A Organização Internacional do Trabalho (OIT) lançou em Brasília, nesta quarta-feira (20), o relatório "Trabalho Escravo no Brasil do Século XXI". O documento avalia o andamento de cada uma das 76 metas estabelecidas pelo governo federal no Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, lançado em março de 2003. Além disso, aponta qual é o perfil dos trabalhadores libertados da escravidão, analisa estatísticas e mapeia as ocorrências do trabalho escravo. A OIT também sugere medidas para acabar com essa prática criminosa no país.
De acordo com o relatório, o Plano está parciamente cumprido. Entre as metas que não foram satisfatoriamente colocadas em prática, estão as que tratam de soluções para diminuir efetivamente a impunidade, seja com mudanças na legislação ou mesmo na definição da competência entre a Justiça Federal e a Justiça Estadual para o julgamento de casos de trabalho escravo (leia Tribunal decide que crime de trabalho escravo deve ir para Justiça Federal). Da mesma forma, os objetivos que dizem respeito à promoção da cidadania, como a geração de emprego e renda e reforma agrária nas regiões fornecedoras de mão-de-obra escrava, também foram insuficientemente cumpridos.
Segundo o estudo – coordenado pelo cientista político Leonardo Sakamoto, da ONG Repórter Brasil – um dos principais problemas encontrados para o cumprimento das metas é a falta de recursos humanos. Há um déficit considerável de procuradores do Trabalho, auditores fiscais do Trabalho, policiais federais, técnicos do Incra e do Ibama e funcionários públicos, entre outros, para cumprir as determinações do Plano. O Congresso Nacional não tem sido ágil para liberar emendas orçamentárias a fim de suprir essas necessidades.
A análise publicada pela OIT cita ações governamentais e da sociedade civil que obtiveram êxito no cumprimento das metas do plano, como as de sensibilização e capacitação de atores para o combate ao trabalho escravo e a conscientização de trabalhadores pelos seus direitos. Das metas estabelecidas com esses fins, 77,7% foram total ou parcialmente cumpridas. A fiscalização também melhorou no período. A quantidade de libertados foi de 84, em 1995, a
5.090, em 2003, e 4.113, em 2005. Depois do lançamento do Plano, o Ministério Público do Trabalho, que já acompanhava o grupo móvel de fiscalização, passou a estar presente em quase todas as ações, e isso se traduziu em números, como o aumento de ações civis públicas sendo ajuizadas.
Para erradicar
A reforma agrária, segundo o documento, é um dos instrumentos mais importantes para a prevenção ao trabalho escravo. Contudo, o orçamento destinado a ela é pequeno e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável pela demarcação de terras, enfrenta dificuldades operacionais. Há muitas fazendas que ostentam documentos de propriedade fraudulentos, mas não são destinadas à reforma agrária por falta de infra-estrutura e de servidores públicos para investigar a situação.
Outra medida importante para contribuiu com a erradicação do problema, segundo o relatório, é a aprovação da proposta de emenda constitucional (PEC) que permite o confisco, sem indenização, das terras em que o trabalho escravo for encontrado. No Senado Federal, a emenda foi aprovada após dois anos de tramitação. Já na Câmara, apesar de ter sido apresentada pela primeira vez em 1995, empacou após sua aprovação em primeiro turno e espera até hoje para ser colocada novamente ao plenário.
O documento cita, também, a necessidade da ampliação de projetos nacionais de geração de emprego e renda, criados com o objetivo de evitar que populações miseráveis caiam na rede da escravidão ou para reinserir os escravos libertos de modo a evitar que não sejam aliciados novamente.
Jovem e migrante
Segundo as estatísticas apresentadas na publicação, de 1995 até 2005, 17.983 pessoas foram libertadas em ações dos grupos móveis de fiscalização. No total, foram 1.463 propriedades fiscalizadas em 395 operações. As tabelas mostram uma leve diminuição do número de fiscalizações entre 2003 e 2004. A principal causa dessa queda seria uma greve de 80 dias da Polícia Federal e o assassinato de três auditores fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que realizavam fiscalização nas fazendas da região de Unaí (MG), em janeiro de 2004 – o que, na época, gerou preocupação entre os auditores fiscais que atuam no campo.
Para traçar o perfil dos trabalhadores libertados, as pesquisadoras Ana de Souza Pinto e Maria Antonieta da Costa Vieira reuniram relatórios das operações das equipes móveis do MTE efetuadas entre 1997 e 2002 no Sul e Sudeste do Pará. De acordo com esses dados, a idade média dos peões ficava ao redor de 33 anos. Mais da metade deles (55,7%) tinha entre 18 e 35 anos e a grande maioria (84,4%) possuía menos de 45 anos. Crianças e adolescentes menores de idade também foram flagrados no trabalho (5,2%); dessa porcentagem, 2,2% tinham menos de 14 anos.
Do total de trabalhadores resgatados na região, a maioria absoluta (91,5%) era migrante. Naturais do Estado do Pará somavam apenas 8,5% e eram, na maior parte dos casos, jovens nascidos na região de incidência do problema (em municípios como Redenção, Conceição do Araguaia e Marabá) oriundos de famílias que migraram para o Pará nas décadas de 1970 e 1980. Os migrantes no Pará procediam, principalmente, de estados do Nordeste e do Centro-Oeste. Os maranhenses somavam 39,2%, seguidos dos piauienses (22%) e dos tocantinenses (15,5%).
Combate e desmatamento
Quando se trata de repressão, o relatório aponta o sucesso obtido com a atuação dos grupos móveis de fiscalização. Devido às fiscalizações realizadas por eles, o número de trabalhadores saltou de 84, em 1995, para 5.090, em 2003, e 4.113, em 2005. Da mesma forma, as indenizações pagas pelos empregadores também aumentou: entre 1995 e 1999, não há registro de ressarcimento em operações, enquanto que R$ 21.985.124,47 foram pagos nos seis anos seguintes.
Cruzando dados fornecidos pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do MTE e fotos de satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o relatório monta um mapa mostrando as áreas de desmatamento
da Amazômia e as libertações de trabalhadores escravos. Nesse mapa, verifica-se que a concentração das propriedades rurais que utilizaram trabalho escravo está exatamente na faixa do arco do desflorestamento, que vai de Rondônia até o Maranhão. Comparando a lista dos municípios em que se libertou mais trabalhadores com a tabela das localidades mais desmatadas também se pode observar coincidências. Muitas dos municípios que encabeçam a primeira lista aparecem no topo da segunda, como São Félix do Xingu (PA).
Por fim, o relatório aponta sugestões para o avanço no combate ao trabalho escravo, como o aumento de recursos humanos e financeiros para instituições públicas que atuam na erradicação desse crime, a aprovação de mudanças na legislação, o reforço no sistema de fiscalização, a manutenção da "lista suja" como arma contra escravocratas e a implantação de um plano de prevenção ao trabalho escravo.