Na última quinta-feira (24), a operadora de telefonia Telemar foi condenada pela Justiça do Trabalho no município de Cabo Frio (RJ) a pagar R$ 1,5 milhão a título de danos morais coletivos por sujeitar trabalhadores a condições degradantes. Em 2004, 12 trabalhadores que faziam reparos no cabeamento telefônico da cidade foram flagrados em alojamentos precários, trabalhando sem acesso água potável, entre outras irregularidades.
O detalhe é que os trabalhadores não eram empregados da Telemar. Prestavam serviços à uma empresa chamada FACTEL, que por sua vez era contratada da ETE – Engenharia de Comunicações Elétricas S.A, que vendia seus serviços à Telemar.
Para baratear os custos com mão-de-obra, o expediente utilizado pela empresa de telefonia tornou-se comum no mercado de trabalho, e por conseqüência os salários e condições pioraram. O que muitas empresas ainda não se deram conta, porém, é que judicialmente elas podem ser responsabilizadas pelas más condições de trabalho oferecidas pelas empresas que lhes prestam serviços. Dessa forma, o que é barato pode sair caro.
Para explicar como a Justiça do Trabalho trata esse tipo de relação de emprego, a Repórter Brasil entrevistou o presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), José Nilton Pandelot, que explicou a diferença entre os diversos tipo de terceirização e alertou sobre a precarização das condições de trabalho.
Repórter Brasil – A terceirização tem crescido muito e várias pessoas já a apontam como um caminho sem volta. A fiscalização do trabalho e a Justiça do Trabalho estão preparadas para conter esse processo de precarização das relações do trabalho que surgirá junto com a terceirização?
José Nilton Pandelot – Eu diria que a terceirização não é o futuro e sim a desgraça das relações de trabalho. Porque essa terceirização se estabelece na forma de precarização. Ela se desvia da sua finalidade principal. Não é para garantir a eficiência da empresa. É para reduzir o custo da mão-de-obra. Se ela é precarizadora, vai determinar uma redução da renda do trabalhador, vai diminuir o fomento à economia, diminuir a circulação de bens, porque vai reduzir o dinheiro injetado no mercado. Há um equívoco muito grande quando se pensa que a redução do valor da mão-de-obra beneficia de algum modo a economia. Quem compra, quem movimenta a economia são os trabalhadores. Eles têm que estar empregados e ganhar bem para os bens circularem no mercado. Pode não ser evitável, mas se continuar dessa forma, com uma terceirização que serve para a redução e a precarização da mão-de-obra, haverá um grande prejuízo à cidadania brasileira e à sociedade de um modo geral.
A Justiça do Trabalho está estruturada para coibir, mas temos que entender que o judiciário só age provocado. O ordenamento jurídico fornece um instituto importante para o controle dessas terceirizações fraudulentas, que é a ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho. A vantagem da ação civil pública é que ela, de uma só vez, pode alcançar toda a terceirização de uma determinada empresa, ou talvez até de determinado setor da economia nacional. Enquanto a ação individual resolve o problema de um trabalhador, a ação coletiva resolve o problema de toda uma categoria.
A legislação brasileira é clara na regulamentação da terceirização?
Sim. A legislação estabelece que o trabalho pessoal prestado ao empregador, de forma remunerada e não eventual, deve se dar na forma de contrato com a carteira de trabalho anotada. Excepcionalmente, existem algumas leis que permitem a terceirização de atividades "meio", ou seja, as atividades que não sejam a principal da empresa, como o serviço de vigilância ou o serviço de limpeza, feitos por trabalhadores fornecidos por empresas terceirizadas. E na hipótese de trabalho temporário, a lei é bem precisa: são casos extraordinários de aumento de atividades, de substituição de pessoal ou até a contratação de serviço especializado.
O que acontece, no entanto, é a utilização indiscriminada da terceirização na atividade privada. Existem empresas que terceirizam até mesmo seções inteiras de sua produção, fenômeno que começou na indústria automobilística na década de 80. Hoje, se tem o terceiro que produz o pneu, o terceiro que produz a roda, o terceiro que faz a pintura, um outro que entrega o motor, e assim sucessivamente. O resultado desse processo, nesses mais de 20 anos, acaba resultando em uma ampla transferência da mão-de-obra direta empregada para empresas terceirizadas. Hoje nós temos mais trabalhadores terceirizados do que trabalhadores empregados.
Então houve um desvirtuamento da terceirização?
A terceirização foi idealizada para dar mais eficiência à produção. Todavia, o empresário brasileiro se utilizou dela para reduzir o custo da mão-de-obra. Então é natural, infelizmente, que os trabalhadores tenham uma redução drástica em seus salários pelo fato de terem ido trabalhar em empresas terceirizadas. Existem fraudes terríveis. Por exemplo, temos histórico de empresas que dispensavam todos os seus empregados, orientando que eles fossem contratados por uma empresa terceirizada. Aí a empresa principal contratou os serviços dessa empresa terceirizada.
Muitas vezes, quando há a terceirização, os empregados dessa empresa terceirizada não recebem os benefícios do acordo coletivo daquela categoria. Ele deixa de pertencer àquela categoria. Os bancários, por exemplo. Houve um fenômeno da "bancarização" – serviços bancários prestados por lotéricas, supermercados, em lojas de shoppings centers. E esses trabalhadores, que praticamente exercem uma atividade de bancário, não recebem os benefícios porventura estabelecidos nas convenções coletivas de bancários. Isso é um fenômeno que está disseminado no mercado de trabalho brasileiro e traz prejuízo para o empregado.
Por fim, há outra forma de trabalho mais precarizado ainda que existe para evitar a aplicação da própria legislação trabalhista, que é o caso da contratação de empregados no modelo de cooperativa, ou então a exigência de que os empregados se constituam como pessoa jurídica.
A empresa que terceiriza pode ser responsabilizada por eventuais relações perversas de trabalho entre a empresa terceirizada e os empregados dela?
Nos casos de simulação de cooperativa, de pes
soa jurídica para impedir a aplicação da legislação, o trabalhador pode ir à Justiça do Trabalho postular a existência do vínculo de emprego diretamente com a tomadora do serviço. Essa empresa que tomou o serviço será obrigada a anotar a carteira de trabalho e a pagar todos os direitos do trabalhador.
No caso da terceirização ilícita, como a empresa que terceiriza a atividade fim (a empresa que faz papel, por exemplo, contrata uma terceira empresa para fazer a mesma atividade, pagando um menor salário e dizendo que os trabalhadores não são os trabalhadores da indústria gráfica), o juiz também pode reconhecer o vínculo de emprego diretamente com a tomadora. Manda-se anotar em carteira com a tomadora de serviço e pagar todos os direitos do empregado.
Há casos de problemas com a terceirização dentro da lei, que é a atividade-meio, principalmente aquela vinculada à vigilância e à limpeza, serviços especializados ou contratos temporários para alguma atividade extraordinária. Neste caso, a jurisprudência da Justiça do Trabalho tem reconhecido que a tomadora do serviço tem responsabilidade de segundo grau. Ela se reponsabiliza em segundo lugar pelos créditos trabalhistas porventura reconhecidos na Justiça do Trabalho. Então o trabalhador entra na justiça contra a empresa terceirizada, que é a prestadora de serviços e empregadora de fato dele, e também contra a empresa tomadora de serviços, que é a empresa terceirizante. Ele pede o crédito dele e, caso a empregadora direta não tenha patrimônio suficiente para quitar, a empresa principal responde por esse débito.
Há tempo que se exige uma reforma trabalhista para "modernizar" as relações de trabalho. Na hipótese dessa reforma, o que seria importante observar quanto à terceirização?
Primeiro, vou denunciar o governo federal na expressão "modernização da legislação de trabalho". O governo está apenas aplicando a palavra modernização em substituição à palavra flexibilização. Porque flexibilizar significa precarizar, reduzir direitos dos trabalhadores. Como é uma palavra que ficou estigmatizada (e o processo flexibilizante foi duramente combatido nos oito anos de governo Fernando Henrique e também foi duramente criticado no governo Lula) surge o governo agora com essa palavra "modernização da legislação trabalhista". Eu não sei o que isso seignifica. Gostaria de compreender o que o governo pretende com a dita modernização da legislação trabalhista. A Anamatra não vai aceitar do governo federal nenhuma proposta que reduza ou elimine os direitos já existentes e reconhecidamente consquistados pelo trabalhador brasileiro, que estão na legislação intra-constitucional e na própria Constituição brasileira. Se modernizar significa eliminar direitos, a Anamatra é contra.
Então não há nada a ser mudado na legislação com relação à terceirização?
Não vejo como modernizar a terceirização. Principalmente essa terceirização que está na moda, que serve para reduzir o salário nominal do trabalhador, para fazer com que esse trabalhador deixe de ser protegido por normas previstas em convenções e acordos coletivos de trabalho. Essa proposta nós estamos descartando.
Matéria relacionada:
MPT alerta para trabalho escravo em fornecedores da C&A
Foto de abertura: Victor Soares/Anamatra/Divulgação