TV Digital

Nada de novo sob o sol

Escolha do padrão japonês para a TV Digital no Brasil reforça o poder das grandes emissoras e frustra as expectativas de quem luta pela qualidade nos meios de comunicação. Transição do sistema analógico para o digital deverá movimentar dezenas de bilhões de dólares nos próximos dez anos
Por Carlos Juliano Barros
 26/09/2006

No último dia 29 de junho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou em solenidade no Palácio do Planalto a escolha do padrão japonês de televisão digital, chamado ISDB-T, como referência para implementação desse novo sistema no Brasil. A assinatura do decreto que sacramentou a opção pela tecnologia nipônica é um dos capítulos mais importantes de uma novela que termina com final feliz para as gigantes do setor de radiodifusão nacional. "Nós temos um compromisso com 180 milhões de brasileiros. Para que esse compromisso pudesse ter certeza de sobrevida no futuro, ele precisaria de um padrão que oferecesse as qualidades, as vantagens e a operacionalidade que o japonês oferece", argumenta José Inácio Pizani, presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert).

 

Ministro das Comunicações, Hélio Costa, e das Comunicações do Japão, Heizo Takenaka, firmam acordo tecnológico.  (Foto: Agência Brasil)

Mesmo com o assédio de europeus e norte-americanos, que também estavam de olho em um dos maiores mercados de televisão aberta do mundo, prevaleceu a vontade das grandes empresas do ramo, e a potência asiática saiu vitoriosa. Não há cálculos precisos, mas o processo de transição do sistema analógico para o digital deverá movimentar dezenas de bilhões de dólares, nos próximos dez anos. Dinheiro que será gasto pelas emissoras na modernização de suas infra-estruturas, e pela própria população na compra de aparelhos capazes de receber o novo sinal. Durante esse período de uma década, os dois sistemas vão conviver, até que o analógico seja superado de vez. As primeiras transmissões digitais estão previstas para meados do ano que vem, na capital paulista.

Até lá, um grupo composto por pesquisadores de Brasil e Japão vai estudar a incorporação de tecnologias desenvolvidas por universidades nacionais ao ISDB-T (ver box). Por essa razão, o Ministro das Comunicações, Hélio Costa, afirma que se trata de um padrão nipo-brasileiro. Em sua opinião, o governo optou como "padrão de modulação digital que melhor se ajusta às características e necessidades da televisão brasileira aquele que mantém a sua condição de aberta e gratuita com mobilidade".

Apesar da satisfação dos radiodifusores, a medida não agradou a diversas entidades da sociedade civil que lutam pela democratização dos meios de comunicação, e que defendem um debate mais amplo a respeito dessa mudança que promete revolucionar o cotidiano dos brasileiros. "O decreto só atende aos pleitos das emissoras. E o governo o editou às vésperas do processo eleitoral, justamente quando se torna mais refém do que já é da cobertura da mídia, e durante uma Copa do Mundo, quando as atenções estão voltadas para os jogadores da seleção", critica Gustavo Gindre, coordenador do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indecs).

 
País tem 54 milhões de aparelhos de televisão espalhados pelos domicílios (Foto: Leonardo Sakamoto)

De acordo com dados oficiais, existem hoje cerca de 54 milhões de aparelhos de televisão espalhados pelos domicílios de todo o país – números que evidenciam a importância desse veículo como principal fonte de informação e entretenimento da população. Com a digitalização, abre-se um mundo de possibilidades que vão muito além da simples melhoria da qualidade de som e imagem dessa mídia. E a palavra-chave para entender o potencial da nova tecnologia é "interatividade". Isso quer dizer que o telespectador também vai poder interferir ativamente na programação, recebendo, mas também enviando informações. "O que é o conteúdo da TV analógica? Áudio e vídeo. O que é o conteúdo áudio, vídeo e dados, da TV digital? Não se sabe ainda. Existe um mundo de produção a ser descoberto, até do ponto de vista profissional", afirma Diogo Moyses, membro da ONG Intervozes.

Os recursos digitais permitem, por exemplo, que o usuário realize compras ou efetue pagamentos de impostos, além de trocar mensagens de correio eletrônico – conhecidas por "t-mails" – através do televisor. O próprio presidente Lula disse que sonha ver o dia em que o cidadão de baixa renda poderá marcar uma consulta em um hospital do Sistema Único de Saúde (SUS) por meio do seu aparelho. "O Brasil deveria usar esse momento para fazer a inclusão digital da população", avalia Valério Brittos, professor do departamento de ciências da comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

Caso sejam cumpridas as diretrizes que constam do decreto presidencial, a verdade é que pouca coisa deve mudar no atual cenário de radiodifusão. As redes de grande porte não sofrerão nenhum abalo significativo em seu poder de fogo. Mas, apesar de a escolha do ISDB-T representar uma conquista e tanto, elas ainda precisam superar obstáculos de natureza legal. O Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), que regula o setor, data de 1962, época em que a televisão ainda era em preto e branco, e precisa de uma revisão urgente. E, na análise de Gindre, o decreto viola vários de seus artigos. "É um festival de irregularidades", define.

A tentativa da criação de um padrão nacional

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