“Na sociedade predomina o desprezo aos internos no sistema prisional. Não há sensibilização suficiente para provocar a mobilização eficaz face às condições de saúde deploráveis, os ambientes superlotados, a ausência de atividades laborais e educativas. O quadro resultante, absolutamente crítico, exige respostas imediatas na forma de políticas públicas que envolvam todas as instituições responsáveis e a sociedade civil. A crise no sistema prisional não é um problema só dos presos, é um problema da sociedade. E toda a sociedade passará a sofrer o agravamento das conseqüências de sua própria omissão”.
A frase acima é do presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal, o deputado paulista Luiz Eduardo Greenhalgh, citada no relatório “Situação do Sistema Prisional Brasileiro”, entregue pela Comissão ao Conselho Nacional de Política Criminal Penitenciária. O estudo, divulgado nesta terça-feira (11), apresenta um diagnóstico da situação prisional em 17 Estados e soluções para os principais problemas enfrentados nas diferentes regiões do país. Os números de São Paulo, que enfrenta mais uma crise da segurança pública, revelam que há cerca de 35 mil presos no estado além do número de vagas disponível no sistema penitenciário. Nas 144 unidades prisionais, há 92.865 vagas, hoje ocupadas por mais de 125 mil detentos. De acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária, em maio, o déficit era de 28.801 vagas.
Além da superlotação, o relatório faz denúncias de agressões e torturas por agentes do Estado e da impunidade dos acusados dessas práticas. Revela ausência ou inadequação de tratamento médico e falta de assistência jurídica, entre diversos outros problemas. Este quadro, que deixou de ser novidade em São Paulo, chegou a um limite crônico em 19 presídios destruídos depois de uma onda de rebeliões no final de junho. A destruição das unidades teria aumentado em 25 mil o déficit de vagas no estado.
A pior situação é a do Centro de Detenção Provisória de Araraquara, onde mais de 1.400 detentos estão confinados em uma área de 600 metros quadrados a céu aberto. Como as grades das celas estão quebradas, a solução para que os presos fossem mantidos encarcerados foi lacrar, através de solda, o único portão de acesso ao pátio, com uma chapa de aço. Depois de fazerem isso, os agentes penitenciários abandonaram a cadeia. A comida é lançada entre 11 horas e 17 horas e os presos liberados têm que ser içados do local, além de não haver qualquer condição de higiene. Os banheiros estão comprometidos e é necessário defecar em sacolas plásticas, que vão se amontoando. Diante da impossibilidade de atendimento médico, o médico Hosmany Ramos, preso em Araraquara, foi quem cuidou dos 60 feridos depois que a tropa de choque entrou no pátio e disparou balas de borracha para conter um pretenso tumulto.
O governador Cláudio Lembo (PFL) disse à imprensa que a situação de Araraquara é "dramática", mas no início da semana disse que eles não seriam transferidos do local, responsabilizando os próprios detentos pelas condições em que se encontram. "Esse drama humano não foi causado por nós, mas pelos próprios presos. Temos que preservar a segurança da sociedade mantendo os presos detidos num presídio totalmente destruído por eles mesmos", declarou Lembo.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo já pediu a transferência de todos os presos de Araraquara para outras unidades da Secretaria de Administração Penitenciária, mas até agora nenhuma providência foi tomada. O governo, no início da semana, removeu apenas os doentes, e transferiu uma parte dos presos para uma ala ao lado da atual, mas que se encontra tão destruída quanto o espaço em que está a maioria dos detentos. Na representação feita ao Juiz de Direito Corregedor da Vara das Execuções e dos Presídios de Araraquara, o Defensor Público Coordenador da Assistência Judiciária ao Preso, Geraldo Carvalho, afirma que não há condições mínimas de permanência no local, “em escandaloso desrespeito aos direitos fundamentais plasmados em tratados internacionais ratificados pelo País, na Constituição Federal e na Lei de Execução Penal”. Para ele, a situação é grotesca e “a condição de confinamento dos respectivos presos ultrapassa qualquer limite de razoabilidade e humanidade”.
“A obrigação de o Estado manter condições mínimas de alojamento de condenados é inequívoca (…) A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XLIX, assegura aos presos o respeito à dignidade física e moral. (…) Dúvida não resta, portanto, de que é do Estado o dever de manter condições minimamente aceitáveis de encarceramento, obrigação essa que não vem sendo cumprida”, diz a representação, que em seguida critica a postura do governo estadual. “Não há uma afirmação pública categórica, ou no mínimo alentadora, de que tal situação será revertida de forma imediata. Pelo contrário, o que se assiste é uma notória passividade como se o fato de os presos estares nessa condição fosse algo natural, decorrente das rebeliões ocorridas e que assim ficará por prazo indefinido. (…) Este fato nos remete a situações medievais em que presos eram trancafiados em enxovias, barbárie essa descabida numa sociedade minimamente civilizada, balizada por um arcabouço jurídico interno e internacional, ora violado, como a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes das Nações Unidas”, afirma Geraldo Carvalho.
De acordo com a Defensoria Pública, a análise da capacidade e lotação das unidades prisionais da Secretaria de Administração Penitenciária dá conta de que os presos da Penitenciária de Araraquara podem ser removidos e absorvidos pelo próprio sistema. Haveria um acréscimo na superlotação nas unidades que recebessem esses presos, mas para a Defensoria este fato seria muito menos grave do que o desrespeito aos direitos humanos que vem se perpetuando em Araraquara.
O Juiz Corregedor da Vara das Execuções e dos Presídios de Araraquara afirmou, no entanto, que não tem competência para determinar a transferência dos presos. Segundo José Roberto Bernardi Liberal, a competência para uma eventual ação seria da Justiça Federal, pois a alegação era de grave violação de direitos humanos previstos em tratados. A Defensoria e a Procurad
ora do Estado Ana Sofia Shmidt de Oliveia recorreram da decisão. Segundo eles, a Penitenciária “Dr. Sebastião Martins Silveira” faz parte do sistema penitenciário paulista, é administrada pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado e os processos de execução penal dos presos ali encarcerados estão na Vara das Execuções Criminais da Comarca de Araraquara. Portanto, o Juiz Corregedor seria, sem dúvida, o responsável pelo pedido.
“Este juiz tem feito barbaridades. Enquanto isso, a situação dos presos em Araraquara não se altera. E ela é quase idêntica em vários presídios do estado. O argumento de que não há vagas para transferências é verdadeiro. Mas numa situação limite como esta, não se pode continuar tratando seres humanos como animais. Além disso, há os que fazem a rebelião e os que não fazem, e que são punidos da mesma forma. Há procedimentos administrativos para quem participa de rebeliões, e as penas devem ser proporcionais. Entender essa pena como uma punição pela rebelião é equivocado, e mesmo assim não pode ser aplicada para todos”, afirma o defensor público Geraldo Sanches.
POLÍTICA INSUSTENTÁVEL
A Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo também oficiou o ao secretário de Administração Penitenciária, Antonio Ferreira Pinto, solicitando esforços, em caráter de máxima urgência, para equacionar os problemas de Araraquara. Na opinião do advogado Roberto Fiore, presidente da Comissão da OAB no município, a SAP ainda não fez a transferência dos presos para outras unidades e não permitiu a entrada da OAB no presídio pra tentar “maquiar” a situação.
“O grande problema é de gestão. Falta uma atuação do governo do Estado. Já se passou muito tempo para se resolver o problema de uma penitenciária. Mas este é o jeito Lembo de governar, inerte em relação a tudo”, acusa Fiori. “A mudança do secretário e a entrada de um ex-policial militar no posto fazem com que os presos sejam vistos como inimigos. Não se entende que, lá dentro, há pessoas que podem ser absolvidas [Araraquara é um Centro de Detenção Provisória] e que nem todos participaram da rebelião. Assim, pune-se um todo para atingir determinados”, acredita o advogado.
Já para o cientista político e pesquisador sênior do Núcleo de Estudos da Violência (NEV), da Universidade de São Paulo, Paulo Mesquita, situações como esta são reflexo de uma política de segurança, de Justiça e de administração penitenciária que, além de não incorporaram os princípios dos direitos humanos, está orientada para objetivos insustentáveis.
“Políticas cujo único objetivo parece ser o encarceramento em regime fechado e o endurecimento das penas da grande maioria das pessoas que cometem crimes, quando a própria lei prevê diferentes tipos de processos judiciais para diferentes tipos de crimes e criminosos, são insustentáveis. Se houvesse uma política mais compatível com este tipo de lei, não haveria tanta superlotação nos presídios. Num estado com a dimensão de São Paulo, isso só vai levar a crises e mais crises”, avalia Mesquita.
O risco que se corre neste momento, quando o PCC retoma os ataques em massa em todo o Estado – fazendo oito mortes nas últimas semanas, deixando feridos e destruindo dezenas de alvos civis nos últimos dois dias – é que o foco da preocupação das autoridades mude totalmente de local e se “esqueça” o que segue acontecendo nos presídios.
“Há um risco maior de reduzir todo o problema que a gente a um confronto entre um grupo criminoso e as forças do Estado. Mas o que está acontecendo é resultado de uma séria de problemas mais específicos e mais manejáveis, que aparecem na mídia como único, de confronto com PCC. Isso não está relacionado a uma guerra, mas à gestão cotidiana da administração de um presídio. A questão é que, quando as coisas acontecem simultaneamente e nesta quantidade, a situação parece sem saída”, diz Mesquita.
“Nesta nova onda de ataques, que começou em maio e continua agora, há duas possibilidades: endurecer a repressão e colocar a polícia na rua ou definir que agora a polícia vai identificar quem foram os responsáveis pelos ataques, rapidamente concluir inquéritos e a Justiça vai condenar as pessoas. São duas possibilidades de reação. Mas se a polícia não teve capacidade, aparentemente, de fazer isso nem quando seus próprios agentes foram vitimados, resta ir pro confronto armado e pra demonstração de força. Então a população fica numa situação difícil, porque este tipo de resposta que está sendo dado só aumenta a nossa insegurança", conclui o pesquisador do NEV.
Bia Barbosa é membro da ONG Repórter Brasil.