Nesta quinta-feira (17), a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) condenou o Estado brasileiro por violar o direito de Damião Ximenes, portador de transtorno mental, à integridade física e à vida e de acesso à Justiça e garantias judiciais de sua família. Essa é a primeira sentença do órgão relacionada ao Brasil, resultado das denúncias de tortura e morte em uma clínica psiquiátrica cearense, em 1999. A decisão é considerada uma vitória histórica para os direitos humanos no país e um avanço importante na área de saúde mental, em especial para a luta antimanicomial, cujos representantes há décadas vêm denunciando casos de abuso, maus-tratos e mortes em tais estabelecimentos. A sentença reconhece a violação de direitos humanos ocorrida e a falta de ações de prevenção por parte do governo brasileiro para que casos semelhantes não continuem acontecendo.
Como medida de reparação, a Corte condenou o Brasil a indenizar a família de Damião Ximenes por danos materiais e imateriais. Além disso, determinou que o país investigue e puna os responsáveis pelo crime de forma célere, ou seja, que conclua o mais rápido possível o processo civil e criminal que ainda estão em andamento. A sentença também estabelece que o Estado brasileiro deve regulamentar e monitorar os serviços públicos de saúde mental e investigar e combater a impunidade das violações de direitos humanos nesses locais, e que deve continuar a implementar as reformas psiquiátricas já iniciadas no sentido de melhorar a atual situação dos portadores de transtornos mentais.
De acordo com a ONG Justiça Global, uma das peticionárias do caso, a “condenação do Brasil pela mais alta Corte de Direitos Humanos do continente americano é sobretudo uma repreensão internacional pela sua incapacidade e falta de vontade política de enfrentar as graves e sistemáticas violações e de combater a impunidade”.
“A partir de agora, o Brasil tem um ano para cumprir as determinações da Corte. O órgão vai avaliar se isso ocorreu e então pode enviar um relatório ao órgão máximo da OEA, a Assembléia Geral, que decide que medidas tomar, entre elas medidas políticas ou até econômicas”, explica Carlos Eduardo Gaio, diretor de relações internacionais da Justiça Global. “Mas esperamos que elas sejam cumpridas, praticamente todos os Estados cumpriram até agora, menos o Peru de Fujimori”, completa.
Em nota à imprensa, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, os ministérios da Saúde e das Relações Exteriores afirmam que “o teor da decisão reconhece os avanços ocorridos no sistema de atenção à saúde mental no país, que passou a enfatizar os direitos humanos dos portadores de transtornos mentais, especialmente após a aprovação e implementação da Lei nº 10.216/2001, que trata da Reforma Psiquiátrica”. Segundo eles, a Política Nacional de Saúde Mental promoveu uma importante reorientação do modelo centrado no hospital para uma rede de serviços extra-hospitalares, de base comunitária.
A nota também ressalta que o Estado brasileiro já está estudando as formas necessárias para dar “pleno cumprimento a todos os itens da sentença da Corte”. Em relação à garantia de maior celeridade à ação penal, está sendo constituído grupo, que deverá ser integrado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Conselho Nacional de Justiça, Ministério das Relações Exteriores e Advocacia-Geral da União, para agilizar esse e outros processos judiciais internos cujos objetos estão sob consideração dos órgãos internacionais de proteção e promoção dos direitos humanos.
Histórico
Em outubro de 1999, Albertina Ximenes internou seu filho Damião, portador de transtorno mental com sintomas de esquizofrenia, na única clínica psiquiátrica na região do município de Sobral (CE), a Casa de Repouso Guararapes. Ela pensou que nessa clínica, conveniada na época ao Sistema Único de Saúde (SUS), ele receberia o tratamento médico adequado. Três dias depois retornou ao local para visitá-lo e foi informada de que ele não estava em condições de receber ninguém. Forçou a entrada e encontrou Damião em estado deplorável, com as mãos amarradas para trás, cambaleando e sangrando bastante, repleto de escoriações e hematomas pelo corpo.
Procurou o médico Francisco Ivo de Vasconcelos, diretor da casa de repouso e legista do Instituto Médico Legal (IML) de Sobral, que prescreveu alguns medicamentos, sem sequer examinar Damião. Quando Albertina chegou em casa, no município de Varjota, a 72 quilômetros de Sobral, foi chamada com urgência de volta à casa de repouso. Lá, recebeu o comunicado de que seu filho de trinta anos havia morrido. O laudo, assinado pelo diretor da clínica, alegava apenas “parada cárdio-respiratória”.
Convencidos de que ele não havia morrido por causas naturais, mas sim vítima de maus tratos, os familiares de Damião iniciaram uma saga atrás das autoridades competentes, como a polícia civil e o Ministério Público Federal, denunciando o caso. Em nova necropsia, a família descobriu que, provavelmente, Damião recebeu chutes e outras pancadas, caiu no chão, batendo a cabeça, e não recebeu o atendimento adequado. Diante da total falta de ação para investigar o crime e punir os culpados, os familiares mandaram uma carta relatando a história para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA.
“Esse caso foge à regra porque, na verdade, é preciso esgotar os recursos internos antes de ser aceito pela Comissão e a irmã de Damião enviou essa carta apenas quarenta dias depois do ocorrido. Mas, quando a comissão respondeu, pedindo informações ao governo brasileiro, não obteve nenhum retorno. Se o Estado não responde, eles entendem como verdadeiros os fatos denunciados. A comissão admitiu esse caso em 2002 porque em nenhum momento o Brasil negou os fatos, num total descaso do governo brasileiro, ignorando até mesmo a sugestão de solução amistosa”, explica a advogada Renata Lira, da Justiça Global. Além disso, foram descobertas histórias semelhantes de pacientes que morreram na Casa de Repouso Guararapes, sob a tutela do Estado.
O caso foi enviado à Corte em outubro de 2004 porque a Comissão considerou que o Brasil não estava cumprindo satisfatoriamente as recomendações. Segundo a advogada da Justiça Global, a ação penal contra seis pessoas que tramita desde 2000 apresenta uma demora injustificada após a conclusão do inquérito, já que as t
estemunhas ainda estão sendo ouvidas, e não houve decisão nem em primeira instância.
Os peticionários estavam confiantes de que a decisão da Corte seria favorável a eles porque consideravam que na mais recente audiência do caso realizada antes da sentença, no final de 2005, o Brasil não havia conseguido provar que agiu de forma diligente nem que deu alguma resposta à família da vítima. Apesar do governo federal apresentar avanços na área de saúde mental, não foi capaz de explicar por que continuam ocorrendo inúmeros outros casos de violações de direitos humanos dentro de clínicas psiquiátricas conveniadas ao SUS, ou seja, sob responsabilidade do Estado brasileiro, em que também não ocorre investigação nem responsabilização.
Luta antimanicomial
Para o vice-presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Marcus Vinícius de Oliveira, essa sentença é um marco na área de saúde mental na América Latina e será utilizada a partir de agora como instrumento de defesa da vida e dos direitos dos portadores de transtornos mentais, intensificando a posição da sociedade civil de exigência e denúncia. “A total impunidade continua exatamente igual ao que ocorreu no caso do Damião Ximenes, com ausência absoluta de responsabilização. Temos uma coleção de casos que mostram que o doente mental no Brasil morre de forma violenta, assassinado no estabelecimento que deveria tratá-lo, por omissão, violência, negligência. E ninguém é punido. Essas mortes são tratadas como acidentes de percurso. As pessoas são amarradas, torturadas, e esganadas, num cotidiano marcado por centenas de violações de direitos humanos”, relata Oliveira.
Segundo ele, depois da sentença da Corte da OEA em relação ao caso de Damião Ximenes, o CFP pretende entrar com uma denúncia no sistema interamericano de direitos humanos a respeito de três mortes e outras violações de direitos humanos ocorridas numa clínica psiquiátrica no município de Caicó (RN). Em uma delas, uma paciente ficou amarrada à cama por tanto tempo que sua perna gangrenou e teve que ser amputada. Em outra, um paciente morreu queimado dentro de uma cela forte, também amarrado à cama. O atestado do diretor do estabelecimento alegava que ele havia se suicidado. Num terceiro caso registrado, o paciente ficou atado ao leito, sem receber sequer água, e faleceu por desidratação. Até agora ninguém foi punido em nenhum desses casos. O objetivo da nova denúncia é mostrar que o que ocorreu com Damião segue ocorrendo com outras pessoas pelo país.
Para Oliveira, muitos desses casos ocorrem porque a maior parte desses estabelecimentos conveniados ao SUS não tem condições de funcionamento e o governo federal não faz a fiscalização necessária. “Há mais de quatro anos o Ministério da Saúde não promove a avaliação preventiva dos hospitais psiquiátricos, que obriga que eles estejam de acordo com as regras do próprio SUS, e os pacientes não têm poder para brigar e se defender, são frágeis na sua condição de expressão e visibilidade. Se o governo desenvolvesse uma política ativa de fiscalização, já diminuiria essa incidência”, acredita ele.
Na avaliação do vice-presidente do CFP, o governo federal privilegiou a expansão da rede de serviços alternativos aos manicômios, mas foi pouco eficiente no desmonte da estrutura manicomial. “O governo descuidou de uma coisa fundamental: manter o arrocho e a política agressiva no fechamento dos antigos hospitais psiquiátricos. Ainda existem no Brasil mais de 40 mil leitos nos hospitais psiquiátricos, que sabidamente matam e violam os direitos humanos dos pacientes”, conclui Oliveira.
Fernanda Sucupira é membro da ONG Repórter Brasil