Estimativa recente divulgada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) indica que ainda existem cerca de 25 mil trabalhadores submetidos a trabalho forçado ou degradante no Brasil – o denominado "trabalho escravo". Figuram como recordistas os estados do Pará, Tocantins, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Bahia. Este panorama, registrado também no relatório da OIT, "Trabalho Escravo no Brasil do Século XXI", revela que os mecanismos essenciais de combate ao trabalho escravo não mereceram o apoio efetivo da classe política e dos agentes de governo. É certo que o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), motivados por importantes figuras de seu quadro de servidores e premidos pelos membros da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), atuaram na tentativa de cumprir o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Governo Federal, mas ficaram longe da meta que é a erradicação. Se, por um lado, a união de esforços e a boa vontade de políticos vinculados a cargos públicos estratégicos promovem avanços significativos, por outro, escancaram a precariedade de uma ação que se baseia, quase como regra, na atuação de servidores públicos bem-intencionados e não na idéia mínima da consolidação de política estatal de combate ao trabalho escravo.
A instituição de políticas públicas reais deve inspirar-se na idéia de transversalidade e de integração de órgãos governamentais e entidades não-governamentais na implementação das ações e programas previstos. A criação do cadastro de empresas em cuja cadeia produtiva foi identificado o trabalho escravo, a ampla divulgação para a sociedade dos respectivos nomes, o boicote espontâneo dos grandes atacadistas e de consumidores e as ações movidas pelo Ministério Público do Trabalho configuram um sistema complexo mas eficiente de restrição ou embargo de setores econômicos até então imunes a qualquer tipo de sanção. Tais ações, ainda que regulares, poderiam ser reforçadas por uma legislação que ampliasse a restrição econômica a partir da identificação da cadeia produtiva dentro da qual exista, em alguma instância, a exploração de mão-de-obra escrava. Estas iniciativas teriam o mérito de prestigiar o comércio justo, igualando os concorrentes e impedindo a contratação com fornecedores que não observem, na produção ou na prestação de serviços, o valor social do trabalho e a dignidade do ser humano.
O Governo Federal anunciou seu compromisso com a aprovação da PEC 438/2001, que estabelece a expropriação imediata de glebas onde for identificado o trabalho escravo, mas sucumbiu à pressão de aliados contrários à proposta, permitindo que interesses meramente eleitorais sobrepujassem o dever de garantir a efetividade dos direitos humanos no Brasil. Assim como a PEC 438, existem cerca de 20 outras propostas tramitando na Câmara dos Deputados, há quase dez anos, sem alçar aprovação final. Conquanto exista um quadro de proposições legislativas bastante favorável ao combate do trabalho escravo, resta evidente a falta de vontade política para transformar tais propostas em lei. Apesar do comprometimento público do Governo – reforçado em diversas reuniões realizadas com a Conatrae e outras entidades – não houve ainda qualquer avanço concreto no Legislativo.
O Poder Judiciário, a seu turno, tem dado respostas rápidas, ao menos no plano estrutural, à demanda por maior efetividade da legislação trabalhista tutelar. A Justiça do Trabalho está mais presente nas áreas de conflito pela criação e implantação de novos Juízos Trabalhistas, com destaque à implementação de Juízos Itinerantes para atuação direta em locais de maior incidência de trabalho escravo, cujas ações, mais próximas ao trabalhador, têm se mostrado eficaz instrumento de inibição. Além disso, desde 2004 existe rubrica específica no orçamento da Justiça do Trabalho para Erradicação do Trabalho Escravo, destinada ao incremento da prestação jurisdicional in loco. Apesar dos cortes lineares sofridos sistematicamente nas dotações dos Tribunais do Trabalho, a rubrica específica indica a preocupação da magistratura trabalhista com o combate ao trabalho escravo. Em contraponto, a falta de segurança para magistrados, procuradores e fiscais envolvidos nas ações de combate ao trabalho escravo é fato marcante que merece repúdio e alerta. A sociedade ainda convive com a lembrança dos assassinatos de três auditores fiscais e um motorista do MTE, que realizavam fiscalização em fazendas da região de Unaí, em Minas Gerais.
Torna-se imprescindível realizar um balanço entre as ações de governo e o compromisso do Estado brasileiro com a erradicação do trabalho escravo. As evidentes limitações devem ser superadas. Sem ignorar os avanços obtidos e as ações em andamento, nem, tampouco, minimizar a complexidade do tema, é urgente a transição de um velho Brasil, no qual se diz histórica e cultural a discriminação contra o trabalhador para um novo Brasil, construído em um cenário de desenvolvimento social e econômico. Resultado, enfim, de uma forte integração de forças decididas a eliminar a grande tragédia da desigualdade e da exclusão.
* José Nilton Pandelot é presidente Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). Este artigo foi publicado também no jornal Correio Braziliense