Em 11 de maio de 1937, um ruído no céu da chapada do Araripe assustou os camponeses. Com medo, eles tentavam se esconder entre as árvores enquanto máquinas voadoras deslizavam pelos ares daquela região do Cariri, no sul do Ceará. Homens, mulheres e crianças fugiam de algo que, com certeza, viam pela primeira vez. O desespero foi ainda maior quando os aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) começaram a metralhar. Muitos ali devem ter sussurrado o derradeiro pai-nosso. Outros nem tiveram tempo para tanto.
Chapada do Araripe, no Ceará, palco do massacre de 700 seguidores do beato José Lourenço |
Quarenta anos após o massacre dos sertanejos liderados por Antônio Conselheiro, em Canudos, na Bahia, e 20 anos depois da Guerra do Contestado, episódio com desfecho semelhante ocorrido nos estados do Paraná e de Santa Catarina, as tropas de diferentes esferas do poder público novamente uniam forças para abater humildes agricultores brasileiros. Desta vez as vítimas pertenciam à comunidade do sítio Caldeirão, cujo líder era o beato José Lourenço.
Naquele dia, a polícia militar do Ceará e os aviões enviados pelo Ministério da Guerra exterminaram nordestinos religiosos e pacíficos que por dez anos tinham buscado apenas uma forma de sobreviver às mazelas da vida sertaneja: seca, fome, coronelismo… Em 21 de março de 2005, o Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural do Ceará (Coepa) tombou uma área de 60 hectares pertencente ao núcleo do que um dia foi o sítio Caldeirão. Com isso, o governo estadual tenta corrigir um erro histórico, reconhecendo a importância do episódio em que migrantes, principalmente do Rio Grande do Norte, viveram uma utopia de igualdade e auto-suficiência baseada na fé cristã. A medida, porém, não pode reparar a morte dos 700 – 400, segundo dados oficiais – seguidores de José Lourenço, discípulo do padre Cícero.
Formação
Assim como em Canudos, população do Caldeirão era formada por sertanejos que viam o misticismo como única alternativa para a sobrevivência no semi-árido (foto:reprodução) |
Longe do litoral nordestino, um emaranhado de crenças – cristãs e pagãs – caracterizava a religiosidade popular das terras secas nas primeiras décadas do século 20. Sem contar com assistência do Estado e da Igreja para enfrentar as dificuldades de sobrevivência, os sertanejos tinham poucas opções, como o cangaço, o trabalho semi-escravo nos latifúndios dos coronéis ou o misticismo. Assim, Virgulino Ferreira da Silva se tornou o "Lampião". E Antônio Vicente Mendes Maciel, o "Conselheiro".
A alternativa da fé era encabeçada por profetas populares, que viam a miséria como um "castigo de Deus" e encorajavam a prática de penitências como forma de obter a salvação. Para eles, as mazelas do nordeste eram sinais de que o fim do mundo estava próximo e, portanto, não tardaria a grande viagem ao paraíso divino.
Quando deixou seu lar para trabalhar em fazendas de gado próximas à sua cidade, no estado da Paraíba, José Lourenço Gomes da Silva era ainda jovem. Ao retornar para casa, após anos de ausência, soube que seus pais haviam mudado para Juazeiro do Norte, no Ceará – lugar que se tornara um pólo de atração devido à fama do padre Cícero.
De 1894 até 1946, José Lourenço liderou arraiais onde se uniam os menos favorecidos (foto:reprodução) |
Em 1890, já novamente ao lado de sua família, José Lourenço acabou conquistando a amizade do famoso sacerdote. Depois de viver alguns anos nas proximidades de Juazeiro e de integrar algumas seitas de penitentes – pessoas que rezavam em cemitérios pelas almas do purgatório e que praticavam autoflagelação para se purificar dos pecados -, o paraibano arrendou o sítio Baixa Dantas, onde formou uma comunidade. De 1894 a 1926, ali foi desenvolvida sua primeira experiência de trabalho coletivo igualitário. Enxada na mão, José Lourenço e seus companheiros enfrentaram o desafio imposto pelo terreno pedregoso e passaram a cultivar frutas, cereais, algodão e hortaliças. A comunidade crescia à medida que muitas famílias chegavam a Juazeiro – a "meca sertaneja" – sem ter trabalho ou moradia e eram encaminhadas pelo padre Cícero aos cuidados do beato.
Apesar dos progressos no Baixa Dantas, a vida dos moradores do lugar não foi isenta de percalços. Em 1921, surgiu o boato de que o boi doado pelo padre Cícero para melhorar a raça do gado local estava sendo adorado pela comunidade. Floro Bartholomeu, chefe militar de Juazeiro, prendeu José Lourenço por 18 dias e matou o boi, num ato denominado por ele de "combate ao fanatismo". Anos depois, o beato enfrentaria outra situação intrincada. O sítio em que a comunidade vivia foi vendido, e o novo proprietário expulsou os camponeses sem qualquer indenização.
Diante desse problema, o padre Cícero encaminhou José Lourenço e seus seguidores à sua fazenda Caldeirão dos Jesuítas. A aridez do lugar, limitado ao norte pela caatinga e ao sul pela floresta do Araripe, não desanimou o hábil grupo de lavradores que havia trabalhado por 32 anos no Baixa Dantas. Tocado como um projeto coletivo, logo o Caldeirão começou a se transformar.
Famílias de todo o nordeste, a maioria proveniente do Rio Grande do Norte, passaram a viver de trabalho e oração naquele pequeno terreno de 500 hectares no interior do Ceará, que chegou a comportar 2 mil pessoas. Ali tudo era feito em sistema de mutirão, e imperava a cooperação. As obrigações eram divididas e os benefícios distribuídos conforme as necessidades de cada um.
Sem coronéis para explorar a mão-de-obra, os camponeses experimentaram sopros de liberdade. A paraibana Maria Inácia tinha 10 anos quando morou no Caldeirão, lugar que recorda com um olhar saudoso: "Era o mesmo que um céu aberto. Logo que amanhecia, meu padrinho Lourenço era o primeiro a sair para a lida. Nós tomávamos café ali mesmo,
na roça. Às 9 horas vinha uma carga de rapadura para merendar, e às 11 chegavam as cozinheiras com o almoço. Na roça, tudo o que se planta, lá a gente plantava", lembra enquanto mostra orgulhosa as fotos dos "padrinhos" Cícero e José Lourenço, penduradas na parede da sala.
Relatos como o de Maria Inácia são freqüentes entre antigos membros da irmandade formada no Caldeirão. Todavia, essa memória positiva só é possível porque houve um grande empenho no passado. Após os primeiros anos de adaptação, as atividades foram diversificadas e a comunidade caminhou para a auto-suficiência, produzindo quase tudo de que precisava: desde roupas e sabão até panelas, copos e baldes. Para tanto, os artesãos, carpinteiros e ferreiros utilizavam matéria-prima local. Os tecidos, por exemplo, eram feitos com algodão cultivado na própria fazenda. O que não conseguiam obter ali era comprado nas cidades próximas.
Durante seis anos se trabalhou na construção da Capela de Santo Inácio de Loyola, que foi abandonada inacabada em 1936 |
Para os membros da comunidade, era importante que houvesse uma igreja onde pudessem praticar a religião tradicional. Apesar de nunca terem recebido a visita de um sacerdote, ainda que tivesse sido solicitado, no começo da década de 1930 um mestre-de-obras foi convidado a ajudar na construção da Capela de Santo Inácio de Loyola, na parte central do Caldeirão. A expulsão dos camponeses, porém, ocorrida cinco anos depois, impediu que a obra fosse concluída. Hoje, restaurada pela prefeitura do Crato, a igrejinha é um dos principais marcos históricos do sítio.
Dentre as virtudes da comunidade do Caldeirão, também conhecida como Irmandade de Santa Cruz, a caridade sobressaiu durante a seca de 1932. Constantes no semi-árido nordestino, duas grandes estiagens forçaram os sertanejos a migrar para o litoral nas primeiras décadas do século passado. Para controlar a "invasão de flagelados" na de 1915, o governo do Ceará construiu o Campo de Refugiados do Alagadiço, onde uma epidemia de varíola matou boa parte dos reclusos. Em 1932, com a intenção de manter os retirantes longe de Fortaleza, os órgãos públicos intensificaram as medidas de contenção. Assim, ergueram sete campos de concentração – ou "currais", na linguagem popular – distribuídos pelas linhas férreas do estado.
Enquanto os dois campos próximos da capital reuniram cerca de 5,5 mil pessoas, o de Buriti, no Crato, que tinha capacidade para no máximo 5 mil, aglutinou por volta de 18 mil. Segundo a historiadora Rosângela Martins, durante a seca de 1932 os refugiados de Buriti foram vigiados rigorosamente por sentinelas. Havia ali até mesmo uma prisão interna para os desobedientes. Por causa da desnutrição e de doenças, "morria gente todos os dias, e um caminhão passava recolhendo os corpos no final da tarde para jogá-los em valas na parte alta do campo", afirma Rosângela.
Alguns retirantes tiveram sorte e conseguiram driblar o Campo de Buriti e chegar até o Caldeirão, onde as atividades corriam normalmente, já que mesmo nos anos de estiagem não faltava comida. José Lourenço solidarizou-se com os sertanejos e integrou à sua comunidade pelo menos 500 pessoas que pediram auxílio.
Exemplo ecológico
O termo "caldeirão", antes de dar nome ao sítio que abrigou a irmandade liderada pelo beato José Lourenço, já designava uma falha geológica formada por pedras que se enchiam de água do riacho que por ali passava. Essa estrutura natural foi muito importante para o desenvolvimento da comunidade, porque a água ficava acumulada no "caldeirão" mesmo em tempos de seca.
O clima na região do Cariri é semi-árido, com chuvas concentradas nos quatro primeiros meses do ano. Depois desse curto período, nem uma gota cai do céu. Por isso o desafio maior para o pessoal do sítio era irrigar as plantações, uma vez que o solo não possibilitava a retenção de água.
Para o geógrafo Arlindo Siebra, a comunidade era um exemplo de bom uso dos recursos naturais |
"Como é possível sustentar toda uma comunidade dependendo de um solo que tem restrições agrícolas? O grande mérito do beato foi exatamente este: ele soube utilizar os recursos e os ecossistemas do semi-árido", afirma o geógrafo Arlindo Siebra. Além do modus vivendi igualitário, o Caldeirão foi um exemplo ecológico para o nordeste. Segundo Siebra, a comunidade construiu várias microbarragens e dois açudes. Faziam também um tipo de cisterna, que cobriam para evitar a evaporação, armazenando a água no subsolo.
Outra característica importante frisada por Siebra era o não-desmatamento da "coroa da serra" – como são chamadas as partes mais altas da fazenda. Normalmente os agricultores trabalham com rotação de culturas, ou seja, queimam a vegetação para adubar o solo e depois plantam durante cerca de três anos. Posteriormente, abandonam a área – deixam a vegetação brotar de novo, o que chamam de "encapoeiramento" – para repetir o processo após três ou cinco anos. A falta de espaço, porém, impedia José Lourenço de fazer as rotações.
Segundo Siebra, o beato "só plantava abaixo da `coroa da serra`, e apenas em um trecho por ano, passando depois para outro. Como a cobertura vegetal da coroa permanecia intacta, quando chovia as sementes eram dispersadas de cima para baixo. Dessa maneira, utilizando a força da gravidade, a área encapoeirava mais rápido que um terreno plano". Com esse manejo agrícola, somado à criação de peixes e de gado, as quase 2 mil bocas da irmandade não sentiam falta de comida.
Expulsão
A amizade com Padre Cícero garantiu por décadas a segurança de José Lourenço |
Se no Baixa Dantas os camponeses perderam o direito à terra e tiveram de sair às pressas, no Caldeirão não foi diferente. Aliás, pior. José Lourenço não era considerado pelas elites do Ceará um simples beato analfabeto e inofensivo, mas um perigoso líder capaz de articular grandes levantes contra a ordem pública. O principal problema apontado era a organização da comunidade, que as oligarquias tachavam de comuni
sta.
As autoridades, na verdade, queriam o fim do Caldeirão, mas havia um problema: a ligação entre o beato José Lourenço e o padre Cícero. Brigar com o "Padrinho" não valia a pena, em hipótese alguma. Porém, com a morte do sacerdote, aos 90 anos, surgiu a oportunidade tão esperada, uma vez que desde 1923 o testamento do religioso garantia a propriedade do Caldeirão aos padres salesianos.
Por essa razão, o beato José Lourenço teve de começar a pagar tributos aos novos proprietários pelo usufruto da terra. Segundo José Tavares de Lira, filho e neto de ex-moradores do Caldeirão, seu pai sempre levava uma tropa de burros carregada de gêneros para os salesianos. Contudo, em 1936, o bacharel Raymundo Norões Milfont, representante jurídico dos padres, solicitou reintegração de posse.
No mesmo ano, a cidade de Fortaleza sediou uma reunião de representantes de seis instituições: diocese do Crato, ordem dos padres salesianos, Liga Eleitoral Católica, polícia política (Deops), polícia militar e governo do Ceará. Os presentes ouviram relatos do capitão José Bezerra, da polícia militar, que, em busca de um pretexto para a invasão, havia espionado a comunidade para ver se ali havia armas. O oficial não as encontrou, mas disse que as forças públicas precisavam agir "com rapidez fulminante, para evitar a possibilidade de uma reação premeditada", pois havia muita gente no arraial.
As autoridades temiam resistência semelhante à de Canudos, onde o exército brasileiro fora seguidas vezes derrotado, até que, em 1897, promoveu o massacre de milhares de camponeses. Alegaram também o risco de o Caldeirão resvalar para as mãos de líderes marxistas, já que no final de 1935 Luís Carlos Prestes tinha comandado a Intentona Comunista, cujo primeiro levante havia ocorrido no Rio Grande do Norte.
No dia 11 de setembro de 1936, as forças do Estado invadiram o Caldeirão. Coturnos de policiais civis e militares entraram marchando, mas não encontraram o beato José Lourenço, que havia fugido para a floresta da chapada do Araripe, onde ficou escondido até o início de 1938. Lá ele tomou o cuidado de não fixar residência, vivendo de forma nômade em construções de palha improvisadas, alimentando-se de frutas silvestres e, por vezes, de gêneros doados por amigos de fazendas próximas. No dia da invasão, porém, o capitão Cordeiro Neto ficou confuso sobre a atitude a tomar diante das mais de 400 casas de taipa. Optou pela devastação: expulsou os moradores, queimou os casebres e entregou parte dos bens ao município do Crato. "A polícia chegou lá e acabou com tudo. Levaram o que havia no armazém, e até as portas da casa do beato", conta José Lira.
Homens de confiança de José Lourenço foram presos e conduzidos a Fortaleza. Retornaram ao Crato após 14 dias e encontraram pessoas da comunidade vivendo no pé da serra da Conceição, nas entranhas do Araripe, sob constantes maus-tratos das autoridades, que permaneciam em alerta. No depoimento dado ao pesquisador Régis Lopes, Eleutério Tavares, morador influente do Caldeirão, comentou a ação policial: "Lá, bateram em pessoas, fizeram gente engolir rosário na ponta da baioneta. Só não fizeram matar mesmo".
No início de 1937, as autoridades do Ceará receberam denúncias sobre o pessoal de José Lourenço, que após a dissolução da comunidade vivia clandestinamente nas matas da chapada do Araripe. Corriam boatos de que ex-integrantes do Caldeirão, chefiados pelo mensageiro Severino Tavares, atacariam o Crato. Ciente disso, o capitão Bezerra e 11 soldados da polícia de Juazeiro foram até lá para checar as informações e entraram em conflito com um grupo de camponeses. Nesse embate, morreram o capitão e três praças. Do outro lado, foram cinco perdas, entre elas, Severino.
Após a divulgação daquele conflito, fortes contingentes militares partiram de Fortaleza à caça dos remanescentes do Caldeirão, determinados a vingar a morte do capitão Bezerra. O ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, colocou a força federal à disposição do governo cearense e autorizou o vôo de três aparelhos do Destacamento de Aviação, sob responsabilidade do capitão José Macedo, para auxiliar no reconhecimento da zona e localização dos camponeses.
Dos aviões, as metralhadoras dispararam, enquanto 200 patrulheiros vasculhavam a chapada do Araripe para concluir a missão. Naquele 11 de maio de 1937, cerca de 700 lavradores foram massacrados. Nenhum soldado
morreu. Mesmo depois da "grande investida" militar, policiais continuaram a perseguir, prender, torturar e matar pessoas que se vestissem de preto e portassem rosário – as características dos seguidores do beato.
Em 1938, José Lourenço retornou ao sítio Caldeirão e ali permaneceu por dois anos, até ser novamente expulso pelo procurador dos padres salesianos, proprietários da fazenda. Seguiu então para Exu, no lado pernambucano da chapada, onde montou outra comunidade, no sítio União, comprado com os 7 contos de réis recebidos como indenização por uma parte dos bens do Caldeirão. O advogado do beato tentou mover uma ação contra o Estado para recuperar a totalidade das perdas do arraial, todavia o pedido não foi atendido.
José Lourenço morreu em 12 de fevereiro de 1946 no sítio União, vítima de peste bubônica. Seguidores carregaram o caixão com seu corpo, a pé, de Exu até Juazeiro do Norte, num percurso de 70 quilômetros. Depois da longa e cansativa jornada, o corpo do beato foi velado na casa de Eleutério Tavares. Em seguida, os fiéis solicitaram uma missa a monsenhor Joviniano Barreto, porém o vigário não apenas recusou o pedido, como proibiu a entrada do esquife na capela: "Eu não celebro missa para bandido", alegou o sacerdote.
Após serem rejeitados na "casa de Deus", e debaixo da chuva que caía em Juazeiro do Norte, os amigos do beato fizeram o sepultamento no Cemitério do Socorro, ao lado da igreja homônima. A estudante de pedagogia Ana Izabel Tavares é quem atualmente cuida do jazigo, onde estão até hoje as imagens de santos que tinham sido importadas da Alemanha para a Capela de Santo Inácio de Loyola.
Patrimônio
A estrada de terra esburacada dificulta o acesso ao Caldeirão, situado no município do Crato, entre os distritos de Monte Alverne e Dom Quintino. Em 1998 o ex-secretário municipal de Cultura Rosemberg Cariry apresentou projeto com o objetivo de transformar o sítio num grande parque histórico, com museu e anfiteatro para eventos ligados à cultura popular. No mesmo ano, a prefeitura do Crato comprou a parte central do terreno onde viveu a irmandade liderada pelo beato José Lourenço e reformou a Capela de Santo Inácio de Loyola, colocando portas novas, pois as originais haviam sido roubadas na invasão policial de 1936.
Atualmente a única família residente no sí
;tio é a do agricultor Raimundo Batista. Embora não seja remanescente da antiga comunidade, ele sabe que ali havia fartura, ao contrário do que acontece hoje, pois mal consegue garantir a própria subsistência: "Isto aqui era um Caldeirão vivo, hoje é um Caldeirão morto", lamenta. O isolamento só é quebrado pelas romarias de setembro ou quando aparecem pesquisadores para examinar as ruínas da fazenda.
O "caldeirão", que garantia o abastecimento da comunidade mesmo nos tempos de seca, está cada vez mais raso devido ao assoreamento |
A cruz ao lado da capela, por exemplo, indica o cemitério. Mais adiante fica o "caldeirão" de pedras, onde os filhos de Raimundo aproveitam para nadar e fugir do calor da caatinga. Segundo Arlindo Siebra, o "caldeirão" está passando por um processo de assoreamento, ou seja, perdendo profundidade. Isso indica que mesmo após o Coepa ter ratificado a importância do sítio, em março deste ano, ainda faltam medidas de manutenção. Pouco a pouco os vestígios históricos, como a casa do beato José Lourenço, estão desaparecendo.
Esse estado de abandono já ficou patente em 1991, quando agricultores ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) ocuparam o terreno do Caldeirão. Após negociarem com o governo do Ceará, eles saíram e foram encaminhados para as fazendas Gerais e Carnaúbas, a 12 quilômetros dali, onde fundaram a Associação 10 de Abril, que no momento engloba 46 famílias. "Se não fosse a ocupação, a maioria das pessoas teria de trabalhar nas fazendas. Aqui a gente pode ficar livre dos pés dos patrões", afirma Antônio Gomes, professor do ensino fundamental na escolinha do assentamento. Para ele, o exemplo do Caldeirão continua presente como símbolo de liberdade.
Pesquisa
Graças aos esforços dos pesquisadores, hoje é possível conhecer inúmeros detalhes da história do Caldeirão. Filho de romeiros, nascido em Juazeiro do Norte, o sociólogo Domingos Sávio Cordeiro ouviu na infância muitos "causos" sobre o beato José Lourenço: "Eram sempre em forma de anedotas maliciosas ou mistificadas", lembra. Para escrever um trabalho recente sobre o Caldeirão, o professor da Universidade Regional do Cariri (Urca) consultou dezenas de jornais da época e entrevistou ex-moradores da antiga comunidade: "Falando com algumas pessoas que conviveram com o beato, ou ao menos o conheciam, ouvi relatos muito distintos. Seria pouco querer buscar uma única verdade dos fatos, então passei a investigar as versões, o que diziam, que mundo construíam". Com o livro Um Beato Líder – Narrativas Memoráveis do Caldeirão, publicado em 2004, Sávio Cordeiro dá continuidade a um rol de pesquisas científicas iniciadas na década de 1960 por Rui Facó (Cangaceiros e Fanáticos) e Maria Isaura Pereira de Queiroz (O Messianismo no Brasil e no Mundo).
A história da comunidade liderada pelo beato José Lourenço foi também contada em vídeo. No final de 1986, estreou em Fortaleza o documentário O Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, de Rosemberg Cariry. Ali estão registrados depoimentos de pessoas direta ou indiretamente envolvidas com os fatos, tanto do lado dos camponeses como das autoridades. "A memória está viva, e devo dizer que, do que fiz, não tenho nada de que me arrepender", declara o ex-chefe de polícia, na época da filmagem general da reserva, Cordeiro Neto, que comandou respectivamente a expulsão de 1936 e a ação militar de 1937.
Já o ex-inspetor de polícia e ex-delegado de Ordem Política e Social José Góes de Campos Barros afirma ter reconhecido a falsidade das denúncias que, na época, motivaram a ação de despejo: "Acho que a imagem que se fez do Caldeirão sofreu muitas distorções. Não havia nenhuma intenção bélica da parte dos sertanejos, senão nem sei como é que teria sido. A impressão que tivemos foi de muita ordem, todos estavam bem alimentados, trabalhavam e tudo era distribuído equitativamente, segundo pudemos constatar".
O jornalista Hildebrando Espínola, por sua vez, enfatiza a ilegalidade da invasão policial: "Trata-se de um crime múltiplo contra o Caldeirão. Primeiro, porque foi executada uma reintegração de posse sob proteção militar, com equipamento armado do Estado, para proteger interesses particulares e sem a menor figura de juízo. Segundo, porque o Estado pura e simplesmente entendeu de limitar a liberdade de fé religiosa".
Ao longo do vídeo de Rosemberg Cariry, os depoimentos sobre os fatos ocorridos no Caldeirão são intercalados com expressões da cultura popular e do folclore nordestino. Próximo do final, há uma cena em que o poeta Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré, declama versos que homenageiam o beato José Lourenço, lembrando que a questão da mão-de-obra e da posse da terra foi o cerne dos massacres de Canudos e do Caldeirão.
Reportagem publicada originalmente em agosto de 2005 e produzida graças a uma parceria com a revista Problemas Brasileiros.