Especial Latifúndio 4

“Se dermos terras, poderemos resolver o que prende comunidades à servidão”

Em entrevista exclusiva, Juan Carlos Rojas, do Ministério de Desenvolvimento Rural na Bolívia, diz como o governo pretende erradicar o trabalho escravo e afirma que há uma “Revolução Agrária” em curso no seu país
Por Fabiana Vezzali
 26/07/2006
Evo Morales entrega título de terra a camponês. Ação fez parte do lançamento da reforma agrária boliviana (Foto: comunica.gov.bo)

Água e gás foram alguns dos ingredientes da mobilização popular que levou o líder cocaleiro, Evo Morales, a ser o primeiro presidente indígena da Bolívia em 2006. Nos anos anteriores, o país havia sido palco de intensos conflitos populares que, além de reivindicarem a nacionalização do gás, conseguiram reverter o processo de privatização da água. Ao lado desses dois temas, a questão da terra esteve sempre presente na pauta dos movimentos sociais, como importante elemento para reduzir as profundas desigualdades sociais do país.

Menos de 100 famílias bolivianas são donas de 25 milhões de hectares de terra, enquanto dois milhões de famílias cultivam apenas 5 milhões de hectares, indicam os dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Além disso, a taxa de pobreza no país chega a 61%, sendo que 88% da população mais pobre é composta por indígenas.

Em junho, quando anunciou a política de reforma agrária, Evo Morales entregou os primeiros títulos de posse de terras públicas aos camponeses da região do Oriente, reduto de oposição ao novo governo, que responde por quase metade da produção agropecuária do país e concentra grandes propriedades rurais. As mercadorias agrícolas respondem por cerca de 20% das exportações bolivianas, concentradas na venda de soja, castanha, açúcar e frutas. Os outros produtos mais importantes nas exportações vêm da indústria extrativista como gás, petróleo, zinco e madeira.

Em 1953, foi feita a primeira reforma agrária na Bolívia que, entretanto, provocou distorções como a criação de latifúndios na parte oriental e na região amazônica. Em 1996, outra lei de reforma agrária foi aprovada e, desde então, a regularização dos títulos de posse das terras pouco avançou. Desta vez, o governo pretende desapropriar as terras improdutivas, redistribuir cerca de 20 milhões de hectares até o final do mandato e privilegiar a posse comunitária das áreas destinadas aos indígenas, camponeses e trabalhadores sem-terra.

Em entrevista à Repórter Brasil, o diretor de Terras do Ministério de Desenvolvimento Rural e Agropecuário boliviano, Juan Carlos Rojas, afirma que o governo também planeja promover a reforma agrária nas áreas onde forem verificadas ocorrências de trabalho escravo, principalmente na região amazônica, onde há exploração de madeira e coleta de castanhas. "Se a distribuição de terras vem acompanhada de apoio produtivo, capacitação, avançamos para que, em algum tempo, essas comunidades possam exercer os direitos que por ora lhes são negados".

Qual é o papel da reforma agrária no desenvolvimento econômico e social da Bolívia?
Juan Carlos Rojas –
O papel da reforma agrária é fundamental em um país onde existe desigualdade na distribuição de terras, com predominância do latifúndio nas terras baixas e de minifúndio nas terras altas. Isso gerou um clima de tensão em várias regiões do país e um número crescente de famílias sem-terra ou com terra insuficiente.
Mas nossa proposta visa transformar estruturalmente a posse da terra, no sentido do desenvolvimento, e por isso falamos de 'Revolução Agrária'. O Plano Nacional de Desenvolvimento, apresentado este mês, inclui um conjunto de propostas que irão dinamizar as áreas rurais em nosso país.

O presidente Evo Morales iniciou a reforma dando títulos de propriedades de terras estatais a famílias bolivianas. Quantas terras públicas ou ociosas o governo calcula que poderão ser distribuídas?
JCR – No dia 3 de junho, junto com a promulgação do primeiro pacote da mudança nas leis, o presidente entregou títulos de 3,1 milhões de hectares a comunidades camponesas e indígenas. Os títulos de posse são coletivos e encerram um período de vergonhoso esquecimento do Estado boliviano a estas comunidades e pequenas cidades.

 
Região do Altiplano: dois milhões de famílias cultivam apenas 5 milhões de hectares no país (Foto: Iberê Thenório)

Durante este governo, foram identificados 2,2 milhões de hectares de terras públicas livres para a sua distribuição. Até o fim deste ano esperamos contar com outra quantidade similar e então poderemos falar de 4,5 milhões de hectares. Junto dos 3,1 milhões já distribuídos, são mais de 7,5 milhões de hectares. Esperamos que o processo de regularização identifique uma quantidade maior de terras públicas, mas não saberemos sua extensão até que termine esse processo.

Outro debate são as propriedades comunitárias dos indígenas e dos povos tradicionais. Há algum ponto especial do pacote que trata desse tema?
JCR –
É bom deixar claro que esta Revolução Agrária tem como principais mandantes e beneficiários os indígenas, as populações tradicionais, camponeses sem terra ou com terra insuficiente e trabalhadores assalariados de atividades agropecuárias. Também estabelece que a distribuição será feita de maneira coletiva e define medidas para o seu manejo sustentável. Por outro lado, um capítulo especial dessa política são as Terras Comunitárias Originárias [que é a denominação dada pelo Estado boliviano aos territórios indígenas], para que se consolidem dentro da estrutura político- administrativa do país respeitando sua demanda por autonomia.

Qual é o conteúdo do pacote de mudanças do governo Evo Morales para o campo?
JCR –
As mudanças na legislação pretendem retomar o curso da reforma agrária, que se tinha desviado, para fazer do processo de regularização das terras um processo mais ágil, transparente, de menor custo e com maior controle social. Esperamos que essas mudanças sejam não apenas referendadas na Assembléia Constituinte, mas principalmente aprofundadas por essa instância.
Já a política de terra-território, a ser ampliada no decorrer deste semestre, pretende orientar as ações do Estado boliviano em todos os seus níveis para garantir maior eqüidade no acesso à terra. Isso será feito através da distribuiç
ão de terras públicas, dinamização de novos pólos de desenvolvimento em áreas rurais por meio do assentamento de novas comunidades, manejo sustentável da floresta para dar vida digna às famílias assentadas, recuperação de solos nas terras altas da Bolívia (onde existe minifúndio), rápida regularização do direito de propriedade, impulso às demandas territoriais indígenas até que consigam sua titulação e incentivo ao reconhecimento das lógicas indígenas no manejo de seus territórios através dos planos de gestão territorial.

No Brasil, há uma proposta de lei que prevê a expropriação de terras onde for verificada a exploração de trabalho escravo. O plano de reforma agrária propõe algo sobre esse tema?
JCR – O decreto de distribuição de terras públicas inclui todos os setores que não têm terra, entre os quais se encontram famílias guaranis cativas ou as que trabalham no norte Amazônico sob o sistema de "habilito" [sistema em que os trabalhadores são contratados por intermediários e recebem pagamento antecipado. Depois, têm seus salários descontados pelo que consomem nas fazendas e, freqüentemente, ao final da safra estão endividados. Essa região vive intensos conflitos porque muitas fazendas se sobrepõem às áreas que povos indígenas reivindicam para si], ambos regimes com características de servidão. Pensamos que, se dermos terras a essas comunidades, estaremos resolvendo o principal problema que as prende ao sistema de servidão: a terra. Se a distribuição vem acompanhada de apoio produtivo, capacitação, rumamos para que, em algum tempo, as comunidades possam exercer os direitos que por ora lhes são negados.

O plano de reforma agrária propõe decretar limites para o tamanho de propriedades rurais?
JCR –
Esse assunto está sujeito a estudos técnicos para que se possa tomar uma decisão. O certo é que há uma forte corrente de opinião que defende a imposição de  limites ao tamanho da propriedade agrária.

Estão previstas medidas para garantir aos pequenos proprietários créditos, ferramentas de trabalho, compra de máquinas ou formação de cooperativas?
JCR – Estamos conscientes de que, se as medidas de distribuição de terras e assentamentos rurais não forem acompanhadas de ações que lhes permitam desenvolver seu aparato produtivo, esse processo se reverterá. Além disso, o Plano Nacional de Desenvolvimento propõe um conjunto de ações orientadas a promover os sistemas produtivos dos pequenos produtores, no que diz respeito a assitência técnica, manejo de solos, manejo de recursos naturais, tecnologia, créditos, entre outros.

O início da Assembléia Constituinte vai mudar o cenário político de maneira positiva para a discussão da reforma agrária?
JCR-
É difícil prever o ambiente em torno da Assembléia Constituinte e o curso que vão tomar as decisões nessa instância. O que está claro é que o assunto da terra não será ignorado por esta Assembléia. Todos os setores sociais envolvidos no tema têm representação. Há posições que coincidem porque reconhecem o setor agrário como elemento estratégico para o desenvolvimento nacional, mas há divergergências sobre quem deve administrá-lo, por exemplo.

A região de agronegócio de Santa Cruz de la Sierra faz forte oposição ao governo Evo e cresceram os conflitos pela terra naquela área depois que o presidente anunciou a reforma agrária. Como o governo pensa em diminuir ou enfrentar essa oposição?
JCR – Através do diálogo com esse e com todos os setores. Existem dois elementos que serão usados para criar as condições do diálogo: de um lado, informar sempre a verdade e com dados demonstráveis, e de outro optar pela negociação antes da pressão.
Os agropecuaristas, que em governos anteriores estiveram no comando de várias instituições querem que o governo Evo Morales atue para defender seus interesses, como faziam os outros, e que use da violência para reprimir camponeses e indígenas, bem como oculte as irregularidades que eles cometeram ou seguem fazendo. Por isso, recorremos à informação e à negociação.

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