O falar dos libertados

Artigo – Linguagem cativa

Palavras ganham novos significados na fala simples dos resgatados da escravidão, e idéias depreciativas do mundo dos "letrados" transformam-se em nomes e sobrenomes em fazendas afastadas no interior do Brasil
Marinalva Cardoso Dantas
 14/09/2006
O trabalhador "Bin Late", resgatado em setembro de 2001 (Foto: Marinalva Dantas)

Logo após o atentado de 11 de setembro de 2001, um grupo de trabalhadores foi aliciado no Maranhão para trabalhar na cata de raízes no Mato Grosso, numa das fazendas de soja mais prósperas.

Ao chegarmos na tal fazenda, em novembro do mesmo ano, guiados por um fugitivo, ficamos surpresos quando um trabalhador me disse: "Doutora, aquele homem que todo mundo tá procurando, trabalha aqui com nós."

– Que homem? Perguntei eu, espantada.

– Bin Late, me disse ele.

Os trabalhadores vitimados pelo trabalho escravo são analfabetos na sua maioria e têm uma linguagem baseada na audição. Assim, repetem o que entenderam ter ouvido.

Ao se referir ao "procurado", ele me apontou um rapaz barbudo, com um cabelo à altura dos ombros. Aí eu entendi e não pude deixar de rir. Eles se referiam a Bin Laden, o temido terrrorista que supostamente comandou o atentado aos EUA no dia 11 de setembro (as pessoas sempre se referem ao atentado ao World Trade Center, esquecendo que o Pentágono também foi atingido e outra aeronave que tinha como destino a Casa Branca foi derrubada, matando várias outras vítimas).

Esse trabalhador aviltado foi jocosamente apelidado de Bin Late, graças à sua aparência similar ou análoga à do terrorista. Mas, assim como o crime do qual tratamos é descrito como "submeter trabalhadores à condição análoga à de escravo", o vocabulário deles é também análogo ao que os letrados utilizam, e os nomes dos trabalhadores são trocados por algo que os faça memorizá-los, já que a memória visual e auditiva deles se baseia em aspectos aparentes, associados a um som. Se esses trabalhadores já estivessem em cativeiro antes do atentado famoso, certamente o nome desse trabalhador seria lobisomem, como já encontramos, ou até vampiro, porque o trabalhador só tinha os dois dentes caninos.

O que poderia ser considerado depreciativo numa comunidade normal, nesse ambiente assim não o é, porque no meio de tantos Josés, Franciscos, Raimundos, há que se criar um diferencial para personalizá-los e dar-lhes distinção. Sobrenomes, além de serem difíceis de memorizar, lembram família, há tempos perdida, e muitos não o possuem porque nunca receberam um, já que sequer existem de direito (não têm Registro Civil de Nascimento).

Embora as pessoas pensem: é um mundo cão, assim chamado por ser algo muito ruim (cão no sentido de demônio), para os escravos, o cão (o cachorro) lembra um mundo bom, pois do mesmo modo como acontece com as crianças, isso melhora o seu pequeno universo, traz afetividade diante de tanta desumanidade. No caso dos escravos, o cão, além de ser "o melhor amigo", fiel e afetuoso, é o inimigo natural do "gato", o causador de todo o seu sofrimento.

* Marinalva Cardoso Dantas é auditora fiscal do trabalho e coordenou grupos móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego de 1996 a 2004

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