que queremos. É uma caminhada muito maior do que quatro anos. O que fizeram em 500 anos não se acaba em quatro. É preciso ter um tempo muito mais prolongado, e tirar muitos entraves, como essa lei, que já estava lá.

A monocultura da soja é o carro-chefe da expansão da agricultura sobre o cerrado. Qual o impacto disso na vida do pequeno produtor?
MC –
Nossos filhos são obrigados a migrar para as periferias urbanas para estudar, porque no campo já não há mais onde trabalhar. Só estão ficando os velhos. A juventude tem que sair para estudar para conseguir emprego, e o campo vai ficando desocupado. Por isso há favelas gigantescas geradas por causa dessa monocultura que está aí.

Tendo em vista a velocidade da expansão agrícola no Maranhão sobre as áreas cobertas de vegetação nativa, o que irá acontecer com os babaçuais?
MC – Estamos tentando salvar algumas pequenas áreas, criando algumas leis para o babaçu, mas é insuficiente. Agora surgiu uma alternativa interessante, que seria produzir o biodiesel, mas produzir como? Eles compram o óleo por um preço que não vale a pena para nós. Para quem tem indústria, compensa. Mesmo que o trabalhador tenha a terra, não dá. Quem vai ganhar é quem tem indústria.

A implantação do sistema de economia solidária tem ajudado na fixação do trabalhador em sua terra?
MC –
Foi aprovada agora uma nova proposta para fomentar a economia solidária, pelo governo federal. Se o Congresso se esforçar para criar leis para dar respaldo legal às nossas indústrias [da economia solidária], vamos mudar o quadro atual. O conhecimento científico tem que ser apropriado por nós. Como não temos isso, quem aprendeu alguma coisa tem que trabalhar para quem tem dinheiro, porque possui uma mão-de-obra especializada que nós não podemos contratar. Como optamos por uma produção sustentável que zela pela natureza, pelas águas, pelos rios e pela saúde do povo, temos dificuldade de produzir algo que seja bonito, que chame a atenção para o consumidor. Então temos que descobrir como produzir em quantidade maior, e com mais qualidade, pois o mercado é exigente, e não aceita qualquer coisa. Para enfrentar isso, estamos criando a primeira fábrica de cooperativa solidária dos trabalhadores rurais de beneficiamento de castanha de caju. Hoje, a nossa castanha está sendo levada todinha para o Ceará. Estamos fazendo uma parceria com a Embrapa do Ceará para nos ajudar a viabilizar a nossa fábrica e colocá-la nos padrões para ter uma boa produção.

O que você acha que os candidatos a presidente deveriam incluir em seu programa de governo para melhorar a questão no campo?
MC –
Depois da ditadura, eu parei de criticar o governo. Agora o que eu quero são propostas para melhorar o país. Primeiro, é necessário tirar essa amarra da lei de terras. Também é necessário que a economia solidária seja encarada como uma alternativa para o povo brasileiro. E precisamos que o conhecimento científico e técnico seja democratizado, para que o trabalhador que precisa dele possa melhorar a sua produção.

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