A falta de testemunhas dispostas a depor sobre os homicídios ocorridos durante a reação da Polícia após a primeira onda de ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital), em maio deste ano, pode impossibilitar a obtenção de indenizações para as famílias das vítimas e manter impunes os autores desses crimes. É o que mostra o relatório apresentado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, na semana passada, à Comissão Independente constituída para monitorar esses casos, a respeito do acompanhamento das investigações das mortes relacionadas ao período de 12 a 20 de maio. Além da Defensoria, a comissão é formada por entidades de direitos humanos, Ministério Público Federal, e Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), entre outros.
A Defensoria Pública de São Paulo recebeu cópia de todos os laudos relativos aos 492 homicídios ocorridos no Estado nesse período. Como não era possível analisar todos os casos, o Grupo Especial de Trabalho optou por focar em 39 mortes ocorridas na capital paulista: 28 delas classificadas pela polícia como "resistência seguida de morte" e 11 que chamaram a atenção dos defensores durante o exame dos laudos, por apresentarem condições muito parecidas aos anteriores, mas que estavam registradas apenas como "homicídio simples".
Como os resultados dos laudos não tinham muito significado isoladamente, o grupo passou a acompanhar os inquéritos policiais desses casos, solicitados às 25 delegacias responsáveis por apurar essas mortes. Alguns inquéritos não estavam mais na delegacia, já tendo sido enviados para a promotoria de Justiça avaliar se iniciaria processos criminais. Nos inquéritos, além dos laudos, foram obtidos depoimentos, outras perícias importantes, como a de resíduo de pólvora nas mãos, a do local do crime, autos de apreensão de armas etc.
No entanto, em apenas um dos casos, envolvendo dois homicídios, foram conseguidas fortes evidências de que houve desvio de conduta por parte dos policiais militares, porque familiares das vítimas encontraram testemunhas dispostas a depor. Moradores dos arredores do local onde ocorreram as mortes confirmaram à Defensoria Pública, e posteriormente à promotoria de Justiça, que haviam presenciado os dois assassinatos. Segundo as testemunhas, não ocorreu nenhum confronto, os dois jovens simplesmente cruzaram com os policiais na favela. Na verdade, além de não agredirem os agentes da polícia, os jovens chegaram a pedir clemência a eles, implorando para não serem mortos, antes de serem atingidos pelos disparos. "Foram homicídios gratuitos, totalmente injustificados", afirma o subdefensor público Pedro Giberti, coordenador do Grupo Especial de Trabalho.
Para conseguir indenização aos familiares das vítimas, Giberti entrou com duas ações preparatórias, ações cautelares de produção antecipada de prova testemunhal. Isso significa que as testemunhas vão depor diretamente para o juiz, com a oportunidade de representantes do Estado de São Paulo participarem da audiência e fazerem perguntas, tentando contraditá-las, para que assim se tornem provas definitivas. Enquanto o Ministério Público é responsável pelo processo criminal, a tarefa da Defensoria Pública, nesses casos, é cuidar das vítimas de violência e garantir o direito à reparação indenizatória, ou seja, uma compensação financeira pela morte do familiar, cobrindo os danos morais causados pela dor da perda e repondo a receita financeira que aqueles mortos obtinham e proporcionavam à família.
"Pode ter um laudo muito bom, mas sem prova testemunhal não consigo a condenação do Estado porque o ato de um agente público traz a presunção de legitimidade, de veracidade. Enquanto o boletim de ocorrência diz que o sujeito foi morto por ter resistido à polícia, essa classificação prevalece", explica o subdefensor público. A maior parte dos casos analisados tem fortes indícios de desvio da conduta policial: praticamente todos os tiros foram de cima para baixo, as vítimas não têm antecedentes criminais, nem resíduo de pólvora nas mãos, e em alguns casos a Defensoria foi procurada por familiares dizendo que existem testemunhas dos homicídios, mas que não aparecem para depor.
"O trabalho foi bem feito, a gente se movimentou, foi atrás das coisas, mas foi muito frustrante. Tenho a convicção íntima de que houve desvio de conduta e abuso dos policiais, mas essa convicção me impede tecnicamente de entrar com uma ação contra o Estado porque faltou a pedra de toque: a prova testemunhal. Esse mesmo problema vai acabar levando à impunidade dos autores dessas mortes. Em um dos casos, o promotor já pediu arquivamento, ou seja, os primeiros casos já começam a ser arquivados pelo Ministério Público, por falta de evidências de natureza testemunhal que corroborem os outros elementos colhidos no inquérito. A convicção de que houve abusos não é suficiente, precisa de indícios de autoria", lamenta Gibert.
Segundo ele, esse único caso que vai resultar nas duas ações indenizatórias vai ser emblemático para romper com o discurso de autoridades do Estado de que a ação da polícia foi legítima do início ao fim. "Na minha impressão, os crimes ocorridos nessa semana foram cometidos sem o menor prurido", acredita. O subdefensor ilustra a situação contando o caso de quatro jovens que foram colocados dentro de uma viatura policial e depois apareceram mortos, mas a testemunha não apareceu para prestar depoimento. "As pessoas não querem depor porque têm medo da reação da polícia. Os agentes que fizeram isso continuam freqüentando esses mesmos lugares, os PMs pertencem aos mesmos batalhões, estão sempre por lá", diz.
Fernanda Sucupira é membro da ONG Repórter Brasil.