Menina boliviana em trajes de festa, na região central de São Paulo (Foto: Paula Takada) |
Estou a poucos metros do metrô Armênia, no bairro do Pari, centro de São Paulo. Ao meu redor, pessoas de olhos levemente puxados, pele morena e cabelos escuros e brilhantes. Todas falam espanhol. Aqui, sou a estrangeira. É como se estivesse andando pelas ruas movimentadas de Cochabamba ou as intermitentes feiras da capital La Paz – uma barraca atrás da outra, uma malha de lã de lhama, um pote de barro, uma flauta de pã. Em São Paulo, a Bolívia fica na praça Kantuta, todo domingo, das 11h às 19h.
É preciso deixar que a curiosidade do viajante se sobreponha ao preconceito. A experiência gastronômica obrigatória, por exemplo, está logo à entrada da feira, na rua Pedro Vicente: o anticucho vendido pela señora Berta Valdés. "As pessoas vem, comem, adoram e depois perguntam o que é", diz ela. O anticucho é coração de boi no espeto, e o churrasquinho acompanha batata e molho de amendoin (maní). "Se perguntam antes de comer, fazem uma careta e dizem não."
Bem menos exóticas são as empanadas e salteñas (as duas são o que chamamos de empanada), vendidas em quatro barracas da Kantuta. Elas têm o cheiro matinal da capital boliviana. São assadas a todo instante e a procura é grande: no fim da tarde o estoque da barraca de don Carlos Soto já tinha acabado. "As pessoas me perguntam qual é a melhor barraca e eu lhes digo que é preciso experimentar de cada uma para descobrir", brinca. Uma dica vale para todas: coma-as com colher, para não manchar a roupa – repare como os bolivianos à sua volta fazem.
O cheiro de caldeirão fumegante no ar pode ser de sopa – entrada obrigatória a qualquer prato boliviano – ou api (suco de milho roxo, que se bebe quente). Ele é muito consumido no "café da tarde" do altiplano andino, que vive sob temperaturas baixas, mas é tão saboroso que vai bem até em dias de calor. O acompanhamento ideal do api é o buñuelo, uma massa caseira frita (como a do pastel brasileiro, mas sem recheio, mais grossa e redonda). "Cuidado, está caliente!", avisa a vendedora, que pouco fala português, ao me servir a bebida. Mesmo com o aviso, há quem queime a língua.
Malhas, programas de tv, comidas típicas: toda Bolívia está na Kantuta |
Duas mil pessoas visitam a Kantuta a cada domingo, e cerca de 90% delas são bolivianos, entre nativos e descendentes. Segundo estimativa da Pastoral do Migrante Latino-Americano, há 200 mil bolivianos vivendo na capital paulista. Eles vêm aqui para se encontrar, se divertir e viver um pouco dos costumes de seu país – mas é cada vez mais comum encontrar entre as barracas paulistanos curiosos em conhecer melhor esses vizinhos.
Nas barracas de artesanato vê-se a riqueza da cultura andina. Há muitas peças em argila – a que mais me chamou a atenção foi uma moringa cheia de detalhes entalhados -, e algumas em madeira. As bolsas também fazem sucesso. "Trazemos quase tudo de lá, porque não se fabricam os materiais no Brasil", diz o senhor que vende malhas e panos. Também, muita coisa é de lã de lhama, macia, leve e bem quente. Os diversos modelos de malhas têm os desenhos característicos dos Andes.
Comemoração do aniversário da independência da Bolívia, em São Paulo (Foto: Carlos Juliano Barros) |
Na tenda ao lado, vejo objetos musicais, vasos e potes. Há muitas variações da típica flauta de pã boliviana, tocada por grupos folclóricos. Há vários deles (alguns até com 300 bailarinos acompanhando) que se apresentam na Kantuta nas datas importantes na Bolívia, como a "Festa das Alacitas", em 24 de janeiro, e o Carnaval (na mesma época em que o brasileiro). Algumas datas daqui são motivo de comemoração também – o dia das mães e o das crianças, por exemplo. A próxima grande festa será em 6 de agosto, quando são celebrados os 181 anos da Independência da Bolívia.
Não dá pra ir embora sem uma passada nas barracas que mais aglomeram visitantes: as que exibem programas de TV bolivianos – e também vendem CDs, DVDs e publicações. Um deles tem mais ibope do que a final da Copa do Mundo de futebol, que acontecia naquela tarde. Trata-se de uma série de humor, algo parecido com o "Chaves", só que com cenário ao ar livre. Os dois protagonistas fazem piadas e trapalhadas – um deles é uma espécie de palhaço, o outro aparece vestido de chola (mulher boliviana em trajes típicos: saia, meia de lã, tranças e chapéu).
Inusitado também é o serviço de cabeleireiro (pelucaria) prestado em uma tenda pequena e sempre cheia, quase ao final da feira. Ninguém parece se incomodar em ter seu cabelo cortado no meio da rua e fazem até fila para isso. E, claro, não podia faltar o futebol: à tarde, na quadra que fica no centro da praça, 19 times bolivianos e um brasileiro, do bairro, se revezam em um campeonato de futebol de salão. O brasileiro é tricampeão, mas parece que não é mais invicto. Os bolivianos começam a pegar o jeito do esporte nacional.
Quem quiser ver de perto tudo isso pode chegar ao Pari às 11 da manhã. Mas é ao cair da tarde que a Kantuta enche, sobretudo de jovens latino-americanos. É a hora de paquerar, de encontrar os amigos. "Cada pessoa que vem aqui pode contar uma história diferente de como chegou ao Brasil, de como encontrou trabalho. São muitas histórias bonitas que ficam escondidas", diz Roberto, um jovem boliviano que está há sete anos no país.
Integração
Wilson, da Associação "Padre Bento", gerencia a feira dominical e os projetos da entidade |
Quem administra a feira é a Associação Gastronômica Cultural e Folclórica Boliviana "Padre Bento", sustentada pelos próprios feirantes e por empresas ligadas sobretudo ao transporte Bolí
via-Brasil. Em 2001, tudo acontecia na praça Padre Bento, que era pequena para as 40 barracas e o grande movimento. No ano seguinte foi fundada a associação e determinou-se o espaço atual da Kantuta, entre as ruas Pedro Vicente, Carnot e das Olarias. A praça foi batizada de "Kantuta" – o nome vem da flor que cresce no altiplano andino e que tem as cores verde, amarelo e vermelho, as mesmas da bandeira da Bolívia. O evento dominical foi legalizado e hoje são 90 barracas (em dias de festa, até 3 mil comparecem). De acordo com Wilson Ferreira, presidente da Associação e dono de uma das barracas de salteñas, a partir de 2007 o endereço já estará no guia municipal de ruas.
"Don" Carlos veio ao Brasil em 1970 e quer mudar a imagem negativa sobre seu povo |
Carlos Soto, um dos fundadores da "Padre Bento", quer transformar todos os domingos da feira em festa. "Vamos trazer grupos folclóricos para dançar ou tocar toda semana", prevê. Ele aposta na Kantuta como um ótimo programa de domingo para estrangeiros – além de poder, talvez, mudar a visão negativa que se tem sobre os bolivianos no Brasil. "Antes, éramos traficantes internacionais de drogas, hoje somos escravos nas confecções do Bom Retiro. Ninguém conhece nossa cultura, nem sabe que tem muito médico boliviano, por exemplo, trabalhando em hospitais brasileiros. Estamos sempre trabalhando para os outros."
Crianças bolivianas e brasileiras assimilam a diversidade na brinquedoteca da Kantuta |
A Associação também busca outras formas de integrar socialmente a comunidade boliviana. Há quatro meses, acontece na sede da associação – uma pequena construção da praça Kantuta, que foi doada pela prefeitura e ainda está em reforma- um curso de português. As crianças bolivianas brincam com as do bairro na brinquedoteca. "Percebemos que os filhos também carregam o preconceito dos adultos. Então, brincar junto é uma maneira de quebrar essas barreiras", analisa assistente social Maria Vieira, que coordena a brinquedoteca. O espaço, ainda em fase de estruturação, funciona todos os domingos e busca voluntários para brincar com as crianças.
Berta Valdés, a pioneira do anticucho
Feira Kantuta: todos os domingos, das 11h às 19h, na praça Kantuta – altura do no 625 da rua Pedro Vicente, bairro do Pari, São Paulo (SP). Como chegar: de transporte público, desça na estação Armênia do metrô, saída para a rua Pedro Vicente. A praça da Kantuta está a 700 metros. De carro, vá pela Avenida Cruzeiro do Sul, sentido bairro, e vire à direita na rua Pedro Vicente. Quando ir: principalmente nas datas de festa: "Festa das Alacitas", em 24 de janeiro; Carnaval; Dia das Mães; Independência da Bolívia, em 6 de agosto; aniversário de cidades bolivianas (o de Copacabana, por exemplo, é em 6 de junho); Dia das Crianças e Natal. Muitas apresentações folclóricas com música ou dança ocorrem também fora das datas festivas. |