Relatório da OIT mostra que o país avançou no cumprimento das metas de combate ao trabalho escravo. Mas especialistas alertam: são necessárias medidas mais efetivas
Paloma Oliveto
Da equipe do Correio
Um dos primeiros países a admitir a existência de escravidão contemporânea em seu território, o Brasil está se saindo bem no cumprimento das metas de erradicação da mão-de-obra forçada. Apesar de ainda existirem por aqui entre 25 mil e 40 mil pessoas nessas condições, segundo cálculos da Organização Internacional do Trabalho (OIT), os esforços da sociedade civil, da Justiça e do governo federal fizeram com que quase 80% das 76 propostas que compõem o plano nacional lançado em 2003 fossem cumpridas ou parcialmente alcançadas (veja quadro nesta página). A estatística foi divulgada ontem pela OIT, no estudo "Trabalho escravo no Brasil do século XXI".
"A ação coordenada entre fiscais, procuradores e juízes do trabalho e da Polícia Federal tem sido fundamental", acredita Laís Abramo, diretora do organismo internacional no Brasil, sobre a evolução da quantidade de trabalhadores resgatados. Homens analfabetos, com idade entre 18 anos e 44 anos e originários do Maranhão, do Piauí e de Tocantins, os escravos modernos têm como principal destino fazendas do Pará, estado que lidera o número de libertações: foram quase 6 mil entre 1995 e dezembro do ano passado. Em todo o país, foram resgatadas 4.113 pessoas somente em 2005.
Outras ações que contribuem para o combate às senzalas modernas, segundo Patrícia Audi, coordenadora no Brasil do Programa Internacional de Combate ao Trabalho Escravo da OIT, são a lista suja do Ministério do Trabalho e Emprego e o pacto assinado entre empresários que se comprometeram a não adquirir matéria-prima de fazendas envolvidas com a escravidão. No primeiro caso, trata-se da relação divulgada pelo MTE do nome dos empregadores que foram flagrados pelos auditores fiscais. Eles ficam impedidos de solicitar financiamento em bancos públicos, e há interesse de bancos privados em adotar a mesma medida.
Já o pacto nacional foi firmado no ano passado e reúne mais de 80 empresários. Marcas como Wal Mart, Carrefour e Pão de Açúcar não compram material vindo dessas fazendas. "São empresas relevantes no mercado e causam um impacto econômico bastante expressivo", analisa o cientista político Leonardo Sakamoto, da ONG Repórter Brasil. A pecuária é o ramo que mais utiliza mão-de-obra escrava, com 80% dos trabalhadores resgatados. Em seguida vêm os ramos de algodão/soja (10%), pimenta-do-reino (3%), cana-de-açúcar (3%), café (1%). Os outros 3% não foram especificados pelo relatório, elaborado para a OIT pela Repórter Brasil.
Mexer com o dinheiro dos empregadores tem surtido efeito nos esforços da Justiça trabalhista para erradicar o trabalho escravo. De 2000 a 2005, fazendeiros flagrados explorando mão-de-obra forçada foram obrigados a pagar R$ 21,9 milhões em direitos trabalhistas. O Ministério Público do Trabalho, por sua vez, ajuiza ações civis e coletivas e consegue, na Justiça, cobrar indenizações milionárias. A maior já aplicada em uma sentença por trabalho escravo contemporâneo ocorreu em 13 de maio do ano passado, quando a empresa Lima Araújo Agropecuária Ltda. foi condenada a desembolsar R$ 3 milhões. Os fiscais encontraram 180 pessoas, incluindo nove adolescentes e uma criança, nas fazendas pertencentes à empresa.
O Ministério Público do Trabalho pedia ainda mais: R$ 85 milhões, ou 40% do patrimônio estimado das duas propriedades. A principal atividade da Lima Araújo é a criação de gado para corte. "É bom lembrar que os trabalhadores não participam da atividade fim. Os aliciados são explorados para abrir a mata, por isso há uma relação próxima entre trabalho escravo e desmatamento", diz Patrícia Audi.
O NÚMERO
Resgate
6 mil pessoas foram libertadas em fazendas do Pará de 1995 a 2005
O NÚMERO
80% das metas do plano nacional foram alcançadas ou estão perto de serem cumpridas
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Indefinição prejudica ações penais
Ao mesmo tempo em que identificou o cumprimento das metas do plano de erradicação do trabalho escravo, o estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostra que ainda há muitos desafios a serem superados. "A avaliação da OIT é positiva, o que não quer dizer que seja otimista", alerta Patrícia Audi, coordenadora no Brasil do Programa Internacional de Combate ao Trabalho Escravo do organismo internacional. Um dos problemas apontados é a indefinição sobre a responsabilidade estadual ou federal de se julgar ações movidas contra os empregadores. A confusão na tramitação faz com que, muitas vezes, os crimes prescrevam. Até hoje, ninguém foi punido penalmente por manter mão-de-obra forçada em propriedades.
Está nas mãos do Congresso Nacional o principal instrumento, na avaliação de especialistas, de coibição do trabalho escravo: a proposta de emenda à Constituição (PEC) que prevê expropriação das fazendas onde a prática exista. A possibilidade de perder suas terras para a reforma agrária poderia fazer com que os empregadores pensassem duas vezes antes de se arriscarem. O texto tramita há cinco anos, já foi aprovado em primeiro e segundo turno no Senado, e em primeiro turno na Câmara, mas, desde o ano passado, não entra na pauta de votações. A pressão da sociedade civil e de artistas engajados na causa, como a atriz Letícia Sabatella, que já veio a Brasília pedir a parlamentares que votassem em favor da PEC, não tem surtido efeito.
Política pública
"O Plano Nacional de Combate ao Trabalho Escravo é capenga. Uma política pública para erradicar o trabalho escravo, por si e sozinha, não resolve o problema", considera o juiz José Nilton Ferreira Pandelot, presidente da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra). Ele argumenta que, sem programas consistentes de combate ao desemprego e à desigualdade, as ações pontuais não conseguirão, de fato, erradicar a exploraçõ de mão-de-obra forçada.
Para Pandelot, o governo federal sucumbiu às pressões dos aliados políticos da bancada ruralista e não se esforçou para colocar a PEC 438 em votação. "É inegável que não houve o empenho necessário para se combater o trabalho escravo. As ações são voluntaristas, dependentes de militantes engajados no governo. O que exigimos é a consolidação de verdadeiras políticas públicas nas áreas econômica e social", diz. . "O trabalhador é libertado e, meses depois, sai de sua regi&atild
e;o de novo e vai se submeter ao mesmo regime. É a única oportunidade que ele enxerga à sua frente", lamenta.
"A reforma agrária é considerada por entidades da sociedade civil e setores do governo federal como um dos mais importantes instrumentos de prevenção ao trabalho escravo. Apesar disso, o orçamento destinado a ela é pequeno, e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável pela demarcação de terras, enfrenta dificuldades operacionais", alerta o relatório da OIT. Segundo o organismo internacional, 70% das fazendas flagradas com trabalhadores escravos sequer têm registro no Incra. Ou seja, são griladas. (PO)